Proteção ao exercício regular da função pública ou de suas arbitrariedades

Por Katherynne Dias | 06/11/2016 | Direito

RESUMO

O presente estudo tentadiscute as possibilidades de uma polícia diferente em uma sociedade democrática. A concretização dessas possibilidades passa por alguns eixos: mudançasnas políticas de qualificação profissional; programa de modernização; e processos demudanças estruturais e culturais que discutam questões centrais para a polícia.E também vê porque a figura do crime de desacato no ordenamento jurídico brasileiro faz com que operadores do direito, desatentos aos ditames do Pacto de San José da Costa Rica e a conclusão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, apliquem esta figura criminal ao caso concreto.

 

INTRODUÇÃO

A violência e a crescente criminalidade estão diluídas por toda a sociedade. Para sechegar à resolução dos problemas, as polícias precisarão fazer uma articulação de ações, compreensão e identificação do seu núcleo, buscando melhores soluções. Ou seja, cada fato que se apresenta hoje para polícia merece um tratamento diferenciado, e esta exigência está estabelecida para a ação da polícia no ambiente democrático.

Assim, pode-se perceber que a função policial necessita ser vista, também, como dedelicada complexidade e, para ser bem exercida, tornam-se imperativos suaqualificação, o reaparelhamento tecnológico, a atualização das técnicas policiais e, principalmente, sua revisão conceitual.

A sociedade, por sua vez, deve assumir que é uma sociedade complexa, na qual osconflitos acontecem no dia-a-dia e a todo o momento, exigindo da segurança pública ações diferenciadas. Não é possível se fazer hoje um procedimento padrão para o policial no seu trabalho cotidiano. Ele precisa ter a capacidade de ampliar o espaço de decisão nas escolhas das ações e intervenções para cada fato que enfrenta. Então, neste momento, a postura mediadora passa a ser uma função importantíssima na açãoda polícia. 

  1. O CÓDIGO PENAL BRASILEIRO E A PROTEÇÃO ESPECIAL A AUTORIDADE NO EXERCÍCIO DE UA FUNÇÕES

O direito penal brasileiro prevê de maneira especial a sansão da critica a funcionai público no exercício de ua funções e a altas autoridades públicas. Nesse sentido o Código Penal de 1940 conta com a figura do crime de desacato a autoridade, no seu artigo 331. Assim como uma cláusula de aumento de pena relativo a todos os crimes contra a honra (injuria, calúnia e difamação).

Desse modo o Direito penal brasileiro prevê duas formas de proteção especial à honra e a reputação do funcionário público no exercício de ua funções contra ofensas, crítica ou insultos que podem ser utilizadas contra estes pela população em geral. Além dos tipos penais em si, outras deposições de caráter processual também são delimitadas para outorgar maior proteção.

No entanto, e como podeser demonstrado, os doutrinadores brasileiros criminalistas no geral não contestam tais figuras penais, e tão pouco discutem a possíveis consequências destas para o direito a liberdade de expressão em um liberdade democrática. Pelo contrário, a doutrina, nas ocasiões que e busca justificar a proteção especial se faz por uma lógica de proteção do Estado e da administração pública, e não da necessidade de uma proteção maior da expressão crítica proferida por cidadãos, nesse sentido, não a na doutrina analisada se quer discussão obre um possível conflito de direitos: liberdade de expressão x direito a honra. E a doutrina parece partir do pressuposto de que o tipo penal de expressão que poderia ser enquadrado entre as figura criminais é, a priori, não protegido pelo direito, e, pelo contrário, deve ser sancionado[1]

  1. O QUE É O DESACATO 

Todo funcionário público, do maishumilde ao mais graduado, representa oEstado, agindo em seu nome e em seu benefício, buscando sempre a consecução do interesse público. Consequentemente, no exercício legítimo do seu cargo, o agente público deve estar protegido contra investidas violentas ou ameaçadoras. Esta é a razão da criação do crime de desacato pelo art. 331 do Código Penal.

Vale destacar que, ao contrário da ideia consolidada no jargão popular, o nome do delito é simplesmente “desacato”, e não “desacato à autoridade”. Qualquer funcionário público, pouco importando as atividades desempenhadas, pode ser desacatado, e não somente os mais graduados e dotados de patentes e insígniasdestacadas. Nesse sentido, o tipo penaltutela de igual modo tanto as funções públicas de um lixeiro como os misteres relacionados ao Presidente da República[2].

O bem jurídico penalmenteprotegido é a Administração Pública, especialmente no tocante ao desempenho normal, à dignidade e ao prestígio da função exercida em nome ou por delegação do Estado. Secundariamente, também se resguarda a honra do funcionário público, sendo o objeto material o funcionário público contra quem se dirige a conduta criminosa.

O núcleo do tipo penal é “desacatar”, ou seja, realizar uma conduta objetivamente capaz de menosprezar a função pública exercida por determinada pessoa. Em outras palavras, ofende-se o funcionário público com a finalidade de humilhar a dignidade e o prestígio da atividade administrativa. Cuida-se de crime de forma livre, compatível com os mais diversos meios de execução, tais como palavras (exemplo: chamar um juiz de Direito de “fomentador da criminalidade”), gestos (exemplo: simular com as mãos a atitude do larápio perante um delegado de Polícia), ameaça (exemplo: prometer “pegar” o policial militar responsável pela prisão em flagrante), vias de fato(exemplo: esbofetear a face do oficial de justiça), lesão corporal (exemplo: chutar levemente o fiscal de obras), bem como qualquer outro meio indicativo do propósito de ridicularizar o funcionário público[3]. Entretanto, é pressuposto do desacato seja a ofensa proferida na presença do funcionário público, pois somente assim estará evidenciada a finalidade de inferiorizar a função pública. Consequentemente, não se admite a execução do desacato mediante cartas, telefonemas ou e-mails, entre outros meios.

Com efeito, a ofensaefetuada contra funcionário público e emrazão das suas funções, mas na ausênciadeste, configura o crime de injúriaagravada, nos termos do art. 140, caput, c/c o art. 141, inc. II, ambos do Código Penal, conforme estudado detalhadamente no item seguinte. Anote-se, contudo, que a mencionada presença não se confunde com a colocação “face a face” do ofensor e do funcionário público desacatado. Exemplificativamente, há desacato, pois se considera presente o funcionário público, quando um juiz de Direito encontra-se sentenciando em seu gabinete, com a porta aberta, e um advogado, da sala de audiências, se refere a ele como “famigerado protetor dos devedores”. A análise do art. 331 do Código Penal releva que a conduta criminosa pode ser praticada no exercício da função pública ou em razão dela[4].

Assim sendo, o que se busca proteger no tipo penal é a salvaguarda da função administrativa estatal. Por reflexo, deve-se tutelar penalmente o funcionário público no exercício de suas funções, haja vista ser ele o responsável por orientar a administração estatal no seio social, proporcionando a atuação da máquina estatal de forma proba.

Em suma, o tipo penal do desacato é a garantia ao funcionário quanto às suas ações executadas de forma regular e íntegra. Caso contrário, poderá ele exigir, da administração pública, uma ação positiva do Estado para que se cumpra essa prerrogativa: nesse momento, se provoca o dever de cumprir a norma penal reservado a ordem estatal. 

  1. DESACATO FRENTE AOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS 

A decisão judicial final que condena o réu ao cumprimento de pena por ter cometido o crime de desacato viola a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, Liberdade Pessoal e Liberdade de pensamento e expressão.

A Relatoria para Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos já concluiu que as leis nacionais que estabelecem crimes de desacato são contrárias ao artigo 13 da CADH. Desta forma, ninguém poderia ser condenado criminalmente e ter a sua liberdade pessoal restringida por uma norma de direito interno que colidisse com a Convenção.No Informe sobre “Leis de Desacato e Difamação Criminal”, de 2004, a Relatoria afirmou que as leis de desacato são incompatíveis com o artigo 13 da Convenção[5].

No item “B” do citado Informe restam evidentes as razões que levaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a declarar a referida incompatibilidade, a saber: a afirmação que intitula esta seção é de longa data: tal como a Relatoria expressou em informes anteriores, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) efetuou uma análise da compatibilidade das leis de desacato com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em um relatório realizado em 1995. A CIDH concluiu que tais leis não são compatíveis com a Convenção porque se prestavam ao abuso como um meio para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo, desse modo, o debate que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas. A CIDH declarou, igualmente, que as leis de desacato proporcionam um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados, em direta contravenção com o princípio fundamental de um sistema democrático, que sujeita o governo a controle popular para impedir e controlar o abuso de seus poderes coercitivos.

[1] ARAUJO, Luc Athayde de. O direito a liberdade de expressão crítica ao Estado e seus representantes em uma sociedade democrática. Monografia da PUC, 2012.

[2]MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado, vol. 3: parte especial, 4. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014.

[3]GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. v. IV. 10ª ed. Revista atualizada e ampliada. Niterói: Impetus, 2010.

[4]MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado, vol. 3: parte especial, 4. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014.

[5]GALVÃO, Bruno. Liberdade de expressão: o crime de desacato e os direitos humanos. Disponível:<http://www.conjur.com.br/2012-set-15/bruno-galvao-desacato-comissao-interamericana-direitos-humanos>. Acessado em: 10/05/2015.

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