Quem dita as regras?
Por Arthur Moura | 19/05/2009 | SociedadeQuem dita as regras?
(o choque cultural e o comportamento da cena independente do rap no
Brasil)
Por vivenciarmos um complexo de transformações no campo cultural, mais
especificamente na arte (e é bom lembrarmos que cultura é todo um conjunto onde a
sociedade, ou algum grupo, exterioriza suas concepções, idéias, costumes, formas de
relacionamento), vejo a possibilidade de uma discussão que tem como objetivo
principal a observação das especificidades da cena independente do rap no Brasil.
Lembrando que às transformações e o processo cultural é dado uma maior relevância
nesse texto, quero excluir o confrontamento pessoal para com alguns protagonistas e
sim situá-los num contexto político, ideológico e que muitas vezes seguindo uma
demanda ou uma lógica mundial, empurram todo um comportamento a determinadas
tendências, muitas das quais mercadológicas.
A relação dos costumes e tradições do Brasil com o que vem de fora é dada, na
maioria das vezes, uma maior importância. Essa relação reflete um comportamento
globaritário, e nisso o pensamento de Milton Santos se faz valer, que é impulsionado
por diversos tipos de violência, a começar pelo ferimento de costumes locais. O contato
e relações culturais são passíveis sim de transformações quando aproximadas de forma
mais íntima, mas com isso não queremos dizer que desse contato venha a nascer a
intransigência e idéias de valores implicando a superioridade de uma cultura sobre a
outra. Quando se chega nesse estágio trocas não são possíveis e sim a imposição do
mais forte (seja lá o que isso queira dizer) sobre o mais fraco, do melhor sobre o pior,
do mais aceito pelo que tem menos importância. Quando caímos nesse estágio a idéia de
cultura vai-se pelo ralo. Historicamente falando é delicado falar de contatos culturais, já
que sempre houve esse tipo de troca entre diversas civilizações. Não existe uma cultura
melhor do que outra, costumes ou tradições que possam ser postas num ringue a fim de
se extrair dali o mais forte. Costume é costume, cada qual som suas características e
sem julgamento de valor. É sobre isso que a singularidade de cada povo se forma.
Porém todo um contexto histórico impõe outro tipo de relação entre pessoas e
isso se faz valer desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, período Moderno até
chegar ao Contemporâneo. Hoje o que observamos é uma forma violenta de
globalização que empresas, multinacionais, órgãos internacionais exercem de forma
espantosa nossas vidas. Com isso não devemos de forma alguma excluir a participação
dos protagonistas corroboradores dessa barbárie, pois há conceitos éticos que entram
forte nessa discussão. Por mais que o homem seja mercadoria (na concepção de Marx) e
seja uma corrente mecanicista, não devemos fazer vista grossa com a ética, pois dessa
forma estaríamos livrando o homem de ser homem.
O rap no Brasil é recente e tenta agora caminhar de forma independente. Porém
o que não se percebeu ainda é que relações humanas não podem ser postas dentro de um
recipiente e se reproduzir a mesma experiência em locais diferentes. Com isso estamos
caindo num grotesco erro que nos é imposto como verdade. Em outras palavras, não
cabe reproduzir a mesma corrente cultural, ideológica, ou o que quer que seja de forma
idêntica em diferentes localidades onde diferentes seres humanos se manifestam. Ao se
chocar, culturas diferentes passam a sofrer reações específicas e de forma “natural”. Ou
seja, a idéia é que ao se chocar as trocas culturais possam realizar-se com a não
sobreposição que vá acarretar o fim de alguma sobre a outra. Em paralelo a isso há uma
reação contrária, e aí incluo alguns colegas como reprodutores desse tipo de
comportamento, mundializada que tende a padronizar a cultura de um determinado
local. Ou seja, esses protagonistas a que me refiro acatam um rap americanizado com
todos os seus vieses para o território brasileiro onde esse tipo de comportamento não se
torna algo representativo para a nossa realidade.
A partir dessas observações podemos nos situar na cena nacional, onde os
protagonistas a que me refiro são os MC´s, DJ´s, produtores e todos que formam a
cultura hip hop. É claro que quando falo do choque de culturas (arriscaria a dizer que
essa cultura que falamos nada mais é do que uma cultura-econômica), não generalizo
todas as manifestações existentes, pois existe sim dentro de cada localidade grupos que
ainda preferem beber da fonte local para formular melhor os costumes. A minha pouca
experiência na cena me habilita a afirmar isso. Não chamaria esse movimento que tende
a permanecer mais fiel às suas raízes de “resistência”, mas sim uma forma mais
inteligente da não padronização do rap no Brasil. É claro que com uma cultura vinda de
fora vem também valores introgetados, e essa cultura ao chocar-se com a outra não se
mantém estática, aliás inalterações aí tornam-se impossíveis.
Com isso quero dizer que, ao chegar ao Brasil, o rap trouxe consigo toda uma
estrutura já iniciada em solo estrangeiro. Não vamos cair aqui na questão se o rap surgiu
na Jamaica, nos Estados Unidos, no Nordeste brasileiro ou com Homero. Então ao
chegar ao Brasil, o rap já trouxe consigo toda uma conduta que vai desde a rebeldia do
negro e todos aqueles que de alguma forma são desprivilegiados socialmente, trouxe
costumes, um linguajar característico, formas de se vestir e de se comportar, ou seja,
toda uma vestimenta cultural já própria. Observamos também nascer com eles todo um
esquema de marketing (e tudo que envolve marketing e propaganda temos que ter todo
um cuidado com que tipo de idéia, imagem e visão quer ser passada) que fez com que o
rap se tornasse hoje fenômeno mundial. Não podemos omitir o notável processo que o
rap enfrentou para popularizar-se mundialmente (mas devemos sempre nos lembrar: à
custa de que?). Porém, uma imagem massificada de um rap envolto de conceitos que
não representam uma fiel ascensão de valores ligados aos seus protagonistas iniciais são
os mais presentes no Brasil. Em outras palavras, o verdadeiro nascedouro do rap com
todo o seu engajamento político é dificilmente posto em prática pelos que formam hoje
a cultura hip hop.
A profissionalização do rap hoje é tida com grande importância. Nada mais justo
que viver do que se ama. Mas aí caímos em mais uma questão. O que é ser profissional
no Brasil? Essa profissionalização hoje vem acarretar a perfeita inclusão de uns e o
escanteio de outros. Quando não se dá mais espaço àqueles que estão começando, ou
seja, aqueles que ainda produzem de forma mais “barata” um determinado tipo de arte,
exclui-se de forma violenta e mesquinha todo um processo natural do espírito artístico.
O que quero dizer é que não é levado a sério aquele cuja produção envolve recursos
modestos. Quando leio a entrevista de um determinado artista vinculado a Nike dizendo
que só há espaço para os “profissionais”, tenho a idéia de que só poderão participar do
processo criativo artístico os que jogarem de acordo com as regras do mercado. Ora,
nada menos democrático do que a formulação de um discurso puramente ideológico,
violento e desrespeitoso com àqueles que também bebem da mesma conjuntura artística
e estão presentes no mesmo bojo cultural. Isso gera um problema ainda maior que é o
monopólio da cena por esses poucos que com seus valores se acham mais aptos que
outros e, tendo uma maior repercussão, indicam outros que consideram tão aptos quanto
eles. Em outras palavras, os que agora se acham profissionais apadrinham outros com
esse mesmo tipo de mentalidade.
Mais uma vez volto à pergunta. O que de fato é ser profissional? É um maior
espírito inventivo, investigativo e proeminente ou aquele que preza por um maior
aparato tecnológico e mercadológico para fazer valer suas idéias? Vocês poderão pensar
na possibilidade de uma combinação harmoniosa entre os dois. Sim é possível. Mas,
será que todos os artistas necessitam e querem ter suas idéias vinculadas a um tipo de
profissionalização que nos fazem acreditar ser o único caminho possível? Conforme já
disse, não se exclui a possibilidade de mesmo atrelado a recursos mais faustosos termos
bons resultados artísticos. É claro que a partir do momento que o resultado artístico
passa a sofrer qualquer tipo de alteração que seja estranha ao criador, isso passa a se
tornar discutível. Olhando mais de perto é errado afirmamos que só o mercado dita as
regras. A questão vai muito além disso.
O mercado, ciente de sua força e influência, dita as regras. Há aqueles que em
detrimento dos seus valores, conceitos éticos e bom senso seguem essa força e com isso
violentam sua cultura local. E há os que mesmo sendo subordinados pela força do
dinheiro vêem nesse processo de globalização ferramentas mais amenas e não destrutiva
dos valores de cada um respeitando e sendo íntegro com o próximo. Então volto a
perguntar, ligar-se a grandes indústrias implica necessariamente na troca de valores?
Diria que não necessariamente, mesmo que muitos exemplos possam me desmentir com
facilidade. Hoje um artista dispõe de outros meios para propagar suas idéias, o que não
implica na sua completa dependência de grandes esquemas fonográficos. As vezes
penso na grande quantidade de talentos perdidos principalmente na primeira metade do
século XX por não estarem ligados a um grande aparato mercadológico pois é
confortável afirmar que não havia público para determinado estilo ou um espaço para
vincular determinadas idéias. Coisa que nunca faltou nesse mundo é gente querendo
conhecer coisas novas. Aí entra a pergunta. A quem se quer agradar? Ou melhor, a
quem se quer vender? Mesmo sendo coagido por uma força não há uma obrigatoriedade
em se submeter a essa força ao ponto de desestruturar todo um processo artístico.
Nessa idéia de força também podemos citar um conceito pueril tribalizado que
os protagonistas dessa cena têm em relação uns com os outros. É mais forte quem tem
uma galera maior, quem idealiza discursos que tendem a ser encarados como um único
caminho a se seguir, e muitas vezes nisso deixa-se de fazer música para fazer política
ideológica a favor de suas ações. Faz-se valer então a idéia de superioridade onde os
mais aptos são os que dispõe de todo um aparato que vai desde o dinheiro oferecido por
uma tendência globaritária e usufruído por estes que dispõem um mercado frágil e que
conseqüentemente ditam as regras sobre àqueles que, a seu ver, não são profissionais e
não fazem o rap de verdade. Existe hoje no Brasil outra camada artística em paralelo a
esses conflitos que emanam em proeminência artística que por não serem vinculados em
grandes escalas passam despercebidos e omitidos por rappers que habitam uma cena
mais explícita num âmbito mercadológico.
Pretendo com essas poucas observações não fomentar mais uma disputa de força
e sim uma reflexão sobre o que hoje entendemos por mercado, cultura, formas de se
fazer arte e o espaço que a cada manifestação tem direito. Ganhar a vida com a arte é
perfeitamente possível, mas ainda não é uma realidade por egoísmo de alguns. O grande
problema da construção do conhecimento não chegar até todas as pessoas ou a um
maior número possível é a conformidade de alguns em não achar necessário que esse
conhecimento chegue até todos. Por isso dizem ser o conhecimento um poder, pois ao
não achar necessário essa maior expansão e se concentrando nas mãos de poucos, o
conhecimento torna-se de fato poder transformando-se numa ferramenta de dominação
de uma maioria ignorante. Já no meio cultural onde o espírito inventivo não é diminuído
por uma simples força do mercado, vemos um perigoso processo de ocultação dessas
forças criativas por toda uma tendência globaritária, mercadológica e mesquinha que
alguns insistem em seguir para justificar um status pouco representativo para o
crescimento da cultura como um todo. A partir do momento que, em detrimento de
benefícios próprios, alguns artistas propõem-se a caminhar junto de um esquema que
exclui o outro, compartilho a idéia de que “pode ser um profundo equívoco visualizar a
arte como uma simples expressão do espírito”, onde Peter Buker expõe o cuidado ao
analisar as diversas manifestações artísticas.
Arthur Moura