Quem não crê na impunidade?

Por Felipe Milano Riveglini | 21/02/2016 | Sociedade

            Impunidade é um tema absolutamente corriqueiro no senso comum do brasileiro. Desde as conversas de botequim e os programas de jornalismo policial até os debates na esfera pública, acadêmica e jurídica, a tal da impunidade fica constantemente no centro das rodas vivas.

            Faz sentido que o brasileiro possua a sensação da impunidade. Afinal, vivemos uma época de ampla investigação e cobertura dos crimes ligados ao Estado e, nesse momento, os trâmites legais que relativizam os crimes, reduzem ou anulam condenações e até mesmo inviabilizam investigações, trazem a convicção de que estamos submersos em um mar de impunidade.

            Existe uma relação óbvia entre impunidade e aumento dos crimes. Se não há punição, não há medo em cometer um crime. Claro que não podemos atribuir simplesmente ao medo de ser punido o fator que nos leva a não cometer crimes. Provavelmente essa se quer seja a melhor estratégia de combate à criminalidade. Contudo, é indiscutível que a impunidade presta um desserviço no combate ao crime.

            Nesse universo carregado de estudos e achismos em torno da impunidade, três perguntas ganham relevância:

  1. O que é impunidade?
  2. A quem interessa a impunidade?
  3. A maioria de nós é mais prejudicada ou beneficiada pela impunidade?

Na resposta da primeira pergunta encontramos dois trajetos conclusivos. O primeiro traejeto nos leva à avaliação direta de nossas leis, ou seja, nos submete à análise de nossa estrutura legal punitiva no sentido de percebermos se esta é coerente. Infelizmente, essa é uma rota de difícil consenso, uma vez que confrontará subjetividades. O segundo trajeto nos leva à avaliação da aplicabilidade de nossas leis, isto é, à observação do próprio funcionamento legal.

Nas duas rotas, ficamos absolutamente presos a discussões pautadas em uma espécie de justiça do senso moral e, portanto, sem conexão com a legalidade. Portanto, quase sempre quando discutimos a impunidade não somos se quer conhecedores da própria lei. Mas em suma, podemos definir impunidade nessas duas rotas.

Já na segunda pergunta, nosso senso comum traz mais elementos. Afinal, a quem interessa a impunidade? Muitos diriam que interessa ao estereótipo clássico do bandido que assalta à mão armada colocando a vida de todos nós em risco constante. Outros diriam que interessa aos que possuem o poder político e o usam em benefício próprio, para ser mais objetivo, estou falando de corrupção. Há também os que afirmariam que a impunidade interessa aqueles que são detentores do poder econômico sob o argumento de que apenas pobres são punidos no Brasil.

Tentemos pensar a impunidade sob outra perspectiva. Deixemos a impunidade dos outros de lado e foquemos em nossa impunidade. Toda vez que fazemos a opção de beber e dirigir, estamos acreditando na impunidade. Toda vez que ultrapassamos os limites de velocidade em uma via e apenas reduzimos nos pontos com fiscalização, seja pelo fato de já conhecermos a via ou pelo fato de utilizarmos alguma tecnologia que nos orienta em torno disso, estamos acreditando na impunidade. Toda vez que compramos atestados para abater no imposto de renda, estamos acreditando na impunidade. Toda vez que mentimos no currículo, estamos acreditando na impunidade. Toda vez que permitimos que nossos filhos copiem e colem textos de outras pessoas e entreguem a um professor como se eles mesmos os tivessem produzido, estamos acreditando na impunidade. Toda vez que estamos sem vontade de ir ao trabalho e vamos ao hospital apenas para conseguir um atestado e poder faltar naquele dia, estamos acreditando na impunidade.

A maioria de nós é mais prejudicada ou beneficiada pela impunidade? Creio que a resposta para nossa terceira pergunta não seja tão difícil. Assim como muitos de nós brasileiros temos a coragem hipócrita de ir às ruas contra a corrupção sem olhar as pequenas corrupções que praticamos, não tenha dúvida de que muitos de nós desfrutamos também dos privilégios da impunidade.

Em escalas menores, cremos na impunidade quando cremos piamente no jeitinho brasileiro, quando cremos que chegar atrasado é charmoso, quando cremos que só um papelzinho jogado no chão não afetará o nível de poluição da cidade, quando cremos que não deixar o fiscal entrar em nossa propriedade para verificar focos de dengue seja um direito, quando cremos que fazer barulho no condomínio após às 22 horas de vez em quando não mata ninguém.

A crença na impunidade é generalizada. No fundo não queremos punidade, queremos apenas punir a tudo que é ilegal e está distante de nosso usufruto. Predominantemente, nosso falso ódio manifesto da impunidade não está em um senso de justiça, pois ele não defende direitos iguais. Quase sempre, quando manifestamos repulsa pela impunidade, nos baseamos em um senso de injustiça, e buscamos o direito de poder fazer o que não é direito. Se eu puder fazer o que não é direito, “viva a impunidade”! Se eu não puder fazer o que não é direito, “abaixo a impunidade”!

Não está errado definir o Brasil como o país da impunidade, mas é ainda mais acertado definir os brasileiros como um povo de impunes.