PROPOSTA DE UNIFICAÇÃO DOS COMANDOS DAS POLÍCIAS - CRIAÇÃO DA PROCURADORIA-GERAL DE POLÍCIA NO ESTADO DE SANTA CATARINA – GOVERNO ESPERIDIÃO AMIM – 1998/2002 - PARTE IX: “UM CORONEL E O DESTINO DE TODOS NÓS”  (Felipe Genovez)

Por Felipe Genovez | 12/03/2018 | História

No Shopping Beira Mar:

Corria o dia 04 de setembro de 1998, era mais um domingo daqueles com gosto de crepúsculo de inverno, do lado de fora sol a pino que reluzia por todo fagueiro mar da baia norte da Capital Catarinense. A tarde já se apresentava no seu primeiro quarto de hora e estava ainda no interior do aconchegante piso térreo do Shopping Beira Mar Norte.  

Depois do almoço suculento na “Churrascaria Pegorini”, juntamente com “Dinha”, Cilene e Clara Meirelles resolvi dar uma voltinha pelos imensos corredores e suas lojas. Meu local preferido era a banca de revistas (ainda não existiam as “Livrarias Saraiva e Catarinense”, em cujos instantes deixados,  excepcionalmente, me distanciei das amigas já que “Dinha” havia se proposto a quitar as nossas despesas e, ainda na nossa mesa se apresentavam numa confraria alegre e divertida que insistia perpassar os anos de suas vidas.

Algum tempo mais tarde, após vasculhar prateleiras da banca atrás de revistas e jornais, me dei por conta que a “Clarinha” estava ao meu lado com aquele seu sorriso doce e meigo, típico de uma figurinha “infanta angelical” cumprindo sua missão de avisar que “Dinha” e Cilene (sua mãe) estavam muito próximas, porém, entretidas numa conversa com uma conhecida que encontraram pelo caminho. Assim, eu e Clara juntinhos podíamos curtir mais tranquilamente aqueles nossos doces momentos, o que raras vezes ocorria naqueles tempos. Enfim, estava feliz porque podia sentir a integral presença daquele “serzinho”, o que despertava aquela ponta de espírito paternal, ou como ela própria, de maneira bastante inesperada, quando perguntada por outra criancinha lá na casa de praia do Morro das Pedras se eu era seu pai ela respondia de pronto: “Não, não, ele é meu amigo!” e aquilo funcionava como um dardo virtual e certeiro que atingia meu peito com um misto de amor e grandeza espiritual. Olhei nos seus olhinhos e perguntei:

  • Clara onde está o mulherio?

 

Sem pestanejar e apontando para a direção, quase que aos gritinhos e risos, veio a resposta:

 - Elas estão lá conversando com uma amiga.

 Ainda no andar térreo, quando direciono nossa caminhada ao encontro das duas amigas, percebi a aproximação do Coronel Paulo Roberto Fagundes de Freitas (já há bastante tempo reformado). Imediatamente aflorou aquele senso de discrição natural já que nosso encontro era iminente. Há alguns anos ansiava por conversar com o  conhecido de longa data da minha família por parte materna (ingressou na PM-SC por orientação de uma tia e fazia questão de relembrar esse fato que marcou positivamente sua vida...). Além do prazer de me avistar com o amigo, sem dúvida, tratava-se de uma pessoa das mais dignas e nobres que conhecia na Polícia Militar, daquelas pessoas que você pode confiar serenamente e um prazer renovado de reencontrá-lo. Aliás, sempre lembrava da atitude do Coronel Freitas numa reunião na residência do Deputado-Coronel Sidney Pacheco - Rua Iano – São José - no outono de 1986, em cuja ocasião discutimos com outros Coronéis (Guido Cardoso, Nolasco...) os rumos das nossas campanhas políticas (no meu caso candidato à Camara Federal e Constituinte e Pacheco a Deputado Estadual), tudo isso ocasionado por conta de embate indigesto sobre “traições” de um dos lados. Ao se encerrar a reunião num "impasse" gerado pelos militares, o Coronel Freitas veio se despedir de mim e fez o seguinte comentário: “Me sinto envergonhado do que aconteceu aqui, você teve dignidade, demonstrou que é uma pessoa que honra a palavra...”. Depois de me refazer desses fragmentos de lembrança, era muito bom encontrar o Coronel Freitas e trocar algumas ideias sobre os tumultuados tempos que passou pelo Comando-Geral à frente da Polícia Militar de Santa Catarina e, por segundo, o impacto causado pelos desgastes do tempo, era tudo o que se apresentava naquele momento e que mexia com nossas mentes não desgrudadas de nosso passado naqueles encontros, tão ligadas às nossas vidas institucionais. A imagem congelada por tais pensamentos se desfez rapidamente e na medida em que iniciávamos nossa interlocução, dissipava-se também o dissimulado sobressalto causado pela visão dos cabelos grisalhos, a pele enrugada e os dentes inferiores denotando uso constante do tabagismo do agora “velho militar da caserna”. 

De chofre, o Coronel Freitas após afirmar que estava advogando, passou a fazer um quase monólogo sobre a sua passagem conturbada pelo Comando-Geral da PM/SC. Deixou claro que até aquele momento ainda não havia se refeito do rescaldo provocado pela gestão do Deputado-Coronel Sidney Pacheco durante os marcantes anos de 1991-1994. E na sequência, Freitas passou a fazer um quase monólogo, sem respiro e sem intervalo de tempo,  contendo os seguintes desabafos:

- ... Ainda estou me refazendo não só dos problemas físicos e de saúde, mas, também, psíquicos...” (lembrei imediatamente do ex-Delegado-Geral Jorge Xavier que depois que deixou a direção da Polícia Civil também teve que se submeter a tratamentos psíquicos e psicológicos...). 

- ... O Pacheco durante toda a sua administração procurou esvaziar toda a autoridade que eu tinha, centralizando o poder...”.

- .... Ele colocou em seu gabinete alguns sargentos da pior índole para assessorá-lo, enquanto os verdadeiros amigos passaram a ser tratados de maneira fria...”.

- ... Politicamente foi um desastre. Quando o filho do Pacheco foi candidato a vereador por São José, procurei Pacheco e adverti o mesmo para o fato de que sendo Deputado Estadual, Secretário de Segurança Pública como é que poderia explicar o fato de seu filho não conseguir sequer uma suplência...”.

- ... E tai o Mantelli, com o seu rabo de cavalo, enquanto o Pacheco está aí no ostracismo, quando poderia estar na Assembleia...”.

- ...O Jorge passou pelos mesmos problemas. Pacheco não esvaziou só o Comando da PM mas fez o mesmo com o Delegado-Geral. Dava pena do Jorge. Tínhamos que nos debater para manter nossa autoridade...”.

- “... Para ter uma ideia, cheguei ao ponto de ao despachar com o Pacheco levar requisições de combustível para discutir com ele coisas corriqueiras e que jamais deveriam passar pelo Gabinete...”.

- “....Quando não aguentei mais a situação redigi a minha carta de exoneração dirigida diretamente ao Governador. Levei-a ao ‘Pacheco’ que ao tomar conhecimento de meu intento simplesmente disse que tinha procedido muito bem ao pedir para deixar o cargo e que levaria seu pedido de exoneração para o Kleinubing. Respondi a ele que negativo, iria eu mesmo levar o documento diretamente sem a sua intermediação...”.

- “...Uma vez, quando num despacho com o governador, quando acompanhava Pacheco, fiquei horrorizado porque ele começou a falar mal do Jorge para Kleinubing. Iso jamais poderia acontecer porque o Delegado Geral era pessoa da sua confiança e seu compadre...”.

- “...Tu não vê como o Pacheco fez com aquele menino que estava na Regional de Rio do Sul, o Júlio Teixeira. Eu disse para o Pacheco não tirar o rapaz  da Delegacia Regional. O Kleinubing e o Jorge Bornhausen haviam solicitado para que o Pacheco não tirasse o Júlio.  E ele acabou sendo exonerado. Veja no que deu, rapidamente Kleinubing e Bornhausen fizeram um acerto na Assembleia Legislativa e puxaram Júlio  que era suplente e assumiu uma cadeira de Deputado Estadual. Moral da história o rapaz foi reeleito...”.

“...O mais incrível, nunca vou me esquecer, numa madrugada o Pacheco me apareceu lá em casa. Minha esposa assustada foi atendê-lo ainda em trajes de dormir e veio me informar que o Secretário de Segurança Pública desejava falar comigo.  Preocupado com o que poderia ser por que a presença do Secretário na minha residência naquele horário deveria vir acompanhado de um fato de suma relevância.  Pacheco me levou até à frente da minha casa para me mostrar um carro zero quilometro “Mitsubishi Eclipse” dizendo que precisava da minha opinião porque estava em dúvida se iria ficar com o carro. Após dar umas voltas ainda de pijama fiquei perplexo pois com tantos problemas graves para resolver estava ali o Secretário de Segurança de madrugada na minha casa para mostrar um carro, para dar umas voltas...”.

- “...Meu sonho quando era Tenente-Coronel e presidente do Clube dos Oficiais era chegar um dia a Coronel e ser  Comandante-Geral da Polícia Militar. Se soubesse que teria que enfrentar dez por cento dos problemas que tive que enfrentar na época do Pacheco jamais teria aceito o cargo. Quando era Comandante do Batalhão de Chapecó ofereceram a Direção da Penitenciária daquela cidade com vantagem financeira, habitação e toda a alimentação, o Comando da PM não deixou eu assumir porque precisavam de mim. O João Kurtz, Procurador-Geral de Justiça esteve em Chapecó me visitando e disse que havia ficado contente porque soube da minha inscrição para o concurso de ingresso a carreira de Promotor de Justiça  e me incentivou a fazer as provas porque sabia que eu tinha competência para passar. Kurtz pediu para não deixar de realizar as provas, tu vê eu poderia hoje estar muito bem. O que tenho hoje como resultado de toda uma vida de luta é uma residência financiada pelo BNH que estou terminando de pagar e um automóvel...”.    

- “... Quando Pacheco lançou-se candidato a Deputado em 1987 eu era Presidente do Clube dos Oficiais. Propus-me a viajar com ele por todo o Estado para lançá-lo à Assembleia Legislativa. Por onde eu ia os policiais militares afirmavam que dariam todo apoio a uma candidatura, desde que fosse a minha, ficava constrangido porque tinha que dizer a eles que não era eu o candidato e sim o Pacheco que estava na reserva e me acompanhava...”.

“... O Guido (Coronel Guido Cardoso Zimermann) está em Casa. Ele está com sérios problemas de saúde com sua mulher que está com depressão profunda e não aceita mais sair...”.

(...)”.

Considerando o adiantado da hora pude observar de solascio que de vez enquanto o pessoal que me acompanhava já estava próximo e aguardavam ansiosamente o término daquela conversa (talvez percebendo um pouco da exaltação do Coronel Freitas e preocupadas com o prolongamento daquela nossa quase conversa). Procurei amenizar o frenesi fazendo a apresentação e ao mesmo tempo aproveitando a oportunidade para as nossas despedidas.

Durante o trajeto de saída aproveitei para externar em voz alta o determinismo que me conduziu naquela época à defesa do “Plano na área de Segurança Pública”, como no passado também ocorreu com o “Plano SIM” que envolveu do lado da PM os Coronéis Pacheco, Guido, Paulo Freitas, Nolasco e, do lado da Polícia Civil, o Delegado Jorge Xavier, este autor... Rememorei outros ex-Chefes de Polícia, especialmente Antonio Abelardo Bado, Jorge Xavier e Evaldo Moreto que também saíram desgastados, talvez tanto como o Coronel Freitas.

Certamente, não era isso que desejava para o nosso futuro. Tudo em nome de ideais, na busca pelo poder, na verdade parte de um “bem talvez não de um teatro da razão” e com tudo mais que o “pseudo senso de poder”  pudesse causar em termos de vivenciar apenas “quimeras” que poderiam desaguar em um vazio, solidão e em “jactantes torvelins” sugadores de um tempo precioso de convívios familiares, leitura de bons livros, reflexões... e o sorver a vida mansa e prazerosamente.  

Aliás, na noite desse mesmo dia conversei com o Delegado Ruben Garcez por telefone para lembrá-lo dos compromissos na segunda-feira (Hotel Castelmar – apresentação do Plano de Governo da Saúde) e na terça-feira também teria o jantar no Restaurante Candeias (São José). Garcez estava de plantão na CPP (5a DP da Trindade) e logo de início relatou que tudo estava calmo. Em síntese, fiz um relato do encontro com o Coronel Freitas para dar ênfase ao entendimento de que não valia a pena se desgastar tanto em nome de ideais, mas que a luta era contínua e exigia que pessoas assumissem responsabilidades mais profundas e complexas, sob pena de outros assim procederem com intenções pouco morais, éticas e lícitas. Garcez, sempre filósofo, concordou. Mas o importante dessa nossa conversa foi a advertência que fiz: “a gente se deixa absorver pelos problemas institucionais de tal maneira que quando somos ejetados para o esquecimento e as dores impensadas, só nos resta talvez o consolo de poucos  e a certeza de que a vida passou e esquecemos do nosso verdadeiro viver”.

Já recolhido ao meu silêncio não poderia deixar de rememorar aquele encontro, pois ver e sentir o Coronel Freitas infeliz, distante da caserna, poderia refletir também a nossa infelicidade frente a destinos institucionais tão inexpugnáveis quanto jactantes.