Prólogo

Por Pierre Augusto Rafael | 20/08/2009 | Contos

Prólogo

Entregue... O sentimento de impotência toma corpo, forma e substância, não preciso procurar pelo abismo, pois eis que a terra sob mim se abre.

Na minha frente o médico, o desdém, ele não crê, apenas redige, friamente... Retilineamente, última chance, a sentença é decretada, grita minha alma, agoniza em procura do êxtase que nunca chega... Perco-me a mesma frase ganha sentido:

— Hurt was my Blackbird. – encontra-se ferido, não há retorno, o desprezo, a indiferença, sem sentido viver... "A vigilância diária será um pequeno preço a pagar por minha paz de espírito..."

Antes sonhava, encontrava refúgio... Proteção... Abrigo... No espaço onírico... Na força telúrica; no momento, encontro o oceano desconhecido, o mar bravio das reações que minhas ações desencadearam, fustigam-me o rosto, arrancam-me o espírito.

Sem retorno, tudo que planejei...

Concretiza-se!

Agora neste quarto de hotel na beira de uma estrada sombria, com um revólver na mão, desejei, me entreguei... O espaço é preenchido por um trêmulo rabiscar, um incongruente escrever, num pedaço de papel qualquer, o tique-taque do relógio, é monótono, o ritmo de minha respiração, é inconstante e o pulsar de meu coração, é frenético...

Desvairado encontro-me, as palavras do sábio filósofo Ovídio são aclamadas: "Descanse, um campo que descansou oferece uma linda colheita". Não enxergo, não cheiro, não ouço, não falo e não sinto, deixei de viver o presente, para lamentar o passado e angustiar-me com o futuro.

Sua visão se tornará clara somente quando você puder olhar dentro do seu coração, última profecia, profetiza o último profeta... Em vão busco algo para ater-me, lembro que em todo quarto de hotel existe uma bíblia no criado-mudo, procuro ensandecido por este bálsamo que pode quem sabe? Diminuir minhas feridas?

Encontro um livro com a capa rasgada pela metade onde lê-se "[...]BIRU: Caminho do céu" reflito aquele volume não estava por acaso na minha mão e, por isso, devia lê-lo afinal a diária do hotel já estava paga e uma história nova era o que precisava para esquecer da minha...

Comecei a lê-lo...

"A preocupação nunca tira a tristeza do amanhã, ela somente enfraquece a força do hoje"

A. J. Cronin[i]

PREFÁCIO

Desperto... Ao redor curiosos ruídos, bem diferentes do que outrora conheci. Caro leitor, muito obrigado, pela oportunidade, liberta-me da minha prisão, posso finalmente falar, sentir o ar e a sua curiosidade; invoco as artes, musas do conhecimento, equalizam nosso mutualismo, saudemos então:

1.Agricultura,pois sem conhecê-la o homem ainda estaria como os outros animais, procurando o próprio sustento;

2.Navegação, técnica fundamental para romper a limitação física do homem, diminuindo as fronteiras e espaços geográficos,

3.Indústria,um amplificador das habilidades humanas, o homem inventou os instrumentos e aprimorou as técnicas, para replicar seus avanços industrializou-se;

4.Comércio,as relações de troca são intrínsecas aos habitantes do mundo e por extensão ao homem, além das conhecidas experiências de sua subjetividade com o exterior, ele extrapola quando estende essa relação para seus pares, tornando vital o social.

5.Religião, a interface e a explicação do mundo, quando o homem cria dispositivos que permitem um intercâmbio do humano com o inumano, cria sua expectativa acerca da criação, assim surge à última grande manifestação humana.

Agradecendo estas cinco conquistas humanas, que permitem ao homem a confecção de outras formas, para manter sua elevação, venho capturar seus sentidos, desavisado leitor, sentidos que agora me tornam humano.

E eu em troca lhe ofereço o aprendizado e o deleite, pois, afinal sou um documento, ensino... Emito a lição, dou o aviso, sou a advertência, demonstro o modelo... A palavra convence, mas o exemplo arrasta, deixa indícios, envia o sinal, a indicação, a almejada prova que faz fé, afinal sim, tudo isso sou eu, incrédulo leitor.

Não me compreendes, em absoluto, dedicado leitor, sinto que o problema deixa de existir, para provar minha boa fé e que não sou mesquinho, tão pouco me preocupa este, libellus[1], saboreio essa jornada em que o venerável leitor mostrará o mundo e se ainda vale a pena narrar o começo, a trajetória e o fim mostrar-lhe-ei vivaz leitor, que venho de eras esquecidas, em que não se conhecia o tempo e pelo visto muito mudou de lá para cá.

— Como sei disso, inquiridor leitor?

Assim como me sentes como tu lês a mim eu leio a ti, astucioso leitor, e conforme conhece meu mundo revelo tua época assim completamos nossa simbiose. Para o heróico leitor, a possibilidade é infinita, pois não tem perspectiva temporal, tal qual a minha, definida, demarcada, delimitada por estas páginas.

Desde quando comecei a narrar meu desejo é prender tua atenção, pois antes da sua curiosidade, vagava eu pelo limbo e ao começar a comer de minhas migalhas, tu me dás a vida, honorável leitor, e o tempo passa de forma mais agradável, uma armadilha tanto para ti quanto para mim.

A dificuldade é de ambos para mim está em aguçar vossa curiosidade e permanência na narrativa, e o leitor tem que decifrar cada vez mais os esfíngicos mistérios, propostos, cultivados em sua imaginação, afinal como disse certa vez um grande poeta, se não nos esforçarmos não passamos todos de mero gado servil, deixemos e esqueçamos-nos deste nosso pacato pacto, perceba ardoroso leitor, que seguindo a tradição dos antigos desvendarei criaturas fantásticas que para surgirem tinham que ser reveladas; tais como: os gênios condescendentes de três pedidos, pois as montanhas estão prontas para parir um rato, ou melhor três ratinhos:

Sendo assim, concedo-lhe três livros, narrarei três singulares histórias:

·O Filho de Chonchón,

·O Homem da Perna Torta e

·O Triste Pio de Tué-tué.

Começaremos no fim do mundo e viajaremos até o seu começo, e como o mundo é redondo não posso lhe afirmar onde é o começo e onde é o fim, contudo proporcionar-lhe-ei uma grande e agradável jornada, por isso grande amigo e parceiro, ó abstrato leitor, e de agora em diante, amo, pois, tu leitor tens o poder de acabar com minha miserável existência, e a recíproca não é verdadeira, mas deixemos de lamentações, por isso a palavra quando solta por mim é uma lagarta, que ao atingir tu céptico leitor se transforma em borboleta fazendo-o sonhar.

— Não acredita, incrédulo leitor?

Pois acabei de expor o fato, não acompanhou o raciocínio, tudo bem, não se acanhe vamos novamente agora com outras palavras, veja o caso da palavra que usei a pouco: amo, ela deixou de ser um desejo humano, que deriva de um verbo intransitivo: amar – flexionado na primeira pessoa do singular e torna-se o descobridor, dominador e senhor, por isso, meticuloso leitor...

Analise seus desejos, pois a todo instante estará sendo observado dar-te-ei no início dessa jornada um sentido, uma bússola para orientar-se, assim não irás perder-se dividirei o mundo em dois, e o miraculoso leitor, penderá para uma parte então que seja pela procedência ou preferência, desditoso leitor, qual modo trabalha vossos desejos, para onde pende o prato de sua fome; começo o que melhor sei, que é contar, improvisar, e tu leitor fazes o seu melhor que é desvelar, fantasiar...

Oriente Desejo

Esta história foi contada por um sábio chinês, que possuía uma imensa e intensa admiração pela água, para ele a água era a substância mais perfeita da Natureza ele chamou-a de substância primordial e postulou que quando gelo a água tem uma forma estática como a de nosso corpo físico, sem ânimo, sem alma, quando em estado líquido seria como um corpo astral o equivalente de nossa alma, e por fim em estado gasoso seria nosso corpo espiritual, sem limites ou fronteiras preenchendo todos os espaços possíveis com velocidade máxima.

Ele percebeu que tudo que tinha vida precisava e comportava-se como a água, começou a comparar água a um esquema cósmico maior que explicaria o que estava em cima e o que estava em baixo pensando assim ele formulou a seguinte comparação entre o desejo humano e a água.

O desejo seria como água contida em um recipiente se aquele que deseja puxa para si com muita sofreguidão desperdiça o precioso líquido, se empurra com desdém continua a perder o líquido da vida, então qual a melhor forma para obter-se tão dadivosa substância? Deve-se através da persistência e paciência puxar calmamente o recipiente e assim com certeza aliviaremos toda a nossa a sede. (±12 a.C.)

Desejo Ocidente

Não entendeu a filosofia inerente da primeira dica confuso leitor, então seu desejo, foi explicado por um grande arqueiro, que em risco colocou a vida de seu bem mais precioso, seu filho, reza uma esquecida lenda, a de Guilherme Tell, o excelente arqueiro, que no reino em que ele morava havia uma disputa pelo poder e um tirano para provar sua supremacia, mandou em uma praça pendurar num poste um chapéu com as cores da sua bandeira e ordenou que todos que por lá passassem deveriam fazer uma vênia como prova de respeito. O chapéu era guardado por soldados que se certificariam que as ordens do governador fossem cumpridas.

Um dia, Guilherme e seu filho passaram pela praça e não saudaram o chapéu. Prenderam-no imeditamente e levaram-no à presença do governador que, reconhecendo-o, o fez, como castigo, disparar o arco a uma maçã, porém a maçã estaria na cabeça de seu amado filho. O pai muito pediu para que o tirano voltasse atrás do castigo, sem sucesso; e o governador ameaçou ainda matar ambos, caso não o fizesse.

Tell foi assim levado à praça, escoltado por soldados, a população amontoava-se na expectativa de assistir ao castigo (de lá para cá nada mudou). O filho de Guilherme foi atado a uma árvore, e a maçã foi colocada na sua cabeça. Contaram-se 50 passos. Tell carregou o arco, fez pontaria calmamente e disparou. A seta atravessou a maçã sem tocar no rapaz, o que levou a população a aplaudir os dotes do corajoso pai herói. Perguntaram ao arqueiro como ele conseguira executar tamanha façanha ao qual ele respondeu:

— Senhores quando empunhei o arco era: Eu, o arco e a flecha, quando retesei o arco e soltei a flecha era: Eu, a flecha e o caminho do meu alvo; E quando a flecha atingiu o alvo já não era mais a flecha e sim eu que o atingia e me transformava em alvo, assim explicou o grande arqueiro.

Ouça, veja, respire, sinta e saboreie agradável leitor, pois seu desejo é uma ordem, no caos da existência, o que está embaixo está em cima...



[1] Nota do Autor: Libellus vem do latim e significa ninharia, livrinho.


[i] Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre. Archibald Joseph Cronin (Cardross, 19 de Julho de 1896 — Montreux, 6 de Janeiro de 1981) foi um escritor escocês. Era formado em Medicina. Escreveu romances idealistas de crítica social, traduzidos em vários idiomas, e alguns deles adptados ao cinema e à televisão, como The Citadel (1937) e The Minstrel Boy (1975)