Quem são as mães das vítimas de incesto?

Por Laura Affonso Costa Levy | 13/02/2009 | Direito

Quem são as mães das vítimas de incesto?

Laura Affonso Costa Levy [1]

Introdução

O interesse pelo tema do presente estudo surgiu a partir da amplitude e importância do assunto. Nossa inserção em outros espaços da rede social enquanto idealizadores do respeito dos Movimentos de Direitos Humanos, de Direitos das Crianças e das Mulheres também contribuíram para o interesse por esta investigação.

O Direito, hoje, não pode mais permanecer sozinho, como forma de ciência, mas sim deve valer-se de outras áreas de atuação para ampliar seus conhecimentos e alargar suas conquistas. Assim, o presente trabalho utiliza-se de termos provindos da psicologia, bem como material bibliográfico da mesma.

O interesse despertado não se dá só em relação às subjetividades destas mulheres e meninas vitimadas, mas à dinâmica da família e do contexto social e comunitário em que estavam inscritas. Ao vislumbramos às mães das vítimas de incesto, desvelou-se uma outra realidade: a de que também elas, as mães, tinham sido vítimas de abuso sexual em sua infância, memórias só agora resgatadas (Narvaz, 2001).

A fala destas mães, além de denunciar a experiência de abuso sexual sofrida, revelou-nos que mantinham na atualidade relacionamentos conjugais também abusivos, em que seus parceiros, geralmente abusadores de drogas psicoativas, as agrediam física e/ ou psiquicamente. Estas mulheres relatavam situações de dependência financeira e pouco suporte da família extensa ou da comunidade, o que, segundo elas, as mantinha numa posição de desvalia, isolamento e submissão aos abusos sofridos tanto elas próprias como suas filhas, dificultando atitudes mais assertivas de proteção a si e as suas filhas( Narvaz, 2001).

Algumas indagações então vêm se colocando em nossa prática e são objeto de investigação nesta pesquisa: quem são as mães das vítimas do incesto? Quais as histórias de vida destas mulheres? Seriam vítimas dos abusos masculinos ou cúmplices do incesto? Que estratégias têm utilizado para o enfrentamento da violência? De que recursos dispõem? Investigar o funcionamento e a articulação dos diversos níveis dos sistemas familiar, comunitário e social onde se inscreve o fenômeno do incesto nos possibilitará identificar as estratégias de proteção e resistência disponíveis no contexto, bem como suas debilidades, o que viabilizará a proposição de formas de intervenção social e políticas públicas de enfrentamento dessa forma de violação de direitos, daí a relevância do presente estudo para a comunidade científica e social.

O enfrentamento

Nas últimas décadas, a partir dos esforços feministas e dos movimentos de luta pelos Direitos Humanos, muito se tem escrito e pesquisado sobre as violações contra as mulheres e meninas, embora se desconheça em todos os lugares do mundo os dados precisos acerca de sua incidência. Segundo Corsi (1997) e Perrone & Nanini (1998), cerca de 90 % dos agressores nos casos de violência sexual são pais biológicos ou padrastos, sendo que a maior incidência se dá entre as meninas, de cerca de 7 a 11 anos de idade, com 25% de incidência de vítimas menores de 7 anos de idade ( Finkelhor, 1984).

Um dos trabalhos que oferece um cálculo mais aproximado é a pesquisa de Russel (1978), realizada em amostra aleatória de 930 mulheres adultas de San Francisco, USA, em que estimou 28% de abusos sexuais sofridos antes dos 14 anos de idade. Em outro estudo, realizado por Foeken (1989), com 1000 mulheres representativas da população geral, na Holanda, os achados indicaram que 1 de cada 3 mulheres têm experiências de abusos sexuais antes de chegar aos 15 anos e 1 em cada 6 têm experiências de incesto, 3% referindo-se à relação pai-filha.

Já no Rio Grande do Sul, em pesquisa realizada junto a órgãos legais, temos a incidência de cerca de 12,6% de casos de incesto, embora apenas 5 a 10% dos casos sejam denunciados (Flores, 1997). Segundo dados da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do RS, coletados entre os anos de 1997 e 2000 a partir das denúncias feitas ao Ministério Público de crimes contra a criança e o adolescente, a violência mais praticada é a sexual, sendo 72, 34% contra o sexo feminino. Na maioria dos casos que chegaram à denúncia ao Ministério Público (56,25%), o agressor não possuía vínculo familiar com a vítima.

Levantamento realizado pela Delegacia para a Criança e o Adolescente de Porto Alegre entre os anos de 1996 e 1998 para identificar casos de violência sexual familiar indicou que os casos de abuso sexual incestuoso ocorreram neste período em 96% dos casos contra as meninas, que eram virgens( 90%), brancas (80%), entre 10 e 14 anos (56%) e que não ofereceram resistência ( 70%), sendo que estavam em casas apenas com o agressor no momento da violência sexual (80% dos casos). O tempo para a efetivação da denúncia também foi pesquisado, demonstrando que 30% das vítimas levaram de três a seis anos para romper com o silêncio.

Embora os dados sejam apenas parciais, a incidência é alta e relevante em termos os efeitos deletérios produzidas na subjetividade das vítimas e de toda sua família, podendo-se considerar a questão do incesto como um desafio às políticas de saúde, não mais uma questão privada, mas objeto de preocupação social (Marques, 1984). Craine (citado por Zavaschi e cols.,1991) identificou até 50% de casos de abuso em mulheres internadas em unidades psiquiátricas, o que corrobora a questão da vitimização sexual como problema de saúde pública.

A literatura é extensa no que tange aos efeitos e seqüelas da experiência abusiva na infância e adolescência, bem como ao perfil das vítimas e agressores e características das famílias incestogênicas, descritas como patriarcais rígidas e onde parece haver um padrão de transmissão transgeracional( Azevedo & Guerra, 1984; Hermann, 1991; Barudy, 1991; Corsi, 1997; Bravo,1994; Narvaz, 2001).

No nosso cotidiano, encontra-se relatos de intensos sentimentos de desamparo, vergonha e culpa, tanto das vítimas quanto de suas mães (Narvaz, 2001). Um sentimento de distanciamento com o mundo, perda do interesse, dificuldade em conectar-se com emoções, especialmente as associadas à intimidade e sexualidade, além da incapacidade para recordar o trauma, sintomas estes que se acentuariam à medida que o indivíduo se encontrasse em situações que recordassem ou simbolizassem o trauma original têm sido descritos na literatura.( Bravo, 1994; Hermann, 1991; Russel, 1978; Narvaz e cols., 2000)

Para Finkelhor e Browne (1986), os eventos traumáticos vividos pelas vítimas de incesto deformam o conceito se si mesmo, alterando o juízo de realidade e abalando profundamente a auto-estima. Relatam uma profunda descrença e desesperança, falta de iniciativa e de autonomia, mostrando-se excessivamente dependentes e carentes de afeto.

Stern & Perry (1995), através de estudos neuroendócrinos, descrevem as evidências de que a herança genética e os padrões de vínculo são profundamente marcados pelas experiências vividas, especialmente se traumáticas, modificando a estruturação da personalidade e os padrões de conduta através de alteração da arquitetura cerebral.

No que tange à compreensão do papel da comunidade e das mães na proteção às vítimas de incesto, temos poucos e contraditórios resultados. Sattler (1994) relata achados que demonstram terem sido muitas mães de vítimas de incesto também elas abusadas na infância, daí a dificuldade em perceber o que ocorre com suas filhas, quer pelo medo, desproteção, ou pela própria dor, confusão e ambivalência diante da nova situação de abuso. Além disso, estas mães não receberam suporte de suas próprias mães, mostrando-se, na vida adulta, dependentes, emocional ou economicamente dos companheiros, geralmente os agressores sexuais de suas filhas. Ainda assim, segundo a autora, pesquisas revelam que 76% das denúncias de abuso sexual são feitas principalmente pelas mães, sendo que a maioria de fato desconhecia o abuso. Pode-se dizer que, contrariando o mito popular, a maioria das mães não está ciente de que o abuso sexual ocorre (Zavaschi e cols.,1991).

Entretanto, o que ainda se vê é um "discurso de culpabilização" das mães, que traz implícito o desvio da responsabilidade do verdadeiro agressor, uma vez que não se pode atribuir igual responsabilidade a pessoas que tem diferente percentual de poder em um sistema. É preciso avaliar que condições essas mulheres têm de vencer o complô do silêncio que cerca o fenômeno do incesto, onde desempenha igualmente o papel de vítima, e não o de ré (Azevedo e Guerra, 1984; Herman, 1991; Ravazzola, 1997; Edleson & Eisikovits, 1997).

Miller (1994) igualmente destaca essa postura impregnada de preconceitos de gênero, em que mãe e filha são colocadas numa posição de rivais e culpadas, ao invés de vítimas, o que remete à questão das construções de gênero em nossa sociedade que privilegia o comportamento sexual masculino e culpabiliza as mulheres e meninas como cúmplices e sedutoras e, portanto, responsáveis pelo incesto: "Apesar de seus comportamentos sedutores, que constituem uma demanda de reconhecimento de sua existência, de sua desejabilidade, de sua feminilidade, o que a filha demanda ao seu pai é que ele encarne o interdito."( Neuter,1994, p.205).

Felipe (1999), ao denunciar a necessidade de se desvelar a cumplicidade cultural com as práticas violentas da dominação masculina, postula a teoria da cumplicidade da mãe. Segundo ela, são raros os casos de incesto na família acerca do qual as mães não têm conhecimento, silenciando e, inclusive, oferecendo a sexualidade das filhas como forma de garantirem seu sustento e a manutenção da homeostase familiar ( Furniss, 1993).

Outros estudos questionam o papel das instituições sociais, destacando a importância do suporte dos recursos da comunidade como fatores que auxiliam ou obstaculizam tanto os processos de revelação do abuso sexual quanto da permanência das mulheres e crianças nas situações de violência (Fontes, 1993; Cardoso, 1997; Edleson & Eisikovits, 1997).

Referências

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[1] Advogada da área de Direito de Família e Sucessões, atuante no Rio Grande do Sul.

lauranomundo@yahoo.com.br