Quevedo não merece
Por Osorio de Vasconcellos | 25/05/2009 | Crônicas"Amor constante más allá de la muerte" Cerrar podrá mis ojos la postrera Mas no, de esotra parte, en la ribera, Alma a quien todo un dios prisión ha sido, Su cuerpo dejará no su cuidado; (Francisco de Quevedo – 1580 – 1645 )
Sombra que me llevare el blanco día,
Y podrá desatar esta alma mía
Hora a su afán ansioso lisonjera;
Dejará la memoria, en donde ardía:
Nadar sabe mi llama el agua fría,
Y perder el respeto a ley severa.
Venas que humor a tanto fuego han dado,
Medulas que han gloriosamente ardido:
Serán ceniza, mas tendrá sentido;
Polvo serán, mas polvo enamorado.
Quevedo
não
merece
Coube a Francisco de Quevedo incorporar toda a poesia do amor ao termo “enamorado”.
Considerai o poema do bardo madrileno, reproduzido à epígrafe, de onde destaco estes versos imortais:
“Serán ceniza, mas tendrá sentido;
Polvo serán, mas polvo enamorado.”
A magia da palavra “enamorado” vem daí e se estendeu por muito tempo a “namorado”, seu parente carnal.
Muitos hão de lembrar-se da época em que primeiro se namorava, para depois noivar.
Namoro e noivado eram penhores aceitos na expectativa do resgate que a sociedade contabilizava em contas de compensação, até o o pagamento final na boca do caixa: o casamento.
Ninguém garante que a transição ponto a ponto fluísse serenamente como as fases da Lua, mas é indisfarçável o caráter acautelatório da gradação.
Assim, no regime antigo a poesia dispunha de algum tempo para penetrar o “sangue” e a “medula” dos namorados e sustentá-los na síntese do sentimento, durante todo o processo.
Como a poesia cambaleia, não tem mais cabimento a mediação acautelatória de antanho. Nada impede, conseqüentemente, iniciar hoje por onde se terminava outrora, isto é, na boca do caixa.
Com uma ressalva. “Na boca do caixa”, no regime antigo, era uma metáfora. Hoje, nem tanto.
Do ponto de vista moral, não tenho pedras a atirar. Nada mais suspicaz que a indignação moral, nada mais demodé que um moralista.
Que mudem os costumes. Que se façam concessões crescentes à materialidade. Afinal, o arbítrio é livre, pelo menos até o ponto em que o deixa de ser.
O que se lamenta é o emprego distorcido e cínico da palavra “namorados”, para designar parceiros íntimos em uniões analíticas e ocasionais.
Quevedo não merece.