Quem fala por Nós
Por Rubiana Avila Azevedo | 03/07/2015 | SociedadeArtigo que concorreu ao XVII Prêmio Expocom 2010 – Exposição da Pesquisa Experimental em Comunicação
Quem fala por Nós: um livro reportagem sobre jovens infratores, mídia e sociedade
Camilla Barroso NUNES
Fernanda Elize GRANDIOSO
Rubiana de Ávila AZEVEDO
Taiana Cristina de FARIAS
Centro Universitário Newton Paiva, BH
RESUMO
Os jovens infratores, em sua maioria, são colocados à margem por parte da sociedade que muitas vezes não compreende sua realidade. Por meio desse trabalho foi feito um livro-reportagem que aborda a história de crianças e adolescentes que vivem em conflito com a lei. O estudo discute como a mídia e as entidades responsáveis abordam as infrações juvenis e, posteriormente, como essa realidade parcialmente contada interfere na visão social que se forma desses jovens. Quem fala por nós se preocupou em ouvir as várias vozes por meio das quais falam os jovens.
Palavras-chave: adolescente infrator; infância; livro-reportagem; Estatuto da Criança e do Adolescente
1 INTRODUÇÃO
Existem inúmeros fatores que podem contribuir para a inserção de jovens na criminalidade. A desigualdade social e o descaso familiar, por exemplo, são justificativas já bastante conhecidas e fundamentadas. Outras questões, que vão dos problemas de desvio da moralidade a distúrbios de personalidade, têm surgido com peso não menos relevante.
O que mostramos no livro-reportagem é como a mídia aborda ou porque não aborda a questão do adolescente em conflito com a lei; como ela determina a pauta destacando alguns temas e preterindo outros. O Estatuto da Criança e do Adolescente costuma ser visto como um instrumento que impede os jornalistas de se aproximarem de crianças e jovens que cometeram algum ato infracional. Diante disso, fomos buscar as balizas dessa relação.
O que destacamos é um conjunto de características, nomes e pré-conceitos que fazem com que estas crianças sejam marginalizadas aos olhos da sociedade. Por isso, o livro traz problemas, dilemas e histórias de pessoas que estabelecem relação direta e indireta com esses jovens. Mas o primeiro e principal desafio desta história surgiu já no inicio de nosso trabalho.
2 OBJETIVO
Quem fala por nós tem o intuito de colaborar na redução da caricatura clichê de crianças e adolescentes autoras de atos infracionais. Acreditamos que os meios utilizados atualmente não contribuem para formação de uma sociedade mais justa e menos preconceituosa. Muito pelo contrário, só reforçam a ideia de que estas crianças são responsáveis pelo cenário de violência urbana que aflige a sociedade, já que a mídia, como vimos, não se dedica a analisar e propor uma avaliação a respeito das condições de vida desses jovens nem mesmo apoia uma reversão do quadro noticiado.
3 JUSTIFICATIVA
Desde muito tempo, vivemos uma crise social de desigualdades e violência, o que alimenta o temor da população em relação a vários tipos de crimes, incluindo os que atribuídos a adolescentes. No entanto, acreditamos que o temor da sociedade, que muitas vezes desconhece as raízes do problema, em nada contribui para acabar com tais práticas. Talvez, maior conhecimento sobre a realidade social desses jovens, seja o que realmente poderá valer para o enfrentamento do problema.
Olhar as crianças e adolescentes que cometeram algum ato infracional com outros olhos foi a ação de a maior importância deste trabalho, que busca não apenas mostrar a realidade e a vida desses jovens pelos olhos das pessoas que trabalham com e por eles, mas também explicar como a mídia contribui para criar uma consciência social de que esses meninos e meninas são pessoas a quem se deve temer.
Além disso, o que mostramos no livro-reportagem é que esses adolescentes não são “pequenos marginais” ou “crianças deliquentes”, como muitas vezes são tratados na mídia, mas seres humanos em processo de formação, que em sua maioria vive à margem da sociedade; uma situação ora mascarada ora mantida longe dos olhos do público.
Crianças e adolescentes não podem ser discriminados pelo fato de terem praticado atos ilícitos. É claro que nenhum ser humano deve ser discriminado e, bem como garante a Declaração Universal dos Direitos humanos[1], toda pessoa tem o direito de ser reconhecida como tal perante a lei e em plena igualdade, tem garantida uma audiência justa para decidir seus direitos e deveres ou o fundamento de qualquer acusação criminal contra si.
Quando, no entanto, tratam-se de crianças e adolescentes, o assunto parece surgir de forma mais delicada. Tanto que se fez merecer um Estatuto da Criança e do Adolescente[2] adequado para assegurar-lhes os direitos. O fato é que o jornalista deveria assumir, acima de tudo, seu papel social. Mas, devido a uma série de fatores, esse papel vem sendo deixado de lado para que se façam cumprir as exigências da profissão.
Outros interesses passaram a ser prioridade. O importante são as vendas e a audiência. O telespectador não é mais cidadão, é consumidor. A impressão que se tem é de que o jornalismo, ‘vítima’ da constante pressão e do deadline[3], não pode se prender à responsabilidade de esclarecer fatos ou se aprofundar na informação — deve apenas transmiti-la. Não há tempo para apurações detalhadas, as fontes passam a ser habituais e o interesse público mais uma vez fica de lado.
É bem provável que o próprio público não saiba mais identificar qual seja seu real interesse. Provavelmente esteja habituado a uma transmissão jornalística já deficiente e que, em um estado anestésico, não consiga coligar quais são essas deficiências. As notícias aparecem muitas vezes pela metade, prejudicam o entendimento e induzem a interpretações equivocadas. A objetividade exacerbada e o resumo excessivo como justificativa de fácil assimilação da notícia podem ser os responsáveis por causar o que chamamos de “estado de vegetação”.
Entendemos, portanto, que enquanto for possível que nós, profissionais da imprensa, identifiquemos esses problemas, ainda haverá chance de transformação. Se conseguirmos provocar um olhar crítico da sociedade por meio de nossa função como jornalistas e tendo um bom trabalho desempenhado, a transformação já estará acontecendo.
Segundo o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros[4], os jornalistas deveriam tratar com respeito todas as pessoas mencionadas nas informações divulgadas, além de defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ainda de acordo com o código, o jornalista deveria contribuir para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes e das minorias, combatendo a prática de perseguição ou discriminação seja qual for o motivo.
O que pretendemos é mostrar que é possível ter notícia, credibilidade e objetividade –conceitos tão importantes nos dias de hoje – sem que isso seja feito vitimando ainda mais pessoas que, muitas vezes, já nasceram vitimadas. Aos jornalistas cabe, dentre outras coisas, o papel de informar, formar, esclarecer e fiscalizar. Disso já sabemos; o que falta é colocar em prática.
4 MÉTODOS E TÉCNICAS UTILIZADOS
Entrevistas reveladoras. Assim podemos definir nosso sentimento em relação a este projeto, que se iniciou pequeno e tornou-se algo grandioso, mudando de rumo no meio do caminho.
A idéia de fazer um livro-reportagem sobre crianças em conflito com a lei, aos nossos olhos, sempre foi uma forma de dar voz a quem nunca se ouvia. A repudia de algumas pessoas durante as entrevistas era clara: No meio de tantos temas, porque falar logo sobre crimes, violência, crianças marginalizadas e demonizadas pela própria sociedade e pela mídia? Porque trazer um assunto, até então, deixado de lado e “sem solução” para um debate público?
Nossa resposta era clara e muito convincente, para nossa surpresa: É preciso se ter os dois lados da notícia. Afinal de contas, tudo o que aprendemos é que sempre se devem ouvir os dois lados. Neste caso, era preciso ouvir o que as crianças ou as pessoas que podiam falar por elas tinham a dizer (e nunca disseram, ou quase nunca!). Era preciso escutar as motivações de uma infração, a realidade precária vivida por elas e por suas famílias e, acima de tudo, mostrar para os próprios jornalistas que nem tudo é como parece ser. Antes de qualquer coisa, um infrator é uma criança, que possui sonhos, desejos e anseios como qualquer outra, quem que muitas vezes tinham seus direitos duramente violados.
Quem fala por Nós é a afirmação para uma questão social: Todos falam por eles e todos podem falar por eles: jornalistas, assistentes sociais, policiais, advogados e juízes. E também — por que não? — a própria opinião pública.
A questão inicial, que seria dar voz a quem nunca se ouviu, caiu justamente porque os menores não falam por si. A eles não é permitida a palavra, apenas o silêncio, que talvez seja a única coisa a que realmente possuem direito e é cumprida.
Por isso, optamos por dar voz a quem fala por eles. As entrevistas foram realizadas em um período de 20 dias, em dezembro de 2009, todas presenciais com exceção da entrevista cedida a nós pelo Desembargador Siro Darlan, dada por telefone. Nela, o desembargador conta da importância de se acabar com o preconceito contra esses meninos e meninas e afirma que, a violência infantil é causa e consequência de um estado desordenado e que não privilegia as políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes.
Ao falarmos com jornalistas, escolhemos aqueles que de alguma forma trabalhavam diariamente com crianças envolvidasem infrações. Assim, surgiram os nomes e as entrevistas com Laudívio Carvalho, da rádio Itatiaia; Cibele Penholate, editora da Rede Bandeirantes; Adriana Agostini, jornalista e ex-professora de Ética do Centro Universitário Newton Paiva; a fotógrafa e jornalista Vera Godoy; e o ex-editor do Jornal Diário da Tarde, jornalista Márcio Rezende.
5 DESCRIÇÃO DO PRODUTO OU PROCESSO
Os adolescentes autores de atos infracionais, em sua maioria, são minimizados pela sociedade como seres sociais, sem considerar os antecedentes que os levaram a cometer infrações. Na maioria dos casos, esses adolescentes são reféns da própria condição em que vivem.
Por meio do livro-reportagem contamos histórias que envolvem a vida dessas crianças e adolescentes e, em um segundo momento, avaliamos como a mídia demoniza a imagem desses indivíduos perante o público. Baseando-se nisso, analisamos a verdadeira relação da mídia com esses jovens, apontando as consequências dessa abordagem.
Acreditamos que a construção do livro-reportagem possa ser um meio eficaz de esclarecimento e ajuizamento do tema proposto. Além disso, procuramos estabelecer uma abordagem ao tema de forma diferenciada àquela feita pela mídia, que em muitos casos, apresenta a criança e o adolescente infrator como responsáveis pela desordem social.
Partimos do princípio de que, quanto maior o conhecimento sobre a juventude infratora tanto mais se poderá amenizar o preconceito da comunidade em relação a esses jovens, fazendo com que se tenha uma reflexão livre de estereótipos. Trabalhamos com a hipótese de que esses jovens colocados à margem podem ser, muitas vezes, vítimas de uma violência estrutural da própria sociedade.
Não se pretende amenizar o ato infracional, mas criar a possibilidade de que soluções a favor de uma infância saudável possam ser criadas pela sociedade e de que medidas de inserção dos jovens possam ser administradas pelo Estado para que o confinamento e o isolamento social não sejam vistos como uma medida adequada. A questão da infância e da adolescência não pode ser tratada pelo caminho mais simples. Percorremos um caminho difícil em busca dessa reflexão e de informações que nos façam sair do “lugar comum” na compreensão e no tratamento dos jovens na sociedade.
A idéia mostrada em “Quem fala por Nós” é mostrar que o jornalista precisa estar o mais próximo possível de sua fonte. Isso significa envolvimento e interação com o personagem a ser entrevistado. Acreditamos que essa metodologia de envolvimento pode gerar um texto jornalístico mais humanizado, em que os personagens e suas histórias têm um caráter mais real. E mais do que contar a realidade de forma verossímil, pretendemos, ao fazer este livro, que suas histórias e idéias perdurem e que ele, no mínimo, seja capaz de provocar uma alguma ponderação.
Diferentemente das reportagens do cotidiano, que, em sua maioria, caem no esquecimento no dia seguinte, o objetivo aqui é a permanência. Um bom livro permanece por gerações, influenciando o imaginário coletivo e individual em diferentes contextos históricos. Para isso, é preciso fazer uma construção sistêmica do enredo, levando em conta que a realidade é multifacetada, fruto de infinitas relações, articuladas em teias de complexidade e indeterminação. (PENA, 2006, p.15)
O livro trata de uma realidade muitas vezes desconhecida por uma considerável parcela da sociedade. Nele, abordamos histórias reais, de jovens reais, sem julgamentos ou pré-definições. Como consequência, acreditamos que o produto possa gerar uma discussão proveitosa.
Mas, como fazer com que esses personagens reais libertem parte da memória e da vida que levam (ou levaram), sem os estereotipar ainda mais? Parafraseando Lucas Figueiredo, em Ministério do Silêncio (2005), “o projeto deste livro nasceu justamente do desafio de conseguir falar e de saber ouvir”.
6 CONSIDERAÇÕES
Ao elaborarmos esse trabalho, descobrimos, ironicamente, algo que já poderíamos prever: os problemas são coletivos e não individuais. Chegamos a conclusão de que para que a recuperação de um jovem em conflito com a Lei seja realmente eficaz exige-se muito mais do que punições simplórias e nada de julgamentos mal fundamentos, ou pior, fundamentados em pré-julgamentos.
O trabalho com esses jovens se torna eficaz quanto uma série de setores trabalham em unidade, mesmo quando temos a impressão de que nada têmem comum. Ouseja, nos certificamos que as medidas sócio-educativas, por exemplo, são fundamentais para a recuperação dos jovens autores de atos infracionais, mas as bases que sustentam tal ação podem ser seriamente comprometidas se ainda existirem centros de internações super-lotados e se não houverem projetos políticos voltados para programas sócio-educativos, , como mostrado no documentário de Maria Augusta Ramos, Juizo.
O que descobrimos neste trabalho é que quando perdemos nossa condição original, a de animal, nos tornamos seres eternamente angustiados. Por isso, às vezes, assumimos uma posição muito mais racional do que emocional. Nessa duplicidade de sentimentos, nos tornamos contraditórios. Neste momento, nossa tarefa é fazer o que pode e deve fazer um jornalista. Escrevemos.
Mas, escrevemos com a necessidade de nos comprometer, por que não acreditamos que os sistemas políticos garantam, por si só, a democracia. E nosso compromisso com o jornalismo nos põe nessa luta: Nós queremos falar por eles.
REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS
ASSIS, Simone Gonçalves e CONSTANTINO, Patrícia. Perspectivas de prevenção da infração juvenil masculina. Rio de Janeiro, 2005 on line. Disponível em < www.scielo.br >. Acesso em 16 de março de 2009.
BAGGIO, Marianne Cabral; TRIGARI, Rosângela. O Outro Lado da Entrevista: sinais e verdades que o jornalista não vê. Curitiba. 2007 on line. Disponível em < www.lasics.uminho.pt> Acesso em 01 de abril de 2009
BRASIL. Ministério da Educação. Estatuto da Criança e do Adolescente
FEIJÓ, Maria Cristina e ASSIS, Simone Gonçalves. O contexto de exclusão social e de vulnerabilidade de jovens infratores e de suas famílias. Santa Catarina, 2004 on line. Disponível em < www.scielo.br >. Acesso em 16 de março de 2009.
GRANDINO, Patrícia Junqueira. O paradoxo do atendimento a adolescentes em conflito com a lei em tempos de reconstrução de relações entre crianças, jovens e adultos. São Paulo. 2006 on line. Disponível em www.uninove.com.br Acesso em 15 de março de 2009
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA - INEP
KARAM, Francisco José. Jornalismo, ética e liberdade. São Paulo. Summus, 1997
KOSOVISK, Ester. Ética na comunicação. Rio de Janeiro. Mauad, 1995
LIMA, Edvaldo Pereira. O que é livro-reportagem. São Paulo, Brasiliense, 1993.
OLIVEIRA, Carmen Silveira. O hiperdimensionamento da criminalidade juvenil no noticiário. Belo Horizonte, 2003 online. Disponível em < www.observatorioseguranca.org>. Acesso em 26 de março de 2009
OLIVEIRA, Luiz Raimundo Queiroga. O menor infrator e a eficácia das medidas sócio-educativas. São Paulo, 2003 on line. Disponível em <www. jus2.uol.com.br/doutrina>. Acesso em 26 de março de 2009
PENA, Felipe. Jornalismo Literário. São Paulo, Contexto, 2006.
SANTOS, Juarez Cirino dos. O adolescente infrator e os direitos humanos. São Paulo. 2005 on line. Disponível em <www.defensoria.sp.gov.br> Acesso em 20 de março de 2009
REZENDE, Flávio. Juventude brasileira: Um estudo preliminar. São Paulo. 2002 on line. . Disponível em <www.ilo.org> Acesso em 27 de março de 2009
ZANOTTI, Carlos Alberto. Sobre o conceito e práticas jornalísticas. Campinas. Revista de Estudos de Jornalismo, 2003.
[1] De acordo Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo VII - "Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação."
[2] ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente: Atribui à criança e ao adolescente prioridade absoluta no atendimento aos seus direitos como cidadãos brasileiros. A aprovação dessa lei nº 8.069/90 representa um esforço coletivo dos mais diversos setores da sociedade organizada e um projeto de sociedade marcado pela igualdade de direitos e de condições que devem ser construídas, para assegurar acesso.
[3] Limite estabelecido para a conclusão de uma atividade dentro de um cronograma. Horário de fechamento da edição de jornais ou revistas.
[4] Votado em Congresso Nacional dos Jornalistas, o código está em vigor desde 1987: O Código de Ética do Jornalista fixa as normas a que deverá subordinar-se a atuação do profissional, nas suas relações com a comunidade, com as fontes de informação, e entre jornalistas.