Quebra de Sigilo Bancário

Por Steffani Carvalho de Santana | 17/05/2017 | Direito

Não há como se determinar temporalmente a época para o surgimento do sigilo bancário. Assim sendo, alguns autores, como Nelson Abrão, prefere situá-lo em tempos imemoriais, afirmando que “o segredo bancário tem raízes profundas na tradição” (2002, p. 55). Surgiu com o desenvolver das atividades econômicas e bancárias, que, por seu caráter de descrição, dele não se pode separar, exceto em hipóteses previstas em lei, com o intuito de se preservar e resguardar o bem comum e a ordem pública.

As operações bancárias precederam a existência da moeda. A mais antiga referência ao sigilo bancário é encontrada no Código de Hamurabi, rei da Babilônia, o qual mencionava a possibilidade que tinha o banqueiro de desvendar seus arquivos em caso de conflito com o cliente (ABRÃO, 2002, p.56). A característica sigilosa da atividade bancária foi também observada na Idade Média, tendo sido consolidada nos tempos modernos não apenas pela sua natureza, mas também pela convenção tácita entre banco e cliente (ABRÃO, 2002, p.56).

Segundo Pedro Nunes;

"Sigilo é um segredo inviolável, segundo a lei, e cuja transgressão ou quebra é punível: sigilo profissional, sigilo de correspondência, etc. Sigilo bancário é relativo à banco, nome genérico do auxiliar dependente do comércio bancário; funcionário de banco (1994, p. 779)".

O instituto do sigilo bancário está disciplinado na Constituição Federal de 1988, no rol dos direitos e garantias fundamentais:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XII- é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.(BRASIL, 2003, p. 13).

Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências desta na esfera jurídico-individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e a exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa) (2002, p. 485).

O sigilo de dados, mais especificamente, o sigilo bancário, é um direito fundamental, que cumpre segundo entendimento de José Afonso da Silva proibir fundamentalmente as ingerências dos poderes públicos na esfera jurídica individual, o poder de exercer positivamente direito positivo e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (2001, p. 191).

As garantias, apesar de muitas vezes virem consagradas e protegidas pelas leis constitucionais, não seriam verdadeiros direitos atribuídos diretamente às pessoas, mas a determinadas instituições que possuem sujeito e objeto diferenciado (MORAES, 2003, p. 62).

Concluindo esse raciocínio, J.J. Gomes Canotilho afirma:

[...] a proteção das garantias institucionais aproxima-se, todavia, da proteção dos direitos fundamentais quando se exige, em face das intervenções limitativas do legislador, a salvaguarda do ‘mínimo essencial’ (núcleo essencial) das instituições. (1998, p. 522)

Os direitos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro.

No que se refere ao conflito de direitos e garantias fundamentais, explica Alexandre de Moraes:

[...] quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual(contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua (2003,p. 61).

Para melhor entendimento do tema proposto, faz-se necessário trazer a classificação dos direitos fundamentais, tendo em vista que o sigilo bancário está disciplinado no rol dos direitos e garantias fundamentais.

Assim sendo, os direitos fundamentais classificam-se em: primeira dimensão, direitos civis e políticos; segunda dimensão, direitos econômicos, sociais e culturais; terceira dimensão, direitos de solidariedade ou fraternidade e, por fim, os direitos de quarta dimensão, direitos à democracia, ao pluralismo e à informação (SARLET, 2001, p. 49) [2].

Os direitos fundamentais de primeira dimensão afirmam-se como direitos dos indivíduos frente ao Estado como verdadeiros direitos de defesa, dirigidos a uma abstenção (SARLET, 2001, p. 50). Para Paulo Bonavides, estes direitos são limitadores e caracterizam-se como barreiras contra as ingerências do Poder Público (1998, p. 517).

Já, no tocante aos direitos de segunda dimensão, explica Paulo Bonavides:

[...] Não se pode deixar de reconhecer aqui o nascimento de um novo conceito de direitos fundamentais, vinculado materialmente a uma liberdade “objetivada”, atada a vínculos normativos e institucionais, valores sociais que demandam realização concreta e cujos pressupostos devem ser “criados”, fazendo assim do Estado um artífice e um agente de suma importância para que se concretizem os direitos fundamentais de segunda geração (1998, p. 518).

Quanto aos direitos fundamentais de terceira dimensão, estes são direitos voltados à proteção de grupos humanos. Para Paulo Bonavides, eles estariam exprimidos de três maneiras:

  1. O dever de todo o estado particular de levar em conta, nos seus atos, os interesses de outros estados (ou de seus súditos);
  2. ajuda recírpoca (bilateral ou multilateral), de caráter financeiro ou de outra natureza para a superação das dificuldades econômicas (inclusive com auxílio técnico aos países subdesenvolvidos e estabelecimento de preferências de comércio em favor desses países, a fim de liquidardéficits;
  3. uma coordenação sistemática de política econômica (1998, p. 524).

Por fim, quanto aos direitos de quarta dimensão, são direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência (1998, p. 525)

Feitas estas considerações, pode-se verificar que, pelo que preceitua a Constituição Federal, tem o contribuinte o direito de preservação de sua intimidade, de sua privacidade e de que terceiros que detenham informações suas sejam obrigados a guardá-las. Porém, segundo entendimento de parte da doutrina e da Jurisprudência pátrias, em determinadas hipóteses o interesse público há de prevalecer sobre o interesse individual, mas caberá a um outro poder definir se tais hipóteses efetivamente ocorrem, com o que poderá, o Poder Judiciário, autorizar, se convencido estiver o magistrado de que a hipótese é de gravidade e de lesão ao interesse público, a quebra do direito ao sigilo bancário (MARTINS, 1995, p. 76).

Oswald Othon de Pontes Saraiva Filho tem o seguinte entendimento:

[...] o sigilo bancário frente à Administração Tributária não é absoluto, não se configurando, com a prestação das informações e o fornecimento de documentos por parte das instituições financeiras, em atendimento às requisições de autoridades fiscais competentes, nos termos da lei e respeitados os direitos individuais, quebra de sigilo, mas, apenas a sua transferência (1995, p. 69)

O tratamento que vem se emprestando aos direitos da intimidade, mais precisamente ao direito constitucional ao sigilo bancário, entre nós, com base numa legislação pré-constitucional que sequer contemplou esses valores como direitos fundamentais – e nem poderia, obviamente, fazê-lo -configura uma canhestra realização da vontade constitucional. Ainda que se pretenda argumentar eu a aplicação do direito pré-constitucional na espécie era inviolável – até porque não se suspende o curso da vida, parece evidente que a falta de maior reflexão sobre o significado do sigilo bancário na nova moldura constitucional levou a uma manifesta desconsideração desse valor enquanto direito fundamental por parte das autoridades que requisitaram ou forneceram documentos sem observância das cautelas recomendadas pelo texto constitucional (1992, p. 437).

Institui-se a Lei Complementar 105/01 como forma de disciplinar o tema. Inicialmente, o legislador pátrio elaborou a Lei nº 4.595, de 31-12-64, que criou o Sistema Financeiro Nacional, recepcionada como Lei Complementar pela Constituição Federal vigente (art. 192), que disciplinou o sigilo bancário em seu art. 38.

O sigilo aí previsto pode ser quebrado pelo Poder Judiciário e pelas Comissões parlamentares de Inquérito (§§ 1º e 3º).

Dispõem os §§ 5º e 6º do art. 3 da Lei Bancária:

  • 5º Os agentes fiscais tributários do Ministério da Fazenda e dos Estados somente poderão proceder a exames de documentos, livros e registros de contas de depósitos, quando houver processo instaurado e os mesmos forem considerados indispensáveis pela autoridade competente.
  • 6º o disposto no parágrafo anterior se aplica igualmente à prestação de esclarecimentos e informes pelas instituições financeiras às autoridades fiscais, devendo sempre estas e os exames serem conservados em sigilo, não podendo ser utilizados senão reservadamente. (Brasil, 2004, p. 187)

Entretanto, a aplicação dos dispositivos anteriores pelas autoridades administrativas fracassou, tendo em vista o contido no parágrafo único do art. 197 do CTN (lei materialmente complementar), que veda a comunicação de fatos de que informante deva, legalmente, guardar segredo profissional (HARADA, 2003, p. 472).

Art. 197- Mediante intimação escrita, são obrigados a prestar à autoridade administrativa todas as informações que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros:

I - os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício;

II- os bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras;

III - as empresas de administração de bens;

IV – os corretores, leiloeiros e despachantes oficiais;

V – os inventariantes;

VI – os síndicos, comissários e liquidatários;

VII – quaisquer outras entidades ou pessoas que a lei designe, em razão do cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão.

Parágrafo único. A obrigação prevista neste artigo não abrange a prestação de informações quanto aos fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão do cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão. (BRASIL, 2005, p. 104)

Sobreveio, assim, a Lei Complementar 105, de 10-01-2001, permitindo a quebra de sigilo bancário pela Receita Federal. O art. 5º prevê a regulamentação dos critérios para que as instituições financeiras informem as operações realizadas por seus clientes, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor.

Art. 5o O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.

  • 1oConsideram-se operações financeiras, para os efeitos deste artigo:

I – depósitos à vista e a prazo, inclusive em conta de poupança;

II – pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques;

III – emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados;

IV – resgates em contas de depósitos à vista ou a prazo, inclusive de poupança;

V – contratos de mútuo;

VI – descontos de duplicatas, notas promissórias e outros títulos de crédito;

VII – aquisições e vendas de títulos de renda fixa ou variável;

VIII – aplicações em fundos de investimentos;

IX – aquisições de moeda estrangeira;

X – conversões de moeda estrangeira em moeda nacional;

XI – transferências de moeda e outros valores para o exterior;

XII – operações com ouro, ativo financeiro;

XIII - operações com cartão de crédito;

XIV - operações de arrendamento mercantil; e

XV – quaisquer outras operações de natureza semelhante que venham a ser autorizadas pelo Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários ou outro órgão competente.

  • 2oAs informações transferidas na forma docaput deste artigo restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados.
  • 3oNão se incluem entre as informações de que trata este artigo as operações financeiras efetuadas pelas administrações direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
  • 4oRecebidas as informações de que trata este artigo, se detectados indícios de falhas, incorreções ou omissões, ou de cometimento de ilícito fiscal, a autoridade interessada poderá requisitar as informações e os documentos de que necessitar, bem como realizar fiscalização ou auditoria para a adequada apuração dos fatos.
  • 5oAs informações a que refere este artigo serão conservadas sob sigilo fiscal, na forma da legislação em vigor.(BRASIL, 2004, p. 991)

Assim, por se tratar de Lei Complementar, não se pode opor a restrição contida no parágrafo único do art. 197 do CTN. O que se exige, portanto, para que as autoridades administrativas fiscais quebrem o sigilo bancário é a observância do princípio constitucional do devido processo legal.

O STF, por exemplo, não tem reconhecido o direito absoluto a esse sigilo, nem reserva de jurisdição nessa matéria, contenta-se com a observância do devido processo legal (HARADA, 2003, p. 474). Cabe ao Judiciário examinar cada caso concreto à luz das disposições da Lei Complementar nº 105/2001 para aferir a imprescindibilidade do acesso a dados bancários, afirmada pela autoridade fiscal.

O artigo 6º da Lei Complementar 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e dá outras providências, diz o seguinte:

Art. 6o As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente (BRASIL, 2004, p. 988).

Da análise da legislação supracitada, a intenção do legislador pátrio, certamente, foi a de facilitar a prática fiscalizatória da administração fazendária e dificultar o expediente da sonegação tributária pelos contribuintes.

Assim, haja vista a grande gama de aspectos relevantes em relação ao tema proposto, estas são as considerações, que, no momento se tornam pertinentes, considerando a grande complexidade e polêmica deste assunto. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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