RATZEL (DETERMINISMO) VERSUS LA BLACHE (POSSIBILISMO)
Por Jean Pires de Azevedo Gonçalves | 01/06/2015 | ArteAutor: Jean Pires de Azevedo Gonçalves
Observação: Este estudo é uma continuidade de meu ensaio intitulado “Atualidade da geografia”.
Ao meu ver, um dos maiores equívocos da história do pensamento geográfico foi ter atribuído à geografia o status de ciência positivista por excelência. Além do anacronismo evidente em tal associação (aliás, os geógrafos nunca conseguiram estabelecer ao certo o surgimento da geografia, ora aduzindo a um passado remoto na Antiguidade, ora à sistematização de Humboldt, ora ao determinismo e o possibilismo, ora a uma ontologia etc.), o erro pode ser facilmente corrigido pelo simples fato de que a geografia não tomou parte no quadro das ciências positivas, proposto por Auguste Comte, o qual, para recordarmos, partia do conhecimento mais geral ao mais particular, ou seja, da matemática, passando pela astronomia, física, química, biologia, até a sociologia (moral).
É muito provável que Comte entendia a geografia como uma generalização da astronomia ou mesmo um conhecimento antigo, não moderno (tendo-se em conta a Querelle do XVII), portanto, a meio caminho do estado metafísico (aristotélico, por assim dizer) e do estado positivo, não merecendo, por isso, o rótulo de ciência propriamente dita e particular. De fato, Comte denomina a “grande ciência inorgânica” de Estudos da Terra ou, mais propriamente, de Cosmologia, de onde desmembra estudos celestes, a astronomia e a física, e estudos da terra, a química, e rejeita a designação “geologia” pela imprecisão e generalização confusa feita pela academia[1].
Admitindo-se a última hipótese, a geografia moderna – isto é, a do XIX – realmente descendia de uma tradição que remontava ao humanismo greco-romano, resgatado, artificialmente, durante a Renascença, e, também, em grande parte, das necessidades de aparato técnico surgidas no período das grandes navegações e dos descobrimentos ultramarinos, impulsionadas pelo amadurecimento do capitalismo comercial na Europa. Suas grandes referências foram sem dúvida os textos clássicos, de Heródoto, Estrabão, mas, principalmente, de Ptolomeu. Para reforçar o que foi dito, cito Cai Prado Junior: “Isto que podemos chamar de geografia clássica se forma, como todas as demais ordens do conhecimento moderno, neste período do pensamento ocidental que se segue ao século XV. A geografia também se constituirá, tomando de início por modelo, como se deu em todas as instâncias, os atures da antiguidade clássica, e Ptolomeu em primeiro e principal lugar. Este geógrafo, como aliás os outros do período da ciência Greco-romana e romana a que ele pertence, afastando dos modelos gregos anteriores, orientou-se sobretudo para fins estritamente utilitários. Ptolomeu, antes um cosmógrafo, em nossa terminologia moderna, e por derivação matemático e astrônomo, tinha por objetivo essencial a fixação do ‘ecúmeno’, isto é, a parte então considerada habitável da Terra. A delimitação dele, a localização relativa de suas várias partes constituíam seus fins essenciais. Assim a cosmografia e a astronomia, meios necessários a chegar a tal objetivo, e a cartografia, expressão concreta de seus resultados, ocupariam a maior parte do pensamento e de suas obras... [Caio Prado Junior omitiu os estudos de Ptolomeu sobre a posição dos astros para decifrar o destino humano; também a astrologia foi largamente utilizada pelo cosmógrafo real, na era absolutista, para atender aos anseios da nobreza]... A posição de Ptolomeu diante do problema geográfico coincidirá perfeitamente com as necessidades da época em que renascem os estudos de geografia. Inaugurava-se a grande navegação oceânica, a exploração dos mares, de rotas e terras desconhecidas; havia que se preocupar, acima de tudo, com os dados e conhecimentos necessários à realização daquelas tarefas. A cosmografia se tornará o capítulo principal da geografia, e com ela a cartografia em que se concretiza. E ambas terão desenvolvimento que todos conhecem, desde a segunda metade do século XV”. (CAIO PRADO JÚNIOR, Aires de Casal, o pai da geografia brasileira, e sua Corografia Brasílica, in “Evolução política do Brasil e outros estudos”, São Paulo: Editora Brasilense, 1966). Diante disso, é evidente que o positivismo, que é tipicamente moderno e tende para as especializações, não podia introduzir a geografia junto às demais ciências, tampouco enquadrar objetivamente suas extensas descrições de mundos “bizarros” e “exóticos”, habitados muitas vezes por monstros e canibais, pelos quais arrojados viajantes desbravavam e tanto fascinavam a curiosidade do europeu “civilizado”: um verdadeiro almanaque de informações, coleções e catalogação de fatos etnográficos, botânicos, zoológicos, climatológicos, mineralógicos, geomorfológicos, etc.
De certa forma, o positivismo pagou todos os pecados da herança iluminista e do cientificismo do século XIX, e, mal interpretado, por seu viés ostensivamente conservador, tornou-se vilão da ciência, ou, na melhor das hipóteses, vulgarizador dos vícios e limitações da escola naturalista (que também bebeu na fonte positivista), quando, na verdade, o positivismo nada mais foi do que uma filosofia da história arrastada pelo turbilhão de seu tempo. Sob uma atmosfera preconceituosa, não sem alguma razão, a grande contribuição de Comte (juntamente com a do socialista Saint-Simon) para a história das ciências, isto é, a inauguração da sociologia (ciências humanas), quando não esquecida, foi relegada a um segundo plano. Nesse sentido, sim, pode se afirmar que o positivismo abriu as portas do método cientifico para os estudos da sociedade. Todavia, a reconstrução tardia da história da geografia, no intuito de incluí-la no campo das ciências modernas, enquanto disciplina acadêmica regular, absorveu exatamente os preconceitos envoltos sobre o positivismo, do qual avocou sua origem, sem, no entanto, demonstrar fundamentação para isso, e a partir daí se afirmou, contraditoriamente, sob o embaraçoso título de “ciência de síntese”. Ou seja, buscou-se uma identidade científica onde não existia, num conceito vago, e, pior, ia-se num sentido diametralmente oposto ao da modernidade. Em virtude disso, perante as outras ciências, a geografia, na situação mais honrosa, pagaria um alto preço por ser crônica e irremediavelmente um conhecimento superficial. Diante de tal fragilidade epistemológica, incompatível com a tendência de especialização das ciências, a geografia não pôde produzir senão um simulacro científico para o qual, entretanto, serviu de instrumento de racionalização do processo neocolonialista e, sobretudo, da dita “missão civilizadora”. Diante disso, o espaço geográfico, conceito moderno e inexoravelmente vinculado à formação dos Estados nacionais no Ocidente, seria traçado, a ferro e fogo, pelas potências imperialistas, que dividiriam o mundo a seu bel prazer em territórios, possessões e colônias, sob a tutela de suas autoridades. (Nem mesmo Kropotkin e Reclùs foram capazes de perceber, não obstante suas convicções e militância anarquistas, a essência nacional e colonialista inerente à geografia [espaço] e o que isso implicava: o genocídio. Isso porque levaram a sério demais o programa iluminista, não compreendendo a ciência como ferramenta de dominação eurocêntrica, o que os fez pensar a revolução social sob as luzes quando na verdade, se se deixassem guiar apenas pelos ideais anarquistas, de modo irrestrito, teriam de abolir a geografia em nome da liberdade e das diferenças). Assim como na história só há um narrador, o vencedor; também a geografia é a cartografia dos tiranos!
Feitas essas considerações introdutórias, duas correntes paradigmáticas e divergentes, tendo sempre por pressuposto o Império Romano e a “teoria da evolução das espécies”, de Charles Darwin (mas também a teoria de Lamarck), justificaram, cada uma à sua maneira, duas tendências no plano da política e da economia a que conduziriam os rumos do capital monopolista, na segunda metade do século XIX e início do XX: uma fortemente estatal e outra econômica. Vejamos:
A primeira pode ser identificada à tradição germânica na figura de Ratzel e reflete, enquanto contribuição específica na área das ciências geográficas, os esforços conjuntos de intelectuais alemães engajados pelo projeto de unificação e constituição do Estado nacional na Alemanha. Esta geografia de formação bastante eclética – mas longe de ser positivista – tem essencialmente em suas raízes as ideias econômicas e políticas de Fichte e, também, do historicismo alemão, sendo, ora romântica-teológica, ora naturalista-antropológica, fruto “da época mercantilista (tardia)” [expressão de Robert Kurz] que grassou na Alemanha durante todo o século XIX e iria por fim desembocar no nazismo. Assim, o ideal de Estado absolutista estaria na base de suas concepções, pelas quais são totalmente condizentes, num nível ideológico, a uma perspectiva político-nacional alternativa ao laissez-faire, na qual projetava por se sair exitosa e fazer frente na corrida por novos mercados, através da execução de medidas protecionistas e, sobretudo, expansionistas, que visavam instaurar, nos territórios conquistados, o monopólio de matéria-prima e a mobilização de mão-de-obra barata (no limite, escravizada). A perspectiva pessimista de Malthus é então tomada de empréstimo devido à centralidade em que ocupa a agricultura nas relações econômicas e, principalmente, por respaldar o conceito de recurso natural limitado em oposição a um crescimento demográfico ilimitado. É nesse sentido que a ideia de espaço vital ratzeliana ganha força e justificação teórica, compondo assim um importante elemento no agressivo nacionalismo alemão. Imerso nesta atmosfera de matriz mercantilista e malthusiana, Ratzel diverge da opinião consensual de que a civilização está diretamente associada a uma liberdade progressiva das necessidades naturais (instintos). Ao contrário, para Ratzel – e eis o ponto central de sua geografia – quanto maior o desenvolvimento e a complexidade de uma civilização, maior também será a sua dependência em relação à natureza. Para exemplificar de modo didático o que acaba de ser exposto, pode se pensar, primeiro, numa comunidade tribal em que sua subsistência estaria concentrada em atividades muito “simples” e de recursos rudimentares, de “fácil” acesso, como, por exemplo, a extração de madeira, de pedras para o fabrico de ponta de lanças ou abrigo, a pesca, a coleta, a agricultura predatória etc. Já numa sociedade de tipo industrial, diferentemente, os vínculos de dependência com a natureza seriam muitos mais abrangentes e, digamos, drásticos, pois resultam em necessidades refinadas que não podem ser satisfeitas imediatamente senão por meio de expedientes sofisticados que pressupõem um envolvimento cada vez mais “íntimo” de apropriação e transformação da natureza, como poderiam ilustrar as atividades que cercam uma mina de carvão ou uma usina de petróleo e assim por diante. Assim, a evolução de uma civilização é uma questão de grau de adaptação e especialização a um maior número possível de diferentes meios ambientes, fontes de riqueza. Daí que a busca de um determinado grupo humano por recursos naturais é insaciável e inevitável, já que os laços de sua dependência à natureza são sempre crescentes, conforme “evoluem”. Dentro de tal perspectiva, o aumento demográfico aparece como mais um elemento complicador e pode se deduzir que, uma hora ou outra, diferentes grupos humanos entrarão em choque, numa disputa por áreas territoriais, condição imprescindível de sua sobrevivência.
Fundamentalmente, a ênfase da geografia de Ratzel está situada nas relações de força, base do desenvolvimento social ou, se se quiser, do progresso de um povo, e definem num sentido mais amplo sua geopolítica, que nada mais é do que o saque e a guerra. As relações de poder são encarnadas no Estado, que é, dessa maneira, comparado a um organismo vivo que luta ferozmente contra outros Estados, para subjugá-los ou simplesmente destruí-los, com a finalidade de incrementar e assegurar maior extensão do território sob seu domínio (maior diversidade disponível de recursos humanos e naturais).
A despeito de seu corolário sofismático, o escopo de tal argumento é o político, reduzindo a antropogeografia a uma doutrina de fundo biológico da lei do mais forte. Quando o III Reich anexa a Áustria (Anschluss) e ocupa a Tchecoslováquia, Polônia, Dinamarca, Noruega, países Bálticos, Holanda e França, os nazistas nada mais fazem do que por em prática ações que em nada divergem dos ensinamentos de Ratzel. Curiosamente, os ecos mercantilistas iriam orientar perspectivas no âmbito do capital monopolista e do totalitarismo, culminando tragicamente nas duas guerras mundiais. Em vistas disso, Ratzel não pode ser absolvido pelo tribunal da história, a não ser que o fascismo retorne a pautar a agenda política num cenário ultraconservador e, por conseguinte, também a ciência.
A outra geografia a qual me referi é a da escola de Vidal de La Blache. Esta geografia, embora comprometida também com um projeto nacional, no caso o francês, surpreendentemente canta as glórias, por dizer assim, do império britânico. De fato, após a Guerra Franco-Prussiana, a França não podia mais aspirar à condição de potência continental e, desse modo, rivalizar com a Inglaterra na disputa pela hegemonia política e comercial do mundo. Por isso, Vidal de La Blache acolhe as teses do livre mercado formuladas pelo liberalismo clássico e, mais do que isso, encontra no trabalho a fonte da produção de paisagem, enquanto produto do fator social. Nesse sentido, para a geografia vidalina, é o trabalho que modela e transforma a matéria natural, e, desse encontro, engendra um determinado gênero de vida. Vejamos:
Grosso modo, Vidal de La Blache compreende o progresso de uma civilização como uma conquista não de um povo sobre outro, mas do domínio e controle dos elementos naturais (fogo, terra, água e ar). Sob esse pressuposto, a luta pela sobrevivência, entre sociedades humanas e natureza, conduz a um gênero de vida (cultura) que espelha essa relação conflituosa. Dependendo das condições ambientais, isto é, das características do clima, da vegetação, do relevo, da fauna etc., uma comunidade criará um gênero de vida específico e adaptado às circunstâncias naturais em questão. Entretanto, não haveria aí uma relação de consequência intrínseca entre o meio e um gênero de vida – e eis a pedra angular do possibilismo –, pois, como assevera Vidal de La Blache, “as riquezas minerais abundam na China, não fizeram do chinês um mineiro”. O gênero de vida pode então ser decadente, estável ou dinâmico, isto é, quando há movimento inercial ou de superação dos atritos naturais, tendo por efeito estagnação ou autonomia tendencial de um gênero de vida frente aos determinismos da natureza. Neste último caso, a paisagem pode ser totalmente transformada. O fator primordial, e condicionante, é a alimentação, que gera o primeiro traço distintivo entre as populações que habitam a face da terra. Os grupos nômades, por exemplo, desenvolveram uma dieta vinculada às mudanças sazonais, que sinalizavam períodos de caça e coleta ou grandes movimentos migratórios. Após assegurar a provisão de alimentos, de forma relativamente satisfatória, outras necessidades vão surgindo e, possivelmente, supridas, como a carência por abrigos, vestimentas, conhecimento baseado nas observações dos movimentos celestes, das estações do ano etc. Todos estes fatores são respostas de um gênero de vida às adversidades ambientais que, se superadas, representam um passo na conquista da natureza em direção à civilização. Portanto, o meio ambiente fornece a matéria, o gênero de vida, enquanto fator social, o trabalho. Assim sendo, para ilustrar o que foi dito, pode se conceber uma cadeia de montanhas rochosas onde as casas serão feitas de pedras; uma floresta, de casas de madeira; na região ártica, os iglus dos esquimós; e assim por diante. Porém, a cada etapa vencida – por exemplo, o frio é mitigado pela vestimenta etc. – um determinado ambiente, seja ele hostil ou ameno, é tornado habitável e o gênero de vida enriquecido. Todavia, como já se afirmou acima, um gênero de vida pode não responder satisfatoriamente às condições apresentadas e estagnar, simplesmente sucumbir ou seu subjugado por um gênero de vida superior.
Na história da civilização, o primeiro degrau importante na escalada do desenvolvimento social é a descoberta da agricultura e, por consequência, o sedentarismo. A revolução do neolítico não só possibilitou uma inovação da técnica sem precedentes até então, mas, acima de tudo, uma maior independência em relação aos ritmos impostos pela natureza. A vida sedentária implicou uma maior apropriação, pelo trabalho, da terra e, por conseguinte, do cultivo de vegetais e criação de animais. (É interessante notar como do latim a forma nominativa cultura [de colo, e cultus, cultum] formou uma grande família de significados que vão desde “cultivo da terra”, “cultura agrícola”, “reverência religiosa”, “erudição” [culto], “arte”, “educação”, “civilização” etc. De fato, em tempos remotos, a agricultura tinha íntima relação com a religião, que organizava a sociedade, o campo e a cidade [civis, civitas – daí civilização], a política [do grego polis], etc.). Nesse contexto, a domesticação de animais e o plantio, a colheita e o armazenamento permitiram também as trocas de produtos por dois ou mais gêneros de vida e, com isso, uma intensificação significativa da ocupação do solo pela circulação e o intercâmbio de mercadorias.
Como é possível perceber, o que subjaz todo conceito de gênero de vida é o fato de ser uma expressão do ecúmeno (parte habitável da terra pelos seres humanos), que tende, através da civilização, para a universalização (urbe et orbi), à qual se dá por via econômica. Isso ocorre numa escala gradual e não homogênea – não são todos os gêneros de vida que se tornam versáteis. O gênero de vida humaniza a natureza. Numa visão estritamente determinista, o ser humano, dada suas limitações físicas, estaria condenado a interagir com a natureza apenas em regiões restritas, continentais de clima favorável etc. Mas, mesmo sendo um animal terrestre, desprovido de pelagem, garras etc., graças a condições biológicas específicas conferidas pela evolução das espécies (um ser capaz de produzir cultura) e ao desenvolvimento de um gênero de vida, o ser humano supera suas limitações anatômicas e se lança a todas as partes do globo, até conquistar os oceanos, adaptando-se também ao ambiente aquático, através da transformação de elementos estranhos (materiais) que se tornam extensões de seu corpo. (À época de Vidal de La Blache, a aviação apenas engatinhava e a atmosfera era a última fronteira natural a ser conquistada. “Princípios de geografia humana”, livro póstumo, foi publicado em 1921 quando Santos Dumont apenas dava seus primeiros voos). Esta tendência progressiva de tornar habitável regiões da terra até então inóspitas é o que Vidal de La Blache denomina de humanização da natureza. Neste sentido, a importância da circulação é tão grande, enquanto elemento geográfico, que a geografia vidalina é seguramente uma precursora das teorias da globalização (ou mundialização): “Uma das consequências mais importantes do desenvolvimento da rede mundial foi o estabelecimento de contatos que tendem para a formação de uma espécie de economia internacional. (...) De todos esses sistemas de comunicações forma-se uma rede que podemos qualificar de mundial” (Vidal de La Blache). Na corrida regulada pela seleção natural, a evolução da espécie humana passa o bastão para a da civilização (cultura), que tem seu motor nas categorias econômicas: trabalho e circulação.
Tendo em vista o que foi exposto, entende-se porque a geografia de Vidal de La Blache não aspira grandes pretensões geopolíticas. Reflexo das condições da França na virada do século, que, historicamente, durante o colbertismo, optou pela manufatura de artigos de luxo e, no século XIX, apresentava baixos índices de densidade demográfica, o que explica, em partes, sua industrialização tardia (Henri Lefebvre, ao estudar a historiografia revisionista sobre a Comuna de Paris [1971], constatou uma industrialização incipiente numa França majoritariamente rural, fato que o fez pensar na Comuna não como uma revolução proletária, mas urbana), a geografia de Vidal de La Blache parece não ir muito além de um capitalismo mercantil (circulação de mercadorias) e de um panorama rural. Talvez por isso esta geografia enveredou-se por caminhos que buscavam antes afirmar a identidade nacional e territorial, por meio de levantamentos regionais detalhados e reconhecimento de limites fronteiriços (pós Tratado de Frankfurt, 1971), até mesmo para se fazer valer o direito internacional no que diz respeito à soberania territorial de uma nação, conceito chave do Estado moderno.
Assim, a geopolítica em La Blache tem como pré-requisito a conquista da natureza, já assinalado acima. Uma nação é desenvolvida na medida em que desenvolveu um gênero de vida capaz de dominar as quatro forças naturais, tendo, por mérito, adquirido um direito natural de governar, enquanto potência político-econômica, outras nações que não atingiram o mesmo estágio de desenvolvimento na evolução social. Ou seja, quanto maior for seu domínio da natureza, maior também será sua força geopolítica. Na sua época, a nação que enfrentara o maior de todos os desafios naturais da espécie humana, de modo bem sucedido, inclusive vencendo concorrentes poderosos, isto é, a conquista dos mares, era a Inglaterra. (Seria interessante fazer um paralelo com a Guerra Fria, em que, como artifício ideológico e propagandístico, URSS e os EUA se lançaram na corrida espacial que simbolizava não só supremacia tecnológica, mas a do mundo). Neste sentido, para se opor à ameaça crescente representada por uma Alemanha protecionista e beligerante, Vidal de La Blache é o arauto, na França, do livre mercado inglês.
Acredito ter aqui rascunhado minha interpretação sobre o essencial das duas correntes que dividiram a geografia justamente quando esta se empenhava em adequar-se às exigências da ciência moderna no âmbito das humanidades. A despeito de seus esforços, o fato é que a geografia fracassou no seu intento, e tanto o determinismo quanto o possibilsmo não foram além das fronteiras ideológicas que consistiam em dar sustentação na esfera simbólica, por meio de uma infinidade de mistificações científicas (inclusive do positivismo), às práticas imperialistas dos Estados nacionais que estavam prestes a quebrar o frágil equilíbrio da denominada paz armada. Tal programa foi um fenômeno tipicamente europeu e colonialista.
Não obstante suas implicações ideológicas, para a geografia, ainda hoje, a ciência tem sido um álibi acima de qualquer suspeita e testemunha idônea a favor de seu projeto perverso. Portadora de uma “racionalidade” supostamente neutra e imparcial, a ciência aparece, em última instância, como autoridade máxima em sua qualidade exclusiva de proferir juízos e sentenças “verdadeiras” e, portanto, inapeláveis. Seu impacto, em outras visões de mundo não ocidentais, é tão arrebatador que pode ser comparado a um verdadeiro genocídio cultural. (Não por acaso, a resistência toma forma hoje em fundamentalismo religioso). Detentora do monopólio da verdade, a ciência amordaça vozes dissonantes, substituindo-as por padrões sociais, políticos e econômicos heteronômicos, avalizados pela sacrossanta razão instrumental. Omite-se, porém, a violência histórica, naturalizada pela reconstrução histórica e, principalmente, geográfica, do processo de ocidentalização do mundo. Tanto é, assim, que, mesmo na universidade, supostamente o lugar do livre pensamento, o essencial de todo o legado bibliográfico, filosófico e científico, é assinado por nomes de autores estrangeiros, principalmente, franceses, alemães e ingleses (não por acaso nacionalidades relativas às principais nações imperialistas, desde a Revolução Industrial). (Sem contar o embaraçoso e inútil Abstract a que toda tese ou artigo científico está obrigado a submeter no prólogo do texto. Seria o caso de se indagar se alguma universidade ou revista científica estadunidense constrange seus pesquisadores a escrever um resumo em seus trabalhos em língua portuguesa!) A imposição destes padrões aparece como superioridade cultural, ainda que não admitida expressamente mas de modo sorrateiro, para a qual encontra amplo amparo numa espécie de subserviência “nativa”, até mesmo por grande parte de uma intelectualidade mais crítica. (Ao escrever isso, me vem à memória a importância da obra de Eduardo Viveiro de Castro, como forma, dentro da academia, de relativizar estes padrões).
Por tal crítica, não se quer propor que simplesmente se abandone as contribuições positivas da ciência. Ao contrário – poder-se-ia listar aqui, só no campo da medicina, inúmeros e inegáveis benefícios à humanidade, em que se pese ainda a influência da indústria farmacêutica. Mas que se questione, sim, o discurso teleológico e imparcial, situando seu contexto geográfico e histórico, bem como suas implícitas finalidades políticas e econômicas, que permeiam sua profissão de fé supostamente desinteressada.
No caso da geografia, o quadro é ainda mais grave, pois, sem ao menos alçar a reputação do status de ciência, pela sua própria condição fragmentada (clássica, enciclopédica, humanista, universal), a geografia tenta a todo custo se legitimar enquanto ciência e, ao ir longe demais e perder o chão, constata a impossibilidade de tal anseio, consolando-se, então, com o papel servil de agente ideológico do Estado (ao atuar no segundo e terceiro escalão do planejamento e, principalmente, no ofício pedagógico e doutrinário). Desacreditada pelas demais ciências (inclusive, o positivismo) e pela irrelevância de sua produção acadêmica perante a sociedade, todavia, resta-lhe, à geografia, unicamente a esperança de encontrar autoafirmação numa insistente e redundante apologia da geografia, à qual parece ganhar sentido somente dentro da própria corporação profissional e nos congressos de geografia, verdadeiras torres de Babel, cuja única finalidade parece ser apenas o de “bater meta” no currículo Lattes. Este corporativismo, que mais se assemelha a uma ordem jesuítica, desvinculado do real, delirante, alienado da sociedade e da natureza, não pode produzir senão uma catequese doutrinária, vazia e laudatória de si mesma, exultante ao apego da autoridade e de repulsa às atividades criadoras, cujos efeitos assemelham-se a uma cortina de fumaça às voltas de um acirrado jogo de política departamental. Sua insistência em formar um consenso em torno de sua cientificidade, ainda que falsa, e na retórica sobre a importância da geografia ou do “espaço” para se “entender a sociedade”, apenas escamoteia seus insucessos e desvia o foco de sua realidade burocrática e clientelista.
Enfim, a geografia crítica até esboçou uma dura resistência à vocação da geografia na defesa dos interesses dos poderosos, mas, nas atuais conjunturas sociais, de ascensão conservadora, foi cedendo terreno e quase totalmente aniquilada dos estudos de geografia, os quais muitas vezes até ensaiam uma crítica radical para, no entanto, salvaguardar cuidadosamente os valores mais retrógrados que sedimentam o status quo. Não é por coincidência que, justamente quando o fascismo e a intolerância crescem no mundo inteiro, cresce também o interesse e os estudos pela obra de Ratzel – com o intuito de absolvê-lo, enquanto grande pensador no panteão das ciências, das críticas justas como as que já feitas por Nelson Werneck Sodré e outros.
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Para resumir, pode-se considerar, de maneira bem esquemática e redutora, mas de bastante utilidade sistemática, a geografia de Ratzel fundamentada no espaço (político), enquanto a de Vidal de La Blache, na paisagem (trabalho). Desde meu trabalho de conclusão de curso, tenho procurado refletir no espaço geográfico através do binômio espaço X paisagem, enquanto categorias contraditórias e dialéticas, porém, sem levar muito longe, ainda, todas as derivações daí surgidas. Independente desta perspectiva, o fato é que o espaço geográfico não é um dado natural, mas uma realidade social, político e econômica datada historicamente. Para a geografia voltar a ter relevância, é preciso ter sempre em conta e, ao mesmo tempo, recusar seu papel histórico de apoio à atuação dos Estados nacionais, bem como abandonar sua pretensão científica (vontade de ciência), assumindo de uma vez por todas sua total ausência de método e de produção caótica de conhecimento (o mapa (anexos) é, portanto, o único recurso epistemológico que confere caráter de geograficidade a uma pesquisa em geografia), e, por último, romper para sempre os grilhões que a aprisionam à cartografia, instrumento imprescindível do Estado na repressão e manutenção da ordem social. Para responder satisfatoriamente as questões mais fundamentais que tangem a humanidade, isto é, sociedade de classes e sociedade-natureza, a geografia deve implodir-se e renascer, como Fenix, de suas próprias cinzas, enquanto conhecimento holístico, interdisciplinar e artístico. Porém, isso é, talvez, assunto para um outro ensaio.
Deixo aqui transcritos alguns excertos (anotações) do estudo realizado das obras RATZEL, F., “Ratzel: Geografia”, São Paulo: Ática, 1990; e VIDAL DE LA BLACHE, P., “Princípios de geografia humana”, Lisboa: Cosmos, 1954.
Pontos problematizados no texto:
- geografia não é uma ciência positivista;
- geografia é herdeira da cultura renascentista;
- querela do século XVII (Querelle des anciens et des modernes);
- Ratzel mercantilista e La Blache liberal.
Os comentários entre colchetes [...] são observações minhas.
[Um conceito importante que não deu para falar ontem é o de ecúmeno, que é uma noção formulada pelos gregos e que significa a parte habitável em relação ao todo da superfície da Terra. O possibilismo vai no sentido da universalização do ecúmeno, superando assim os determinismos naturais].
[Não esquecer que tanto a geografia de Ratzel como de Vidal de La Blache justificam, cada uma ao seu modo, um projeto nacional].
Noção de gênero de vida:
Rousseau: “Os homens, até então errantes nos bosques, tendo adquirido uma situação mais fixa, aproximam-se lentamente, reúnem-se em diversos grupos e formam, enfim, em cada região uma nação particular, unida pelos costumes e pelos caracteres, não por regulamentos e por leis, mas pelo mesmo gênero de vida e de alimentos e pela influência comum do clima” (A origem das desigualdades entre os homens).
Gênero de vida – conjunto de adaptações ou elementos materiais e espirituais que são transmitidos pela tradição, hábitos e costumes, assegurando o domínio da natureza pelas sociedades humana. [Essa definição pode ser substituída tranquilamente pelo conceito de cultura].
La Blache e Ratzel: evolução = progresso
LA BLACHE, “Princípios de geografia humana”.
XVI – Costumes dos habitantes merecem especial relevo nas narrativas e compilações legadas pelos quinhentistas, porém, quando não é o maravilhoso, é o anedótico que nelas predomina (...).
(Atenção: o livro é todo permeado de ilustrações e exemplos concretos que não transcrevi aqui)
- Distribuição da espécie humana na superfície da terra.
- Grupos moleculares – estão na manifesta dependência da natureza da natureza das regiões. Tal como as plantas definham por falta calor ou de umidade, assim os grupos humanos se encoscoram (criar rugas) em idênticas condições.
- Grupo nomadizantes – estão em determinada relação com uma certa porção de espaço. Tem noção ou reivindicam espaço próprio.
- Relações dos grupos entre si.
- Acumulação in situ – só a vida sedentária dá consistência à ocupação do solo.
- Os grupos e os meios.
Sob este nome de meio, grato à escola de Taine, sob o de environment, de emprego frequente na Inglaterra, ou mesmo sob o de ecologia que Haeckel introduziu na linguagem dos naturalistas (...). O homem faz parte deste encadeamento; e nas suas relações com o que o rodeia, ele é, ao mesmo tempo, ativo e passivo.
[Taine era positivista e bastante determinista. Ecologia: descrição do meio em função das características do ser que nele reage]
- No ponto de vista geográfico, o fato de coabitação, quer dizer, o uso comum de um certo espaço, é fundamento de tudo.
- Adaptação das plantas e dos animais ao meio.
- Este poder dos meios faz com que os seres vivos procurem adaptar-lhes, usando das faculdades de que dispõem.
- A adaptação equivale a uma economia de esforços que, uma vez realizada, assegura a cada ser, por um dispêndio mínimo, a realização tranquila e regular das suas funções.
- Algumas experiências mostram que plantas transportadas da planície para a montanha eram capazes de, em poucos anos, modificar os seus órgãos exteriores, de modo a relacioná-los com o novo habitat.
- Adaptação do homem ao meio.
- Darwin notara que quanto mais baixo está um grupo humano na escala das civilizações tanto mais é incapaz de aclimatação.
- Formação dos grupos étnicos complexos.
- Acima de todos estes fenômenos, que vivem e atuam às nossas vistas nas diversas partes da Terra, paira a influência soberana dos meios. (...) Mas deste exemplo conclui-se também a importância do que podemos chamar o fator social.
- Enquanto certos meios nos mostram grupos entricheirados e como encerrados numa ciosa autonomia, outros, pelo contrário, imprimem às sociedades que lá se formara um cunho de sincretismo que, sem dúvida, é e será cada vez mais a marca da humanidade futura.
(...)
Em suma, realizou-se um trabalho que representa outros tantos ensaios independentes para resolver em comunidade o problema da existência sob a pressão das influências geográficas. (p. 175).
[Aqui a palavra “trabalho” foi sublinhada por mim].
No entanto, quer sejam pobres ou ricas, estas coleções evocam sociedades que viveram e evoluíram, que sofreram tanto a ação do tempo como a dos lugares (p. 175)
Quando uma ideia metódica presidiu à classificação, não tardamos a compreender que uma relação íntima une os objetos de mesma permanência. Isolados, impressionam-nos apenas pela sua bizarria; agrupados, revelam um caráter comum. Pouco a pouco, pela comparação e pela análise, o cunho geográfico concretiza-se. (p. 176)
Mas, sob a influência dos diversos meios, a atividade e a indústria humana orientaram-se em sentidos divergentes; agiram sugestões locais, e, para efetivar os desígnios que surgem, foram imaginados instrumentos. Em suma, realizou-se um trabalho. (p. 175)
[“Trabalho” sublinhado por mim].
A emancipação do meio local não é assim tão absoluta quanto no-lo fariam crer os nossos olhos citadinos. (178)
Tipos de alimentação
De todos os caracteres pelos quais os homens se distinguem e se assinalam entre si, este é o que mais impressiona os observadores primitivos, como são prova bastante os nomes de ictiófagos, lotófagos, galactófagos, que nos legou a nomenclatura dos antigos, as indicações etnográficas de Heródoto sobre os povos da Cítia, ou a menção de antropófagos prodigamante espalhada nos mapas do séc. XVI. (195)
(...) a nossa intenção é mostrar como persistem, sob este aspecto, certas influências do meio. (195)
O homem cinzela e amolda a matéria bruta; comunica à pedra e aos metais as formas plásticas que lhe convêm; mas relativamente às espécies vivas, sobretudo quando se trata das plantas anuais mais sensíveis e mais submetidas ao seu cuidado vigilante, ele faz mais. Cada momento da evolução daquelas oferece-lhe a oportunidade de intervir; e daí, penetrando, por assim dizer, na intimidade do seu ser, identificando-se com elas, consegue modificar numa certa medida as operações sucessivas dos seus ciclos de existência. (213)
Os materiais de construção
- Madeira, pedra etc.
Os estabelecimentos humanos
Uma cidade, uma aldeia e as casas são um elemento descritivo; quer se considerem as suas formas e os seus materiais, a sua adaptação a um modo de vida, rural ou urbana, agrícola ou pastoril, as povoações esclarecem as relações do homem com o solo. Há, pois, uma grande variedade de estabelecimentos humanos; mas importa abrangê-los em conjunto para dar a cada elemento e lugar que lhe convém. (239)
- Modificação da paisagem – Assim, pelo princípio de combinações, tanto o arranjo como a composição das paisagens foram modificados. O homem reuniu à sua volta das habitações um conjunto compósito de árvores e de plantas, enquanto, longe da periferia habitada, dispunha o espaço para as suas culturas. (254)
- Habitat
A evolução das civilizações
- Modos de vida diretamente inspirados no meio ambiente.
Lançai em seguida um olhar à vossa volta; vede essas regiões de alta civilização, onde os nossos campos, os prados e mesmo as florestas são, em partes, obras artificiais, onde nossos companheiros, animais e vegetais, são exclusivamente aqueles que nós escolhemos, onde os produtos, os instrumentos e o material são mais ou menos cosmopolitas. (273)
(...) Entretanto, cada um destes tipos de civilização provém de desenvolvimento que têm as mesmas raízes. Foi no meio ambiente que, por toda a parte, os grupos de homens começaram a buscar os meios para prover às necessidades de sua existência. (273 e 274)
- Civilizações primitivas
Todavia, mesmo aí o instrumento que supre o que falta ao homem em força e velocidade aparece em toda a parte como um germe donde, por muito rudimentar que seja, pode sair, sendo favoráveis as condições, uma longa sucessão de progresso, como um ato de iniciativa, uma força de vontade. (174)
[“Vontade” é um conceito clássico da filosofia que está associado à liberdade].
Contudo, a natureza age só como estímulo. Ao criar instrumentos, o homem tinha em vista um desígnio. (174)
Há com certeza desigualdades e graus diversos na invenção, mas, por toda a parte, o estudo do material etnográfico denota engenho, mesmo num círculo restrito de ideias e necessidades. (174)
A mão do oleiro indígena, na Guiana assim como no Peru, molda a matéria ao sabor da sua fantasia e das suas necessidades. (275)
Assim, através dos materiais que a natureza lhe fornecia, e, por vezes, a despeito da rebelião ou da sua insuficiência, o homem procurou realizar certas invenções, fez arte. (276)
Obedecendo aos seus impulsos e aos gostos próprios, humanizou, para seu uso, a natureza ambiente, e assim vemos, em graus diversos, uma série de desenvolvimentos originais. (276)
Estas civilizações rudimentares, que nos reportam aos períodos arcaicos das nossas próprias civilizações, são já, não obstante, um ponto de chegada, um resultado de progresso, para os quais contribuem visivelmente a iniciativa, a vontade e o sentimento artístico. (276)
- Estagnação e isolamento
Nas próprias regiões de civilização avançada, o círculo dos modos de vida fechou-se. As riquezas minerais abundam na China, não fizeram um chinês um mineiro. (277)
[Nessa passagem, há claramente uma reação ao determinismo geográfico].
- Caráter geográfico do progresso
Todavia, há partes da Terra onde, através de muitas vicissitudes, os progressos só raramente foram detidos, onde, e não sem acidente, o facho foi passado de mão em mão. A que se deve este privilégio e por que existem tais diferenças? Há, nestes fatos, uma distribuição relativamente à qual as cousas geográficas não devem ser estranhas. (285)
- Os núcleos
Roma teve o seu celeiro no Egito (Anteriormente, na Sicilia. N.T.), tal como a nossa Europa urbana e industrial tem o seu para além dos mares. (278)
[Justificativa do imperialismo moderno tendo Roma como exemplo].
A convergência de formas de configurações e de relevo, a proximidade de regiões descobertas e de regiões arborizadas, prepararam um concurso de relações e de energias geográficas que nenhuma outra região do globo conheceu no mesmo grau. (288)
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Heidegger sobre o “grande estilo”, em Nietzsche:
“O grande estilo é o sentimento mais elevado de poder. (p. 114)
Se a arte tem sua essência propriamente dita no grande estilo, então isso significa agora medida e lei, não são colocados em vigor senão na subjugação e na contenção do caos e de elemento próprio à embriaguez. (p. 115)
A arte do grande estilo é a quietude simples da subjugação que preserva a suprema plenitude da vida. (p. 115).
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A circulação
- Os meios de transporte – 1. O homem
Em todas as regiões onde o destino o levou, o homem empenhou-se desde o princípio na resolução dos problemas do transporte e circulação. Para isso, utilizou inicialmente as possibilidades que lhe oferecia o próprio corpo, e a adaptação deste aos instrumentos que foram inventados para lhe servirem de auxiliares foi a primeira causa de diversidades. (291)
- A estrada (Cap. II)
A estrada imprime-se no solo, semeia germes de vida: casas, lugarejos, aldeias, cidades. (307)
A rede de estradas reais com que Colbert e mais tarde o departamento de Pontes e Calçadas dotaram a França foi a expressão do Estado centralizador, cuja força se fazia sentir fortemente desde a capital às fronteiras. Os caminhos de carro que Napoleão construiu no monte Genebra, no monte Cénis e no Simplo, ligando mais intimamente a Itália ao corpo da Europa, abririam campo a novas relações. (315)
A estrada é o instrumento empregado pela colonização europeia nos seus primeiros passos. (315)
A via romana é sobretudo uma obra de imperialismo, um instrumento de domínio que aperta nas suas malhas todo um feixe de regiões diversas e longínquas. (313)
[Estradas transpões obstáculos da natureza. Mas de certa forma, Vidal de La Blache se serve da via romana para naturalizar a circulação de pessoas e mercadorias do mundo moderno].
- Os caminhos de ferro (Cap. III)
- A ideia nacional e estratégica
Os nossos velhos países da Europa tiveram de lutar contra outras dificuldades. Não fora em vão que vários séculos de história haviam trabalhando para fixar a configuração dos Estados e o sítio das cidades. (326)
Cada Estado abordou a construção dos caminhos-de-ferro segundo as suas necessidades e os seus meios. (326)
A Inglaterra insular, mais avançada do que o continente no caminho da indústria e mais familiarizada com o poder do seu crédito, decidiu-se resolutamente, e logo Birmingham e Liverpool realizaram a ligação entre o principal foco industrial e o seu principal centro de comércio. (326)
[“poder do seu crédito”, sublinhado por mim].
A Rússia teve como primeiro cuidado a ligação direta das suas capitais, e, de 1843 a 1851, construiu a linha de Petersburgo a Moscou; e somente mais tarde se empenharia na luta contra o seu principal inimigo, a distância. A ideia estratégica de conservação, de defesa, impôs-se como uma necessidade primordial na maior parte dos países da Europa. (326-327)
Em cada ser é instintivo prover antes de tudo à sua segurança pessoal: os Estados não constituíram exceção. (327)
- A origem das linhas férreas
Os dois elementos que constituem o caminho de ferro – o carril e a locomotiva – tiveram pátria comum. Foi os locais onde era necessário efetuar o transporte de matérias pesadas que principiou a usar os carris. Nas minas da Grã-Bretanha, a zona sobre calhas funcionava debaixo da terra antes que se tivesse visto estender à superfície a fita de vias férreas. (319)
É inseparável dos fatos precursores, nos quais se manifesta nitidamente, sob impulso da natureza, o gênio mecânico da raça. (E sobretudo peculiares condições de estrutura e conjuntura econômicas, sociais e de civilização. A criação da rede ferroviária, como a da indústria elétrica no fim do século XIX, realizou-se em período de movimento de baixa dos preços de longa duração [até cerca de 1850] e foi o motor da inflexão para a alta que triunfa de 1850 a 1872. Foi Jean Lescure quem melhor explicou a gênese e a função econômica do caminho-de-ferro). (319)
Sete linhas irradiam de Paris para a Inglaterra, a Bélgica e a Alemanha, para o Oceano Atlântico (Nantes) e para o Mediterrâneo (Marselha). E a estas acrescentavam-se pelo título primeiro da lei de 11 de julho de 1842, uma linha de Bordeus a Marselha e uma outra de Lião a Mulhouse. A ideia basilar é a da unidade nacional. (328)
- Correntes internacionais do antigo mundo
Uma das consequências mais importantes do desenvolvimento da rede mundial foi o estabelecimento de contatos que tendem para a formação de uma espécie de economia internacional. (333)
[Aqui La Blache já concebe a ideia de globalização ou mundialização, que pode ser entendida como a universalização do ecúmeno].
Formou-se e desenvolve-se na Europa uma política internacional dos caminhos-de-ferro, cuja ideia essencial é o avanço para o leste, como na América é o arranque para o Ocidente. (334)
[A circulação é um elemento essencial em La Blache, assim também para Ratzel – difusão].
- Grandes linhas marítimas e grandes linhas continentais.
Conclusão
Assim atua, desmentindo ou ultrapassando as previsões, uma força geográfica de que nada permitia apreciar efeitos. De todos esses sistemas de comunicações forma-se uma rede que podemos qualificar de mundial. (344)
O que devemos ver na variedade dos obstáculos vencidos é o desejo de realizar adaptações capazes de reduzir ao mínimo tudo o que anexa o tráfico de produtos alimentares, e de molde a evitar à circulação o maior número possível de transbordo e de gastos acessórios. (345-346)
Em consequência desta penetração íntima dos países, deste contato universal a que bem pouco ainda escapa, há em toda a parte uma carga a transportar, transações a efetuar, necessidades a satisfazer. E é assim que um fermento novo se introduz a atua em todas as regiões do globo. (346)
O MAR (Cap. IV)
- A origem da navegação marítima
Pelo seu corpo, órgãos e aparelho respiratório, o homem é um ser terreno, agarrado à parte sólida da terra. (347)
Se unicamente as terras oferecem o homem a possibilidade de imprimir o seu cunho, de enraizar as suas obras, não obstante, mercê de uma série de conquistas nas quais resplandece a centelha do gênero humano, os mares foram abertos a uma circulação sem limites. (347)
O instinto do caçador, a experiência do montanhês adquirem-se e transmitem-se individualmente, ao passo que nos domínios dos mares, onde, em enormes distâncias, nenhum ponto de referência fere os sentidos, foi só pela ciência que o homem alcançou encontrar as rotas capazes de diminuir os riscos. (347)
De todas as atrações, a mais poderosa para a humanidade primitiva foi provavelmente a exercida pela pesca. (347)
Revelou-se outro ponto de vista logo que o comércio se desenvolveu. É a vantagem que oferecem as superfícies ilimitadas dos mares para o transporte longínquo e a preços módicos dos produtos do solo ou da indústria. Indubitavelmente, a riqueza só pode resolver-se em terra, e porque há Babilônias e Egitos é que existem Fenícias; mas é o mar que traz os metais da Hespéria e das Cassitérides até estas longínquas sociedades orientais. (349)
Uma vez confiada a mercadoria aos porões do navio, algumas centenas de quilômetros a mais ou a menos pouco importam. (348)
- Frete baixo
- A navegação à vela
O emprego da força mecânica do ar para vencer a resistência a água, quer dizer, a vela, continha o germe de todos os progressos futuros. (348)
- Domínios de navegação
O mar torna-se o traço de união por excelência. (354)
Só o mar é capaz de permitir o estabelecimento de comunicações regulares e permanentes entre as diferentes ecúmenas distribuídas à superfície das terras. (354)
- A ideia da hegemonia pelo Oceano
Com a fusão dos domínios marítimos num conjunto ilimitado de mares e de oceanos, aparecem novas perspectivas políticas mal desponta a aurora dos tempos modernos. Os sonhos de hegemonia mundial, cuja a exiguidade dos continentes e com os limites impostos pelas suas configurações geográficas, deixaram de parecer quimeras. O império dos mares parecia realmente poder ser conquistado por um povo. Um contemporâneo de Cromwell, Sir James Harrington, tinha encontrado um nome que convinha: Oceana (J. A. Froude, “Oceana or England and her colonies”, Londres, 1866). A ideia de hegemonia, fermento sempre ativo nas criações da geometria política, ampliou-se à medida dos oceanos. (356)
Que se tenha formado em Londres um entreposto universal onde, durante muito tempo, a indústria das outras nações teve de abastecer-se, é a lição que demonstra, pela primeira vez, a força de transporte que o mar podia pôr à disposição do homem. (358)
- Relações continentais
A terra e o mar aprenderam assim a penetrar-se entre esses dois mundos que se tocam, o contato transformou-se em aproximação íntima. (358)
Essas mudanças que a geografia física constata entre os climas, realiza-as a geografia humana com os produtos. Este novo estado, que é o resultado do progresso das comunicações, da indústria do despertar de atividade, tem, como natural, o seu eco na política. Tantas novas forças entraram em jogo que o estabelecimento de uma hegemonia única deixou de corresponder às possibilidades e possivelmente às concepções mais ambiciosas. Outros impérios coloniais foram fundados ou se preparam lado a lado daquele que é ainda o maior de todos. (359-360) [Refere-se à Grã-Bretanha]
O movimento e a vida aceleraram-se consequentemente. (361)
(Abismos oceânicos)
Só temos uma arma para entrar neste mundo fechado. É o espírito, apetrechado pela ciência, capaz de invenção, estimulando hoje pela consciência mais nítida de tudo quanto oculta energias à volta de nós. No mundo dos mares, como no dos ares, as conquistas do espírito e as aplicações práticas a que deram lugar são os mais altos símbolos da grandeza do homem. (361)
É por elas que se torna verdadeiramente cidadão do mundo e as modificações operadas pela ciência são as mais rápidas: a utopia de ontem é a realidade de amanhã. (361)
“Vidal de La Blache falou das combinações entre boas e más áreas em nosso solo, são associações de gêneros de vida entre os quais se estabeleceu uma troca de serviços – sem excluir a frequência das migrações” (Sorre)
RATZEL
Apresentação: Tonico
[Embora particularmente eu considere esta apresentação um dos melhores textos escrito sobre Ratzel, tenho alguns pontos de divergência que me proponho a discutir].
A importância de sua obra também emerge por ela ter sido uma das originárias manifestações do positivismo nesse campo do conhecimento científico. (7)
Temas como o Estado, das relações internacionais, das fronteiras, ou da guerra, entre outros, estão no centro de suas considerações. (8)
Ratzel escreve inclusive um trabalho com o título até então inédito, de Geografia política. (8)
De acordo com Ratzel, a perspectiva telúrica diferenciaria a ótica do estudo geográfico. Essa disciplina teria por campo material a Terra, abarcando, porém, a análise do homem, posto como um ser “terrestre”.
- ciência humana e da Terra.
Geografia: geografia física, biogeografia e atropogeografia.
Estas três vertentes da ciência geográfica foram concebidas como estudos sintéticos (que buscam relações entre fenômenos diversificados) e explicativos (capazes de gerar leis), que, por sua vez, subdividir-se-iam em variadas geografias especiais – tópicas e descritivas. A unidade do conhecimento geográfico estaria assegurada na perspectiva telúrica, a Terra associando os fenômenos dos três reinos da realidade.
O tema mais fundamental de indagação dos geógrafos seria o da questão da influência que as condições naturais exercem sobre a humanidade, ou, em outras palavras, das condições que a natureza impõe à história.
1ª. Ação da natureza sobre a humanidade; 2ª. Distribuição e difusão dos povos sobre o espaço; e 3º. Formação dos territórios (conceito capital).
- natureza-ser humano – difusão-distribuição – território
Também a ideia de predestinação dos lugares, elaborado por Ritter, foi alvo de seu ataque, ao qual não escaparam as colocações deterministas de Montesquieu.
O homem, na concepção de Ratzel, é um ser da natureza que possui instintos, necessários e aptidões. – “animal favorecido”: liberdade – É um ser terrestre, que a Terra como “mãe provedora”, “sua morada”, enfim, como suporte de sua vida. (11)
Os condicionamentos da natureza são, portanto, atuantes na vida material dos homens através de suas necessidades, como recursos. (11)
A influência das condições naturais não seria o motor da história, sua única causa. Ratzel acata explicitamente a ideia da “força da densidade”, formulada por Comte e trabalhada por Durkheim.
Ratzel – materialista.
Não transita em sua argumentação nenhum elemento de metafísica ou de subjetivismo. (12)
O positivismo domina completamente a concepção ratzeliana do método a ser assumido pela antropogeografia. A adesão de Ratzel a esse método é explícita e ele afirma textualmente que nos autores positivistas, pela primeira vez no panorama do conhecimento humano, a questão das influências vai aparecer de uma forma científica. (“O estudo do qual nos ocupamos aqui encontra sua particular e ampla aplicação por obra dos filósofos positivistas franceses” [Ratzel, “Geografia dell’uomo”, Turim, Frafecli Bocca, 1914]).
[É provável que Ratzel tenha mais em vista o positivismo de Taine do que de Comte. Porém, entendo que o positivismo não é um método, mas uma doutrina filosófica, uma apologia das ciências, uma filosofia da história. O método científico, isto é, experimental, foi desenvolvido por Galileu Galilei, entre os séculos XVI e XVII].
São inúmeras as passagens que Ratzel elogia Comte, de quem vai tomar a visão orgânica de sociedade, a concepção do método científico, além de vários conceitos como, por exemplo, a “força da densidade” e “meio intelectual”. Outros autores positivistas, especialmente historiadores como Taine e Spencer, são bastante citados em seus trabalhos. Enfim, pode-se tranquilamente identificar Ratzel como seguidor da “filosofia positivista”, sendo um dos seus introdutores no seio do debate geográfico. (12)
A evidência mais fundamental dessa filiação ao positivismo está no fato de Ratzel professar o princípio da unidade do método científico, isto é, a existência de um único método comum a todas as ciências – aos quais seriam, consequentemente, definidas por seus objetos próprios. Esta postura positivista introduz um acentuado ranço naturalista na própria antropogeografia de Ratzel, à medida que descaracteriza as qualidades próprias dos fenômenos humanos e impele sua análise para a analogia com os procedimentos das ciências naturais (a física fornecia o modelo, por excelência, do método científico). Dessa maneira, a geografia dedicada ao estudo dos fenômenos humanos foi por ele equacionada de dentro dos cânones metodológicos da análise da natureza. Tal reducionismo naturalizante – comum a todo positivismo – acentuou-se pelas características próprias da ciência geográfica, que por si mesma já alimentava esta visão associativa entre fenômenos naturais e sociais. (12)
[Para mim, o pensamento de Ratzel é muito mais uma mistura do romantismo (alemão) e do naturalismo do que uma filiação consciente ao positivismo. Não se pode atribuir ao positivismo todo o cientificismo do século XIX que já vinha desde o iluminismo. Esse positivismo vulgarizado, de Spencer, Taine, Lombroso e outros, não pode obscurecer a maior contribuição de Comte {juntamente com Saint-Simon}, que é a fundação da sociologia, marco inaugural das ciências humanas. Tal afirmação, não quer dizer que se acolhe as ideias do positivismo mas apenas que se reconhece sua importância na história das ideias].
- antropogeografia – “ciência empírica” – observação e indução.
Ratzel se posicionou radicalmente contrário ao uso de procedimentos dedutivos, ao levantamento de hipóteses lógicas e à especulação em geral.
O trabalho deveria partir da descrição minuciosa, de quadros espaciais circunscritos, vistos como conjuntos de elementos diferenciados entre os quais os fenômenos humanos. À descrição seguiria a comparação tendo por meta a classificação.
[Aqui me parece que há uma contradição com o que será dito mais à frente: que a obra de Ratzel é dedutiva].
- indução – geografias especiais – a classificação seria o limite destes estudos tópicos.
De posse desses resultados, o pesquisador deveria retornar à escala local e à consideração de um povo específico, tentando identificar aí os nexos causais existentes.
[Outra contradição, se Ratzel se posiciona contra a metafísica, então não caberia em seu método “identificar os nexos causais existentes” que foram tão combatidos pelo empirismo de Hume e que são próprios do racionalismo e da metafísica. Na verdade, tal concepção de conhecimento fundado na classificação e no princípio da causalidade (matéria, forma, essência etc.) vem muito mais de Aristóteles e do aristotelismo da escolástica, dos árabes e da Renascença, do que da ciência positiva propriamente dita].
Visão da causalidade – nó górdio – Ratzel: mais um condicionamento que um determinismo rígido
[A causalidade foi banida do materialismo vulgar e da filosofia empirista inglesa, como herança da metafísica. Qual a diferença entre condicionamento e determinismo?].
- determinismo – evolução das sociedades humanas
- causa e efeito
A visão positivista de causalidade introduz um empobrecimento na formulação ratzeliana que anula sua rica e complexa proposta do objeto.
[Rica e complexa proposta do objeto? Que proposta? Que objeto? A superfície terrestre? A “visão” de causa e efeito não é positivista, mas aristotélica (escolástica) e racionalista. Não sei, posso estar enganado, mas tenho a impressão de que aqui há uma confusão entre aristotelismo e positivismo. A noção de causalidade, em Comte, não seria própria ao estado metafísico? (Tenho que pesquisar mais). Já a classificação, no positivismo, é uma parte do método científico mas não aquilo que o caracteriza (a experiência). A propósito, dentro do quadro evolutivo das ciências, em Comte, que vai do geral, a matemática, ao particular, a sociologia, a geografia não tem lugar. Penso que a geografia se adequaria mais às ciências astronômicas. A geografia dos séc. XVI e XVII (e talvez XVIII), ou melhor, a cosmografia, era um conhecimento tão genérico que incluía até a astrologia. Sem dúvida, os representantes mais renomados do positivismo, Durkheim e Mauss, nunca aceitaram a geografia como uma ciência de fato e, para entenderem as relações entre sociedade e espaço (natureza), conceberam a morfologia social. Este embate, entre positivistas e geografia, foi pormenorizadamente descrito por Lucien Febvre. Porém, é Febvre que parte em defesa da geografia, não a de de Ratzel – “manual do imperialismo”, mas a de La Blache].
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“A visão positiva dos fatos abandona a consideração das causas dos fenômenos (procedimento teológico ou metafísico) e torna-se pesquisa de suas leis, entendidos como relações constantes entre fenômenos observáveis” (Introdução a Auguste Comte, Os Pensadores).
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- normatização mecanicista – as condições naturais passam a ser vistas como o locus da determinação, como elemento de causação a partir do qual a história humana se movimenta.
- sociedade – elemento passivo – que reage a uma causalidade que lhe é exterior.
O homem torna-se, assim, efeito do ambiente.
- traduzir em leis as influências das condições naturais sobre a evolução dos povos.
Ele alertou com clareza que a expulsão generalizadora na antropogeografia não poderia se valer do recurso à matemática e à experimentação como outras ciências. (14)
[Comte, que era engenheiro de formação, entendia a sociedade como uma física social, embora regida por leis próprias (moral) em um contexto de leis universais (matemática), e sendo uma particularidade da biologia, ciência imediatamente anterior à sociologia. Já a sociologia durkheimiana se vale bastante da estatística para estudar os fenômenos sociais].
- leis “advindas da paciência”
Ratzel: geografia – ciência em formação.
Após haver apontado a “força da densidade” (crescimento populacional) e a “força do meio” (o condicionante ambiente) como os elementos desse processo, Comte, segundo Ratzel, constrói sua teorização levando em conta apenas o primeiro fato. (14)
[Vale novamente lembrar que Comte é o fundador das ciências humanas. Em Comte é a divisão do trabalho que é fator de progresso, mas ele recusa veementemente a redução do social ao fator econômico, que ele conhecia de sua leitura dos liberais clássicos. (A divisão do trabalho será central na sociologia de Durkheim). Ratzel me parece, como todo o historicismo alemão, muito mais um mercantilista (ou, no máximo, um fisiocrata), e sua demografia me parece mais próxima de Malthus do que dos positivistas. Dessa perspectiva malthusiana resulta o conceito de espaço vital de Ratzel].
Ratzel vai superestimar o “condicionante ambiente”. Observa-se, assim, uma inversão de perspectivas: Comte, preocupado com a formulação de uma sociologia, desprezou a ação dos fenômenos naturais; Ratzel, às voltas com a elaboração de uma geografia do homem, minimizou os fenômenos especificamente sociais. Nos dois casos, o método impele a análise para uma concepção unicausal. (14)
[Ao superestimar o “condicionante ambiente”, o tal condicionante não se torna um determinismo! Não será só um jogo de palavras?].
A própria tradição do pensamento geográfico forneceu-lhe embasamento. Os autores pioneiros do processo de sistematização da geografia moderna equacionaram a problemática dessa ciência em moldes naturalistas. Para Humboldt, o homem era um elemento a mais da paisagem, sendo esta o objeto de interesse do geógrafo. Na proposta de Ritter, a tese da “predestinação dos lugares” ocupa um lugar essencial, evidenciando o determinismo natural ali defendido. Na concepção kantiana, o estudo geográfico estava limitado à analise da natureza, na medida em que os fenômenos humanos constituiriam o campo da antropogeografia. Peschel entendia a geografia como estudo das formas existentes na superfície terrestre, estando o homem englobado apenas enquanto criador e transformador de tais formas. Os exemplos poderiam se multiplicar, todos, apontando para uma ótica naturalista. (14-15)
Ritter é a inspiração de Ratzel.
(...) há uma continuidade temática nítida entre os dois autores. (15)
Ratzel: Seu aprendizado universitário havia versado, basicamente, nos campos da geologia e da zoologia. (15)
Aluno de Haeckel – formulação ecológica
Este pensador, um dos introdutores do evolucionismo na Alemanha, exerceu viva influencia sobre as ideias de Ratzel. (15)
- ecologia – associação dos organismos entre si e com o meio
Amizade com Moritz Wagner
A análise das obras de Ratzel mostra ainda que seu conhecimento da produção da natureza do século XVIII e da primeira metade do século XIX era considerável. (15)
Ratzel: geógrafos-“evolucionistas”; antropólogos-“difusionistas”
Na verdade, Ratzel elogia bastante Lamarck, de cuja obra vai tomar a teoria da adaptação e muitos elementos do conceito de meio (ao qual adiciona contribuições de Comte e Haeckel). (16)
De todo modo, não há como negar uma certa ótica evolucionista que permeia o raciocínio ratzliano. (16)
- Filósofo Herder (XVIII) – romantismo – crítico do iluminismo
Ratzel antiiluminismo – iluminismo, cosmopolitismo e universalismo.
No cerne da crítica à Ilustração, um ideal nacionalista – (...) – alimentava as formulações dos dois autores. (16)
Herder – “mais artista que cientista” – o homem em unidade com a Terra; história: “uma geografia em movimento”; Terra – “teatro da humanidade” (Ratzel)
Essa visão herderiana foi também explicitamente assumida por Ritter. (17)
Ele (Ratzel) endossou plenamente a concepção de progresso de Heder.
No que tange a discussão do método, Ratzel foi bastante crítico com relação ao filósofo, cujas considerações nesse particular ele avaliou como “não-científicas”, num juízo distinto do de Ritter. (17)
Eis as principais correntes do pensamento ratzilano. No nível do objeto, a filosofia da história de Herder e a geografia comparada de Ritter. No nível do método, a filosofia positivista de Comte e a ecologia de Haeckel, principalmente. (...) Dessa maneira, na proposta de Ratzel relaciona-se com orientações díspares: temática vem do idealismo transcendental, e seu tratamento é proposto em moldes positivistas, tendo por modelo os estudos das ciências da natureza. A antropologeografia visava realizar um projeto teórico romântico com um instrumental positivista. (17)
[Herder, poeta, filósofo, teólogo, era de fato um romântico, apesar de ser aluno de Kant. Mas o “idealismo transcendental” ou, melhor, o realismo kantiano, não é romântico, embora tenha originado o tipo de romantismo como o de um Schopenhauer. Mas, antes, originou o idealismo alemão de Fichte, Schelling e Hegel, que, principalmente neste último, é um recrudescimento do iluminismo (razão e lógica) e, portanto, não é romântico. Entendo que o idealismo transcendental não é, rigorosamente, romântico.].
Ratzel inaugurou alguns problemas (dualismos).
Na verdade ele chegou a elaborar, se bem que de forma assistemática, uma teoria da história, em que o Estado vai aparecer como agente privilegiado de impulsionamento do progresso.
- unidade da espécie humana
A aceitação do racismo, de certa forma, fecharia a possibilidade de uma explicação geográfica da história ao colocar a chave de sua interpretação num patamar da biologia. (20)
Ratzel, “As raças humanas”: pretensiosa e atrevida teoria da evolução. (16)
Destarte, a divisão existente na humanidade seria aquela entre os “povos naturais” e os “povos civilizados”.
Civilização – “a soma das conquistas cultas” – produto histórico – progressivo intercâmbio entre os homens e a natureza. – “Utilização consciente da natureza”. “Firme apoio da natureza”. Liberta da produção espontânea.
Povos naturais – produção espontânea.
Os dons da natureza passam, com a civilização, a ser resultantes do trabalho humano.
Trabalho humano – “imitação da natureza”, um fator do domínio de seus recursos e de suas condições.
[Os fisiocratas também entendiam o trabalho como fonte de riqueza, mas somente aquele trabalho relacionado à agricultura [do grego, physis é “natureza”]. Para Smith, é o trabalho em si – subjetivo, força de trabalho – toda a fonte de riqueza].
“Energia do povo” – motor fundamental do progresso. Seria a associação de tal energia com a fertilidade do meio o elemento explicativo central do variado desenvolvimento da humanidade. (21)
As condições naturais do meio aparecem como um dos fatores do progresso. (21)
Ratzel só é rígido na avaliação das condições de penúria absoluta dos recursos ambientais, segundo ele, sem alguma riqueza não há momento de descanso e sem esses não existe possibilidade de progresso intelectual. (21)
As condições naturais são entendidas como estímulo ou freios ao desenvolvimento dos povos. (21)
O condicionamento natural também manifestar-se-ia, tomando-se um outro exemplo, através de estímulos como aqueles que demandam o trabalho coletivo e a divisão do trabalho que, para Ratzel, constituem necessidades benéficas à civilização. (22)
- complexidade de formas de cooperação social – elemento primordial do progresso civilizatório – diferenciação social como elemento de progresso (similaridade com Durkheim).
Formas complexas de associação – família ao Estado.
“Força da densidade” – progresso – “favorabilidade do meio” – mobilidade na superfície terrestre – evolução dos povos – excedente econômico – meio mais pobre para outro mais fértil.
- difusão espacial – vital para o progresso. (coerentes)
- “Coerência”, isto é, os movimentos como os de colonização ou de expansão contígua que matem laços com um centro irradiador (as formas de difusão “incoerentes” seriam, exatamente, aquelas que levam à “desagregação” do grupo social). (22)
- Mobilidade dos povos – acelera o curso da história.
- Patrimônio cultural – acumulação in situ.
a) Exaustão do meio pelo uso intensificado dos povos civilizados. Ratzel denomina “incremento das áreas étnicas”. (23)
b) pressão demográfica.
- Miscigenação é positiva em Ratzel.
Daí a visão de Ratzel da “unidade telúrica” entre história da humanidade e a do planeta. A Terra é posta como substrato indispensável da vida humana, sua condição de existência. (23)
[Isso me parece óbvio. Não é possível imaginar a existência da vida humana, pelo menos nas condições atuais e anteriores, fora do planeta Terra].
O espaço, segundo ele, encerra as condições de trabalho da sociedade, que aumentam progressivamente com o seu desenvolvimento. (23)
- “ser terrestre” – “teatro” – “unidade telúrica”.
De tal modo que a civilização, ao libertar os povos do domínio do meio, os torna mais dependentes dele. Logo, a questão do domínio do espaço ocupa um lugar central na história. (23)
- dois conceitos fundamentais: território e espaço vital.
- O território seria, em sua definição, uma determinada porção da superfície terrestre apropriada por um grupo humano. (23)
Observa-se que a propriedade qualifica o território, numa concepção que remonta às origens do termo zoológico e na botânica (onde ele é concebido como área de dominância de uma espécie animal ou vegetal). (23)
O conceito de espaço vital Ratzel toma de Fichte, e lhe dá maior substantivação. (23)
[Fiz uma pesquisa e não encontrei o conceito de “espaço vital” (Lebensraum) em Fichte. É mais provável que o termo tenha sido mesmo cunhado por Ratzel e em Fichte é apenas um esboço. De fato, as concepções econômicas de Fichte eram mercantilistas [ver Kurz, em o “Colapso da Modernização”] e os nazistas tinham neste filósofo um dos principais precursores do ideário do nazista, que ia desde o ocultismo à ufologia. O mercantilismo tardio na Alemanha era mais uma forma ideológica de se opor ao liberalismo inglês [ver Pierre Rosanvallon, em “O liberalismo econômico: história da ideia de mercado”, sobre publicações de livros mercantilistas na Alemanha do século XIX] e daí a justificativa de um Estado forte (absolutista). Acredito que a oposição dos nazistas ao capital financeiro vai na mesma linha. Era mais uma forma de ocupar terreno no cenário geopolítico e justificar os interesses do Estado alemão].
- espaço vital – necessidade territorial – equipamento tecnológico – efetivo demográfico – recursos naturais disponíveis.
Seria assim uma relação de equilíbrio entre a população e os recursos, mediada pela capacidade técnica. (23)
A defesa do território é entendida como um imperativo da história, a qual passa a ser delineada como uma luta pelo espaço. (Nota: Semelhante à luta pela vida, cuja finalidade básica é obter espaço, as lutas dos povos dão-se quase pelo mesmo objetivo. Na história moderna a recompensa pela vitória sempre foi, ou tem pretendido ser, um proveito territorial {Ratzel apud Sodré, N. W. “Introdução à geografia: geografia e ideologia”}).
O direito de um povo a uma dada porção da superfície terrestre repousaria no trabalho ali despendido e, principalmente, no poderio bélico. (23)
Tanto a propriedade quanto a luta são colocadas como naturais à história. (23)
Com relação à propriedade, Ratzel, aproximou-se das colocações de Locke, argumenta que seu fundamento está no trabalho, definindo-se a posse pelo esforço de se tirar um objeto da natureza. (24)
[Isso me parece contraditório com tudo o que foi dito até aqui. Se a fonte do progresso em Ratzel é o Estado, a conquista, o espaço, então não cabe eleger uma categoria econômica (trabalho) como fundamento da propriedade. Gostaria de ver a fonte dessa afirmação].
Ratzel também considera a violência, guerra e a conquista como componentes naturais da história humana. (24)
[Mais uma vez uma ontologia do político].
- guerra – povos naturais X povos cultos.
- povos naturais – saque e escravidão.
- povos cultos – conquistas territoriais.
Nesse juízo o elogio ao colonialismo adquire uma clareza meridiana. (24)
A identidade étnica é recompensa daqueles que possuíram energia para conter as forças em expansão, pois, segundo Ratzel, é a luta que faz merecer a liberdade (outro raciocínio que sub-repticiamente, justifica a escravidão como resultante da fragilidade social). (24)
- conquista é inevitável.
Além de inevitável, ela é benéfica em sua opinião, pois impele o conquistado a um estágio superior de civilização. (24)
A fé na positividade do progresso é tão forte em Ratzel que ele chega a defender explicitamente o trabalho compulsório como acelerador de tal processo. (25)
[“trabalho compulsório” eufemismo de escravidão. Novamente, o que define o trabalho para os liberais é trabalho livre, assalariado, isto é, o trabalho enquanto mercadoria].
Ele afirma que a sede dos povos conquistadores é o hemisfério norte e o Ocidente, definindo as demais localidades da Terra como “áreas de expansão”. (25)
As formulações ratzelianas a respeito do desenvolvimento histórico da humanidade desembocam numa teoria do Estado. (25)
[Ou seja, a ênfase é o político e não o econômico].
O aparecimento do Estado é, inicialmente, posto como um momento no processo civilizatório. (25)
A sua existência é, na verdade, o principal elemento diferenciador entre os povos naturais e os civilizados; sua gênese é vista, assim, como ponto de inflexão da história humana. (25)
O surgimento do Estado demandaria já um certo patrimônio cultural acumulado e teria por pressuposto a delimitação do território. (25)
Isto porque a defesa do espaço vital da sociedade seria, segundo Ratzel, a causa e a função precípua de sua existência. (25)
Ele afirma que, quando a sociedade se organiza para defender o seu território, ela se transforma em Estado. (25)
Seu aparecimento, por outro lado, resulta num aumento da coesão social do grupo. (25)
- O Estado se torna autônomo
O Estado subjuga a sociedade – “egoísmo político”.
Torna-se, finalmente, o agente primordial do processo histórico, acabando por monopolizar integralmente a arena política. (25)
- “Apetite territorial”
Sua lógica intrínseca é garantir e aumentar o espaço vital. (25)
É pautado nessa lógica que passa a dirigir o conjunto social, por estabelecer uma meta que se coloca acima dos interesses particulares dos grupos existentes numa sociedade já civilizada (logo complexa). (27)
É ela que comanda e organiza os objetivos de “todo o povo”, na inevitável luta com as demais nacionalidades. (25)´
É a respeito de tais juízos que Durkheim, comentando um texto de Ratzel, afirma: “Ao observar a exposição da política contida em sua geografia parece-nos ouvir falar um romano, que não veria para seu país glórias maiores que as conquistas” (Durkheim, E., “Ratzel – La mer comme source de la grandeur dês peoples”).
Vê-se que a formulação de Ratzel atribui à essência do Estado aquelas características latentes do Estado alemão no período bismarkiano. (26)
- O belicismo expansionista – tutela integral da sociedade.
- intelectual orgânico da política dos junkers.
- situação alemã – elo débil da cadeia imperialista.
- relatividade das fornteiras (seu caráter circunstancial – inevitabilidade da guerra)
[Essas características são latentes?]
Febvre e Sion definem a geografia política de Ratzel como “um manual do imperialismo”.
Sobre a retomada das teorias ratzelianas pelos nazistas pode-se consultar a obra citada do Nelson Werneck Sodré.
- Kulturkampf
Resta salientar que, em sua produção empírica, Ratzel não consegue realizar os horizontes teóricos propostos. (26)
No nível do trabalho empírico, Ratzel, em grande parte, não conseguiu ir além de uma “geografia de posição”. (26)
[Último texto da coletânea: descrição minuciosa de uma localidade].
- princípios normativos contidos na proposta de Ratzel:
- ciência de síntese
- unidade – perspectiva telúrica: superfície terrestre
- (caráter não sistemático) não “excepcionalidade”
- adesão ao método científico
- peculiaridade do objeto – ciência de contato entre os fenômenos naturais e sociais
- ciência empírica (indutivo)
Tais princípios, que na verdade reforçam preceitos de autores anteriores (notadamente Humboldt e Ritter), se agregam profundamente no pensamento geográfico posterior. (27)
Ratzel – precursor da geografia humana (de matriz predominantemente francesa) que surge em oposição à sua proposta).
Ratzel também vai influenciar, aí de uma forma antagônica desse embate: a “escola determinista” de Semple, Huntington e outros. (27)
De qualquer modo, observam-se as ideias de Ratzel presentes nos dois polos da principal polêmica geográfica da primeira metade do século XX. (27)
Em termos de metodológicos, seu pioneirismo reside na introdução explícita do positivismo. (27)
[...!]
............................................................
“Ratzel se propõe a estudar todas as influências que o solo pode exercer sobre a vida social em geral. Um tal projeto é quimérico” (Durkheim).
.............................................................
A questão da influência das condições naturais sobre o desenvolvimentismo dos povos perpassa todo o trabalho ratzeliano. (27)
Ratzel:
12. Karl Ritter – “Como disciplina histórica, a geografia até hoje não passou de uma mistura variada, sem qualquer lei interna; sob o peso de escórias que a recobrem, aguarda polimento que deverá transformá-la num sólido corpo científico” (Karl Ritter). (...) Karl Ritter tem o mérito de haver reforçado o laço insolúvel que liga a geografia e a história, reconhecendo a importância geográfica dos problemas que constituem o terreno comum às duas ciências, abrindo assim um amplíssimo campo do estudo à geografia. (46)
- espaços terrestres
- cartografia histórica – Ortelius (2ª. metade do XIX)
Para perceber a simples relação que se dá entre a superfície estável da Terra e a humanidade em transformação sobre ela, Karl Ritter deveria ter abandonado a concepção tecnológica, a partir da qual ele considera os processos históricos como partes preordenadas de um grande plano de educação da humanidade. (48)
A escola de Ritter progrediu, vivificando o árido material de estudo e do ensino da geografia que se limitava a nomes e cifras. (49)
34. A geografia do homem é uma ciência descritiva – Assim como toda a geografia, também a geografia do homem é principalmente uma ciência descritiva. (94)
Por isso um bom trabalho descritivo pressupõe a existência de uma classificação (...). (95)
35. A classificação antropogeográfica – A vida dos povos e dos Estados que possuem territórios semelhantes entre si apresenta também fenômenos análogos entre si que são por isso suscetíveis de uma classificação antes de prosseguir no estudo científico. (95)
36. O método indutivo – A classificação representa o primeiro passo do método indutivo. (...) O mapa etnográfico representa o instrumento de indução próprio da geografia do homem. (96)
- Geografia comparada – Ritter
Mas estaremos correspondendo melhor à verdadeira natureza da geografia, se à geografia de Ritter demos simplesmente a denominação de “sintética”. (96)
Se para a geografia a possibilidade do estudo experimental fosse tão ampla como para as outras ciências, a necessidade do procedimento comparativo seria menor. (97)
[Ratzel, de fato, estabelece a comparação e a classificação para se chegar à indução, como um critério de cientificidade. Mas a analogia indutiva é uma generalização não de casos gerais e conhecidos, mas particulares e desconhecidos, e conduz sempre a conclusões apenas prováveis e, muitas vezes, equivocadas. Se através da observação constato que as folhas das plantas são verdes, não posso inferir daí que todas as coisas de cor verde são folhas de planta. Ou se observo que todos os animais que têm bico são pássaros, não posso afirmar que um ornitorrinco é um pássaro. No método científico, o salto indutivo permite apenas a formulação de hipóteses. (Assim como o raciocínio dedutivo também, contudo, de modo inverso, partindo do universal e conhecido, sendo melhor empregado para formular leis). Porém, é apenas uma etapa do procedimento científico. É a experimentação que vai testar a hipótese, e confirmar ou não sua validade. Ratzel tem plena consciência deste princípio da ciência (a experiência), porém, reconhece a impossibilidade de aplicá-lo à geografia. Sem desconfiar, acaba por destituir, contraditoriamente, toda a cientificidade da geografia].
(...) impossível a repetição experimental dos fenômenos da vida com dimensões telúricas. (97)
Para o estudo destes fenômenos só pode servir o experimento que nos apresenta a natureza mesma mediante o repetir-se de processos análogos em condições diversas de posição, de espaço e geográficas em geral. (97)
[Ratzel atribui uma cientificidade inerente à natureza esquecendo que o método cientifico é uma criação histórica e social, não natural].
Do que se deduz que a geografia deve realizar um amplo trabalho de comparação sem deixar de examinar um só ângulo da Terra (Nota). (97)
[Mas, reproduzindo o próprio Ratzel, as próprias “dimensões telúricas” tornam impossível a comparação e o exame de todos os ângulos da Terra!].
- Nota: Já Comte indicou explicitamente como um dos métodos da sociologia o experimento indireto, isto é, o estudo de certos desvios de desenvolvimento normal de um determinado fenômeno. (97)
Se é verdade que a geografia observa os mesmos fenômenos que são estudados também por outras ciências, seu método contudo se distingue sempre por esta sua tendência natural a ampliar seu ângulo de visão, a realizar uma observação que eu diria hologeica, isto é, que abarca toda a Terra. (97)
[Enquanto as ciências – e o positivismo – tendem a especialização, Ratzel propõe exatamente o movimento inverso do proposto por Comte].
De tal forma que da comparação nasce a síntese, cuja legitimidade, ou melhor, cuja necessidade dentro do estudo geográfico nasce da difusão de alguns fenômenos para toda a Terra, ou pelo menos para uma grande parte dela. (97)
[A geografia, no sentido de Ratzel, no máximo poderia aspirar apenas à condição de ciência de probabilidades. Por exemplo: se houve um terremoto em determinado lugar, é provável que num outro lugar de condições semelhantes possa ocorrer também um terremoto].
Em uma época como a nossa, na qual, em consequência da especialização, cada ciência se fraciona em grande número de pequenos estudos particulares, é uma verdadeira felicidade que na geografia, este fracionamento não seja todavia muito acentuado, de tal modo que o estudo aqui possa ser sempre iniciado e conduzido sobre bases de amplitude geral, permanecendo a possibilidade de descobrir materiais de estudo completamente novos. O que porém não nos pode levar a esquecer que o método natural da pesquisa antropológica é sempre aquele que impulsiona pela determinação exata dos fenômenos singularmente considerados. (98)
38. Necessidade de uma visão retrospectiva à história da Terra – natureza inorgânica e os fenômenos da humanidade – parentesco telúrico (ambos têm sua raiz na Terra).
- evolução
- nexo entre a Terra e a humanidade
(...) a influência ou não do território e todo o ambiente físico exercem sobre a história, sobre os povos, sobre os Estados, sobre a sociedade humana. (100)
Neumann, baseando-se na falta de um nexo entre a divisão do gênero humano em raças e as condições geográficas presentes, tira daí a conclusão segura de que a etnografia científica deve se apoiar unicamente no exame comparado das línguas. Mas se este cientista fosse levado a examinar um vale árido, estaria ele impedido de constatar a falta do nexo visível entre este efeito e uma outra causa qualquer não mais visível, ou não teria ele também tentado encontrar uma causa determinada, que tivesse dado lugar à formação do vale e tivesse mais tarde cessado? Do mesmo modo deve-se dizer que para a antropologia o problema de como se deva explicar a difusão dos povos não é isolada, mesmo
que nas atuais condições não pareça possível aqui solução. (10)
- antropogeografia – difusão da espécie humana.
22. As influências do ambiente físico se modificam com a história – (...) Com isso ele vai se tornando sem dúvida mais independente da sua constituição natural. (71)
Contudo, para conquistar esta liberdade é necessário por outro lado que utilize habilmente os recursos que a natureza circundante oferece. Portanto esta liberdade no fundo não é senão um dom da natureza, não porém um do espontâneo, mas tal que deve ser conquistado a duras penas. (71)
A afirmação de que os povos vão se tornando gradativamente cada vez mais independentes da natureza que constitui seu substrato e seu ambiente é sem dúvida errônea. (71)
- (não é liberdade absoluta)... na medida em que a atividade econômica dos povos está ligada mais intimamente do que qualquer outra à natureza do país onde se manifesta. (71)
- progresso da civilização – importância da vida econômica
A denominação de “povo primitivo” (povo natural) não indica um povo que vive na relação mais íntima possível com a natureza, mas antes um povo que, se se nos permite a expressão, vive sob o império desta. Ora, alguns etnógrafos sustentam que o progresso da civilização não consiste senão em maior libertação do povo das condições naturais do território; ao contrário, podemos afirmar que as diferenças entre povo primitivo e povo civilizado deve ser buscada não no grau mas no tipo de ligação que existe entre o homem e a natureza. A civilização é independente da natureza no sentido da completa liberdade, mas no sentido de uma ligação mais diversificada, mais ampla e menos imperiosa. (72)
Examinar mais fundo a natureza e desfrutá-la com mais perspicácia não servem para nos libertar dela, mas para tornar mais independentes de cada uma de suas manifestações ou influências acidentais, pelo fato de se multiplicarem assim os nossos laços com ela. (72)
3. O povo e o seu território
23. O território e a sociedade – Que o território seja necessário à existência do Estado é coisa óbvia. Exatamente porque não é possível conceber um Estado sem território e sem fronteiras é que vem se desenvolver rapidamente a geografia política (...). (176)
- com o Estado, estamos tratando de uma natureza orgânica. (176)
(...) os Estados dependem, em forma e tamanho, de seus habitantes, isto é, eles conformam à mobilidade de suas populações, tal como se expressa especialmente nos fenômenos de crescimento e declínio. Um certo número de pessoas está ligado à área do Estado. Elas vivem em seu solo, dele retiram seu sustento e, além disso, estão ligadas por relações espirituais. (176)
- o povo – corpo vivo.
As populações estão em contínuo movimento interno. Ele se transforma em movimento externo, para diante ou para trás, quando se ocupa um novo trecho de terra ou se abandona uma possessão. (177)
- causa especiais
Nesta causa espacial há duas tendências alargamento e reprodução, ambas operando continuamente como estímulos à mobilidade. (177)
Aos motivos já citados, acrescenta-se um terceiro, o sistema, ou a natureza das relações do Estado com o território que determina o ritmo do crescimento e, em particular, a estabilidade do seu resultado. (177)
[Não quero aqui, com minhas críticas à pseudocientificidade da geografia, reivindicar uma condição rigorosa de ciência à geografia. Não. Na verdade, a ortodoxia do método científico é uma construção da filosofia da ciência e não existe e nunca existiu (somente existe nas pesquisas medíocres que jamais descobrem nada e só repetem aquilo que já se sabe). O que proponho é o contrário, isto é, a negação da insistência da geografia tal e qual uma ciência como a engenharia. Na verdade, proponho a abolição do estatuto científico da geografia de uma vez por todas, algo que, diga-se de passagem, já acontece na prática. Portanto, mais arte e menos ciência!].
[1] Na biblioteca positivista consta apenas O dicionário geográfico, de Rienzi, e O resumo de geografia universal, de Malte-Brun. Este último, grande compilação de dados sobre a superfície da Terra para a qual serviu de modelo a muitos trabalhos posteriores em geografia.