Recurso extraordinário em regime de multiplicidade
Por Jáder Miranda de Almeida | 27/03/2011 | DireitoA "Reforma do Poder Judiciário" trouxe novidades no regime jurídico do recurso extraordinário. Uma delas se refere à necessidade de demonstrar a repercussão geral da questão constitucional. Ou seja, exige-se a demonstração de que a violação constitucional debatida no caso concreto seja de interesse também para a sociedade em geral.
Outra novidade está na regulamentação do recurso extraordinário em regime de multiplicidade. Segundo esse regime, o tribunal local seleciona um ou mais recursos extraordinários representativos de questão constitucional e remete-os ao STF. Os demais recursos permanecem sobrestados no tribunal local, aguardando o julgamento dos paradigmas.
Negada pelo STF a repercussão geral, os recursos sobrestados são automaticamente inadmitidos. Julgado o extraordinário, o tribunal local deverá retratar-se ou declarar o prejuízo dos recursos, a depender da conformidade do acórdão ou do RE com a posição sufragada pelo Supremo. Apenas se o tribunal local mantiver a decisão conflitante com o paradigma é que o recurso extraordinário será remetido ao STF.
Esse é, basicamente, o regime do RE após alterações constitucionais (EC 45/04) e legislativas (Lei n. 11.418/06). Em verdade, nada de especialmente novo foi exposto até aqui. O ponto polêmico e ainda pouco abordado está na sistemática de aplicação das orientações firmadas pelo STF, tal qual se passa a ver.
No julgamento de questão de ordem em AI 760358, o STF decidiu que "uma vez submetida a questão constitucional à análise de repercussão geral, cabe aos tribunais dar cumprimento ao que foi estabelecido, sem a necessidade de remessa dos recursos individuais".
O Min. Gilmar Mendes consignou em seu voto vencedor que se o STF, após ter decidido um recurso extraordinário representativo, voltasse às apreciações individuais, colocaria a perder os benefícios de celeridade processual que as alterações constitucionais, legislativas e regimentais buscaram estabelecer.
Anotou, ainda, que existem meios efetivos para que a parte prejudicada possa impugnar a incorreta aplicação pelos tribunais locais do entendimento firmado pelo STF, e que a competência do Tribunal local para realizar o cotejo entre a orientação da Corte Excelsa e o caso concreto decorreria da lei, inexistindo usurpação da competência do STF. Eis a ementa do acórdão:
"Questão de Ordem. Repercussão Geral. Inadmissibilidade de agravo de instrumento ou reclamação da decisão que aplica entendimento desta Corte aos processos múltiplos. Competência do Tribunal de origem. Conversão do agravo de instrumento em agravo regimental. 1. Não é cabível agravo de instrumento da decisão do tribunal de origem que, em cumprimento do disposto no § 3º do art. 543-B, do CPC, aplica decisão de mérito do STF em questão de repercussão geral. 2. Ao decretar o prejuízo de recurso ou exercer o juízo de retratação no processo em que interposto o recurso extraordinário, o tribunal de origem não está exercendo competência do STF, mas atribuição própria, de forma que a remessa dos autos individualmente ao STF apenas se justificará, nos termos da lei, na hipótese em que houver expressa negativa de retratação. 3. A maior ou menor aplicabilidade aos processos múltiplos do quanto assentado pela Suprema Corte ao julgar o mérito das matérias com repercussão geral dependerá da abrangência da questão constitucional decidida. 4. Agravo de instrumento que se converte em agravo regimental, a ser decidido pelo tribunal de origem (AI 760358 QO, Relator(a): Min. GILMAR MENDES (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 19/11/2009, DJe-227 DIVULG 02-12-2009 PUBLIC 03-12-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-030 DIVULG 18-02-2010 PUBLIC 19-02-2010 EMENT VOL-02390-09 PP-01720)".
O acórdão supra tratava de Agravo de Instrumento (que corresponde hoje ao agravo nos autos do art. 544 do CPC) contra decisão da Presidência de Turma Recursal que declarou prejudicado Recurso Extraordinário ante o julgamento da matéria pelo STF na QO-RE 597.154. O Agravo de Instrumento foi convertido em Agravo Regimental e devolvido para apreciação pelo Tribunal de origem.
Em outra oportunidade, o STF reiterou "o entendimento firmado no AI 760358 QO/SE (DJE de 3.12.2009) ? no sentido de não caber recurso ao Supremo em face de decisões que aplicam a sistemática da repercussão geral na origem, a menos que haja negativa motivada do juiz em se retratar para seguir a decisão do STF". É que consta do INFO n. 588.
O STF não apontou em seus precedentes a que órgão do tribunal local compete realizar o cotejo entre o recurso pendente e a orientação firmada. Pode-se pensar em duas hipóteses. Pela primeira, cabe ao Presidente do Tribunal o cotejo, com recurso ao órgão especial (como ocorreu no AI 760358 QO/SE). Pela segunda, ao órgão fracionário compete proceder nos termos do art. 543-B, §2º, do CPC.
Entendemos mais adequada a segunda opção. Isso porque o Presidente do Tribunal realiza apenas o exame de admissibilidade do RE, enquanto que a aplicação da orientação do STF sobre determinada questão constitucional é, sem sombra de dúvidas, julgamento de mérito. Assim, ao órgão local do TJ/TRF/Turma Recursal cabe averiguar a compatibilidade do julgamento de mérito que proferiu com o julgamento de mérito do STF.
Outrossim, a solução adotada no AI 760358 QO/SE ? conversão em Agravo Regimental do Agravo de Instrumento contra decisão de inadmissibilidade do RE em Agravo Regimental ? teve por objetivo apenas resguardar a apreciação daquele recurso, haja vista a novidade do entendimento então firmado quanto ao descabimento de AI. Não parece adequado erigir à condição de regra geral solução que teve por objeto situação excepcional, fundada, no mais, no princípio da fungibilidade recursal.
Outra questão se põe: o que fazer quando o tribunal local se nega a aplicar o leading case? Já foi visto que o STF não admite a apreciação caso a caso. De fato, a Corte Excelsa, em manifestação plenária, foi enfática ao assentar que "a única hipótese, admitida pela lei, de remessa do recurso múltiplo ao STF é a de recusa de retratação da tese de mérito pelo tribunal de origem. A lei criou a exceção (art. 543-B, §4º, do CPC) e como exceção se interpreta restritivamente, não seria o caso de alarga-la".
A resposta para a indagação está no próprio voto vencedor do multicitado AI 760358 QO/SE. Naquela oportunidade, o Min. Gilmar Mendes assentou que há mecanismos para a identificação e reparação de situações teratológicas, tal como a ação rescisória, inexigibilidade de coisa julgada inconstitucional, ações constitucionais e diversos mecanismo de controle de constitucionalidade.
Além disso, o STF firmou orientação no sentido de que a Súmula 343 do STF (que veda a rescisória por violação a literal disposição de lei quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais) não se aplica em matéria constitucional (RE 328.812-ED/AM, RE 564.781-AgR/ES, RE 500.043-AgR/GO); cite-se, por exemplo, o seguinte excerto:
"Preliminar de descabimento da ação por incidência da Súmula STF 343. Argumento rejeitado ante a jurisprudência desta Corte que elide a incidência da súmula quando envolvida discussão de matéria constitucional (AR 1578, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 26/03/2009, DJe-157 DIVULG 20-08-2009 PUBLIC 21-08-2009 EMENT VOL-02370-01 PP-00089)".
Assim, havendo violação à Constituição, vale dizer, nas hipóteses em que o STF firma a correta interpretação de uma norma infraconstitucional, para o fim de ajustá-la à ordem constitucional, a contrariedade a esta interpretação constitucional enseja rescisória, com fundamento no art. 485, V do CPC.
Em outras palavras, a incorreta aplicação do leading case desafia o corte rescisório, alcançando até mesmo as sentenças transitadas em julgado, sem espaço para aplicação da Súmula 343 do STF, em respeito à força normativa da Constituição, consoante a interpretação que lhe é dada pelo STF.