PROTESTOS EM FORMA DE MÚSICA
Por Rafael Francisco Bento | 30/01/2013 | HistóriaINTRODUÇÃO
Na segunda metade do século passado, como decorrência da guerra fria (1947-1991), diversos países da América do Sul, a Argentina, o Chile, a Bolívia, o Peru, o Paraguai, o Uruguai e até o Brasil, sofreram com um governo ditatorial comandado por militares. E qual em toda tirania, a censura existiu e tentou calar a intelectualidade, artistas, escritores, compositores, enfim. O que esses regimes não esperavam é que essas pessoas pudessem encontrar uma maneira de camuflar o verdadeiro sentido de suas palavras para continuarem a denunciar e criticar seus líderes sanguinolentos.
Neste trabalho, contudo, interessam apenas as letras das canções de protesto do período militar no Brasil (1964 – 1985). Dentre os inúmeros artistas que tiveram de disfarçar suas mensagens nesse período no país, foi escolhido Chico Buarque de Holanda e as músicas “Apesar de você”, “Cálice” e “Meu Caro Amigo”, todas dos anos de 1970. Vale ressaltar de que se reconhece o trabalho de vários cantores brasileiros que, com a mesma maestria, expressaram seus pensamentos e anseios mesmo nos mais duros anos de chumbo.
O objetivo, aqui, é apontar quais foram os recursos utilizados pelo compositor, Chico Buarque, na construção dos sentidos das letras de suas canções, que, atacavam o governo sem esse perceber, considerando, claro, a relação delas com o momento histórico em que foram produzidas.
Para realização desta análise, serão utilizados livros sobre Semântica, a ciência que se preocupa com a significação, principalmente os trabalhos de Rodolfo Ilari, Doutor em Letras e professor do Departamento de Linguística da Unicamp, que afirma que “a semântica é um domínio de investigação de limites movediços”.
CONTEXTO HISTÓRICO
Sob o pretexto de acabar com a ameaça do comunismo sobre o Brasil, em 31 de março de 1964 as Forças Armadas deram um golpe de Estado no governo vigente, o país perdia, então, sua liberdade. A 15 de abril do mesmo ano, um militar foi eleito presidente, de forma indireta, pelo Congresso, que assumiu o papel de Colégio Eleitoral graças ao Ato Institucional nº1[1]. Humberto de Alencar Castelo Branco comandaria o país até 1966.
Durante seu governo, decretou três novos atos institucionais, o AI-2, que dissolveu os partidos políticos e permitiu ao Executivo cassar mandatos, o AI-3, que tornava também indireta as eleições para governador e o AI-4, o qual fechou o Parlamento.
Mas, isso tudo ainda não era nada. Em 1967, o marechal Arthur da Costa e Silva sucedeu Castelo Branco e uma repressão muito maior atingiu o país. A Marcha dos Cem Mil contra o regime, de 1968, marcou seu mandato, assim como o AI-5. Esse ato institucional, permitia ao presidente manter o Congresso fechado, além de estabelecer a censura aos meios de comunicação, toda a oposição foi, desse modo, silenciada completamente. Vale lembrar de que, nesse ínterim, muitos foram presos, e torturados, enquanto outros tantos mortos, só por defenderem suas ideias de democracia, consideradas subversivas e de orientação comunista pelo governo.
Em 1969, Costa e Silva adoeceu e foi substituído pelo general Emílio Garrastazu Médici, porém, com ele o regime só endureceu. É importante dizer que, por essa época, o Brasil vivia o “milagre econômico”, o país ia bem e o governo aproveitou para investir em grandes obras públicas, como a ponte Rio-Niterói, e, claro, na propaganda, “Ninguém Segura Este País”, “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Mas, como Chico Buarque afirmaria mais tarde, “(...) Construíram estádios e essa rede impressionante de telecomunicações por todo o Brasil, e ao mesmo tempo uma degradação crescente em termos de educação e saúde. (...)”. Uma leve brisa de liberdade só foi sentida com o sucessor de Médici, o general Ernesto Geisel, que assumiu em março de 1974 e propôs a abertura política, afrouxando a censura. Todavia, o serviço de segurança continuava a funcionar, prendendo inimigos do Estado e acusando-os de marxistas. Em 1978, os atos institucionais foram abolidos pelo general-presidente, sendo definitivamente extinguidos a partir de 1º de janeiro de 1979. No final de 1978, seria indicado e aprovado o nome do novo, e do último, presidente militar do Brasil, o general João Batista Figueiredo.
As manifestações populares foram crescendo e uma campanha foi se intensificando, a campanha pela anistia, a que pedia a anulação das punições e condenações políticas efetivadas pelos governos militares. Um projeto de anistia foi, então, enviado ao Congresso e aprovado em agosto de 1979. Eleições diretas se realizariam em 1982, mas, ainda não para presidente. E assim, formou-se um grande movimento, as “Diretas Já”, que exigia eleições diretas para esse cargo.
Finalmente, depois de 21 anos sob a égide militar, o Brasil torna a ver um civil eleito presidente. A votação ocorreu no dia 15 de janeiro de 1985 e o mineiro Tancredo Neves foi o vencedor. Infelizmente, no dia 14 de março, na véspera de ser empossado, ele foi internado e no dia 21 de abril faleceu em um hospital de São Paulo, provocando comoção nacional. Assumiu então o vice-presidente, José Sarney, que como primeira medida de governo restabeleceu a eleição direta e diminuiu as restrições para organização de partidos.
Dessa forma, a ditadura perdeu, o país foi redemocratizado e a liberdade de pensamento instaurada novamente.
ANÁLISE DAS CANÇÕES
No Brasil, durante a ditadura militar (1964 – 1985), opor-se ao governo era assinar a própria sentença de morte. Mesmo assim, nessa época, o cantor e compositor Chico Buarque de Holanda, socialista convicto, denunciava o regime em suas canções.
Sim, os censores vetaram muitas, mas isso não impediu delas serem tocadas clandestinamente. A seguir, portanto, analisar-se-á letras de canções de Chico onde haja críticas ao governo militar. Para começar, abaixo está um fragmento da música “Apesar de você” de 1970:
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar (...)
Em 1970, Chico Buarque voltava ao Brasil depois de auto-exilar-se na Itália. Veio pensando em encontrar um país diferente, mas, não foi o que aconteceu. A repressão era intensa e os desaparecidos inúmeros. Dessa forma, compôs a letra da música acima, acreditando que não seria aprovada jamais pelos homens responsáveis pela censura. O inacreditável é que ela foi liberada, gravada e re-gravada. Por que os censores não a proibiram?
A resposta é simples, Chico, ao compor “Apesar de você”, conseguiu um duplo sentido graças ao que se chama de campo semântico, um conjunto de léxicos, muito bem selecionados, pertencentes ao mesmo círculo de ideias - você é quem manda, não tem discussão, escuridão, pecado, proibir, sofrimento, amor reprimido, contido, samba no escuro, tristeza, penar.
Um leitor desatento da letra dessa canção, assim como foi a censura da época nesse caso, poderia achar que tudo se trata de um namorado ressentido com o fim do romance com uma mulher “mandona”, o você da música, entretanto, se o leitor estivesse em contato com a política, perceberia que esse você e todo o resto, na verdade, se refere ao general-presidente da vez, Garrastazu Médici.
Segundo Rodolfo Ilari (1999), (...) “interpretar é, sempre, entre outras coisas, reconhecer uma intenção; as intenções é que contam, e o sentido literal só existe como hipótese” (...). Dessa forma, vale citar ainda a presença de um implícito na canção, que decorre dos versos “Apesar de você / amanhã há de ser outro dia / Eu pergunto a você / Onde vai se esconder / Da enorme euforia”. Subentende-se deles que a estadia dos militares no comando do país acabará, e acabará logo, amanhã.
“Apesar de você” acabou se tornando hino dos que se opunham à ditadura, só que isso chamou a atenção do governo que vetou sua execução pública em 1971, e passou a ter maior cautela com Chico Buarque e as letras de suas canções.
Os versos a seguir são de “Cálice”, música escrita em 1973 em parceria com Gilberto Gil:
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta (...)
(...) Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Quanto a essa canção, a censura não pensou duas vezes e “recomendou” sua proibição, que, provavelmente, foi determinada logo pelo título, onde a palavra Cálice poderia ser interpretada facilmente como uma ordem, Cale-se, palavras homônimas, que, no caso, apresentam uma mesma fonia, e, como se sabe, “(...) a homonímia é frequentemente a raiz de uma (...) dupla leitura. (...)”. (Rodolfo Ilari, in Semântica, Ática, p. 57.)
Porém, o que também pode ter provocado a não autorização da música foi o fato de Chico e Gil terem recheado “Cálice” de implícitos, por exemplo, em “Silêncio na cidade não se escuta” está tácito que a censura não consegue calar todas as vozes, os protestos, em “Tanta mentira, tanta força bruta”, que o ‘eu’ da canção sabe das mentiras veiculadas pelo governo, bem como, da violência empregada por esse para conter opositores. Vale ressaltar ainda, o verso “Quero cheirar fumaça de óleo diesel”, que além de ser uma denúncia a uma prática de tortura a que os presos políticos eram submetidos nos porões dos quartéis, carrega um tom de desafio, a personagem, aqui, não teme os militares. A canção ainda apresenta um campo semântico que descreve muito bem o regime - sangue, dor, calada a boca, silêncio, morta, mentira, força bruta, pecado, morrer, veneno. Não surpreende, portanto, que “Cálice” só tenha sido liberada em 1978, ao lado de “Apesar de você”, e graças a amenização da censura.
Abaixo estão fragmentos da letra da canção “Meu Caro Amigo”, de 1976. Essa nada mais é do que uma carta em forma de música, dirigida ao amigo de Chico, Augusto Boal, dramaturgo e ensaísta brasileiro, que vivia no exílio em Portugal:
Meu caro amigo me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita
Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol (...)
Chico pinta um retrato do país, a princípio falando de coisas do dia-a-dia, “Aqui na terra 'tão jogando futebol / Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll / Uns dias chove, noutros dias bate sol”. Mas depois, a letra da música muda de enfoque e passa a crítica:
(...) Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita mutreta pra levar a situação
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
E a gente vai tomando, que também, sem a cachaça
Ninguém segura esse rojão (...)
A canção toda é repleta de implícitos, na estrofe acima, por exemplo, pode-se citar dois. Primeiro, em “Levando de teimoso e de pirraça”, subentende-se que o “eu” da canção se refere às agressões que os contrários aos militares sofriam, enquanto que em “E a gente vai tomando, que também, sem a cachaça / Ninguém segura esse rojão”, fica tácito que a única maneira de “esquecer” a violência, a opressão, era se embriagando. É válido destacar a expressão “ninguém segura esse rojão", um trocadilho com uma propaganda do governo, “ninguém segura esse país”.
(...) Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se me permite, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco (...)
É interessante o verso “O correio andou arisco”, pois é enfatizada a dificuldade, na época, de fazer com que uma mensagem chegasse ao seu destinatário, devido aos censores, claro, e responde também o porque da fita, do disco, terem sido objetos escolhidos para transmitir as notícias.
Pode-se concluir, portanto, que a intenção de Chico Buarque ao compor “Meu Caro Amigo” foi de alertar Boal, lá na Europa, para que não voltasse ao Brasil, pois o país, mesmo 12 anos depois do golpe, continuava assolado pela repressão engendrada pelos militares.
CONCLUSÕES
O que se notou da análise das canções de protesto de Chico Buarque, produzidas durante o regime militar no Brasil (1964 – 1985), foi que suas mensagens nunca eram claras, os ouvintes ou leitores delas deveriam estar engajados com a política brasileira da época ou não as entenderiam de fato, não captariam as reais intenções do artista. Um recurso, portanto, do qual Chico se valeu, e muito, foi implícitos, deduz-se aquilo que a letra da canção quer dizer.
Vale lembrar, aqui, que não só na música, mas no teatro, na poesia, na prosa, enfim, na arte em suas várias vertentes, a ditadura era criticada, bem como, seus algozes, os militares. Este trabalho tentou mostrar também que a intelectualidade brasileira não ficou inerte diante dos generais, mesmo sufocada por uma censura doentia não se calou e buscou maneiras de camuflar sua voz.
BIBLIOGRAFIA
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[1] Atos Institucionais foram decretos emitidos pelo governo militar após o golpe.