[Re]pensando a teoria da Constituição

Por Camila da Fonsêca Aranha | 18/01/2011 | Direito

[Re]pensando a teoria da Constituição:
Considerações acerca do texto de Calmon de Passos

Camila da Fonsêca Aranha


No texto intitulado Repensando a teoria da Constituição, Calmon de Passos faz uso de toda a explicação sócio-filosófica acerca da história de desigualdades e lutas humanas para, posteriormente, poder propor a necessidade de um novo pensar a respeito da concepção atual que se tem de Constituição e de sua conseqüente aplicabilidade prático-jurídica, com a finalidade máxima de construir uma sociedade mais solidária, participativa e emancipada que, de fato, viva sob uma real democracia.
Inicialmente, ao afirmar que "[...] em toda ordem social há um componente de dominação, sem prejuízo da exigência de um mínimo de consenso (legitimação) indispensável para haver a cooperação que dá estabilidade à ordem instituída. Em síntese ? uma permanente tensão dialética entre dominação e cooperação, sujeição e insubmissão, regulação e emancipação" (p.02), Calmon de Passos declara que, em virtude das relações sociais entre homens diferentes e desiguais gerar relações de poder, fez-se necessária a institucionalização de um sistema com competência para dividir o trabalho social. Este sistema, contudo, o faz de modo assimétrico, uma vez que favorece os interesses da(s) classe(s) detentoras do poderio hegemônico, e isto somente acontece em razão de um consentimento/legitimação por parte do restante da população que é justamente o que concede estabilidade ao tal sistema, por meio de uma cooperação.
N?outros termos, nas relações sociais, sempre existirá um poder hegemônico que, de certa forma, tentará impor suas concepções e ideologias sobre os demais, de modo que isto gerará, necessariamente, uma permanente tensão dialética entre esta dominação e a cooperação de dar estabilidade à ordem instituída, entre sujeição por parte dos dominados e insubmissão por parte dos detentores do poder hegemônico, e entre regulação e emancipação, a primeira como sendo o objetivo daqueles que buscam uma alienação social e a última como a finalidade daqueles que tentam de certa forma libertar-se de tal dominação e participar de algum modo das decisões político-jurídicas.
A partir de tal introdução a respeito da natureza da ordem social, Calmon de Passos inicia o perpasse histórico no que concerne aos paradigmas estabelecidos em tempos pré-modernos e modernos, tendo conhecimento de que quaisquer paradigmas são estabelecidos em função das características da sociedade em dado espaço e tempo. Deste modo, o professor relata que, atualmente, vivemos sob o paradigma da modernidade, que tem como fundamentos a laicização do comportamento humano ? isto é, a "liberação de uma regulação de natureza religiosa prescrita pela divindade e eclesiasticamente formalizada" (p. 03) ? e a ideologia tecnocrática, (oriunda, dentre outros motivos, do cientificismo) caracterizada pela presença de normas que suprimem qualquer justificação (seja de sua própria existência ou de sua essência), desconsiderando a razão e o interesse comunicativos, tornando-se, assim, absolutas e dogmáticas, dominando e alienando cada vez mais outrem em prol de desejos arbitrários.
Assim sendo, teorizou-se como prerrogativa do paradigma da modernidade, sob a forma das ideologias tecnocráticas, a questão da soberania popular, originando os princípios da igualdade e da legalidade, e institucionalizando um processo de produção do direito de modo a editar normas que contemplassem a vontade geral. Entretanto, Calmon de Passos afirma que tais fundamentos deste paradigma têm sido questionados, uma vez que sob este discurso de uma sociedade democrática que tem como titular do poder soberano o povo encontra-se a "asfixia da razão comunicativa e da razão expressiva" (p. 04), isto é, apenas um discurso mascarado de racionalidade, haja vista que, de fato, ele não busca a democracia plena, com a preocupação da possibilidade de acesso e participação de todos, mas sim tem por finalidade alienar aqueles que o leiam/escutem, tentando fazer com que acreditem que se vive sob uma sociedade democrática.
Logo, se estamos vivendo sob uma crise do paradigma da modernidade e nossa atual Constituição foi elaborada tendo por base este, é necessário, sim, que se repense a respeito da teoria da constituição, objetivando inserir matizes imprescindíveis para que ocorra a devida adequação das necessidades e anseios sociais à prática político-jurídica. Defendendo tal proposta, Calmon de Passos ratifica que "Se o direito é ?produzido? pelos homens e não algo que lhes tenha sido ?dado?. Se ele é produzido para atender a determinadas necessidades humanas, o direito produzido na moldura do paradigma da modernidade pede [que] seja repensado, se for exato que estamos saindo desse paradigma e ingressando num outro ainda não precisamente definido, visto [que] essa mudança de perspectiva é precisamente fruto do aparecimento de novas necessidades e exigências da convivência social" (p. 05).
Desta maneira, o professor estabelece algumas matizes e direcionamentos básicos para que a teoria da constituição possa ser repensada. Para tanto, inicialmente retoma a idéia de ordem, explanando que na pré-modernidade ela era vista como natural, dada ao homem, tendo ele apenas que ajustar-se à ela, e na modernidade, inversamente, a ordem passou a ser responsabilidade humana, isto é, nós deveríamos projetá-la do modo que achássemos mais conveniente. O direito, portanto, acompanhou este raciocínio, sendo considerado natural e inerente aos homens no período da pré-modernidade e como algo a ser produzido pelos homens, conforme o pensamento moderno.
Então, tendo por embasamento a noção de que o Direito, sob uma concepção moderna, é produzido segundo os valores de cada sociedade, o professor postula como princípios basilares, para o alcance da verdadeira democracia, a emancipação, representando o máximo de liberdade, e a solidariedade, sendo somente por meio dela que possa ocorrer a promoção do diálogo e da participação de todos durante o processo político-jurídico, sabendo-se que não há respostas prontas e inacabadas aos problemas sociais, mas sim sugestões a respeito de como solucioná-los. Estas sugestões e/ou opções, por sua vez, só poderão, de fato, ser apresentadas caso haja um mínimo de possibilidade de comunicação entre os homens, uma vez que esta forma é a menos destrutiva e mais construtiva que existe, possibilitando maior harmonização no sistema normativo sob o qual deve viver a sociedade.
Se, conforme afirma Calmon de Passos, "Foram os postulados de democracia, da crença no direito racional e no conteúdo normativo da razão prática, a par da idéia de sistema e sua plenitude e coerência o que inspirou o constitucionalismo, saber e normatividade com pretensão de serem, ao mesmo tempo, raiz e síntese de toda a juridicidade. A Constituição foi entendida como expressão dessa totalidade. Filha do contratualismo, mas em tensão dialética com a necessidade teórico-prática da estabilidade da organização política" (p. 06-07), a Constituição deveria ser justamente o produto de todo este anseio social, efetivando os princípios que postula, a exemplo da própria democracia real. Entretanto, conforme coloca o professor na parte final desta citação, não é isto que tem acontecido, e a razão disto não se encontra no texto constitucional, mas sim na atitude daqueles que deveriam nos representar e atuar de forma democrática.
É baseado nesta questão que Calmon apresenta que este "repensamento" da teoria constitucional deve ser feito não com a finalidade de criar uma nova Constituição, mas sim objetivando uma mudança de atitude por parte de todos, especialmente dos representantes populares, detentores, de fato, do poder hegemônico, e dos operadores do Direito, uma vez que o texto constitucional, em si, contempla os princípios de emancipação, de solidariedade e possibilidade ao diálogo a à participação de todos.
Por fim, o professor destaca que "nenhuma normatividade, enquanto prescrição, tem qualquer eficácia se desvinculada do processo de comunicação humana, por conseguinte de seus protagonistas" (p. 09). Ora, é justamente fundando-se nisto e nos princípios apresentados que tem de ser feito este repensar da concepção constitucionalista, como um documento que vem assegurar que todos, indistintamente, possam propor, sugerir, debater, discutir e participar efetivamente do processo que se diz democrático, visto que, na realidade, enquanto não houver tal mudança de atitudes, permanecerá democrático somente no discurso.