PROCESSO DE COLONIZAÇÃO E RESISTÊNCIA CULTURAL NO MARANHÃO: ESCRAVIDÃO E FORMAÇÃO DE QUILOMBOS
Por Antonio José Pereira do Nascimento | 17/09/2017 | EducaçãoPROCESSO DE COLONIZAÇÃO E RESISTÊNCIA CULTURAL NO MARANHÃO: ESCRAVIDÃO E FORMAÇÃO DE QUILOMBOS
Antonio José Pereira do Nascimento
RESUMO
É imprescindível compreendermos e valorizarmos as informações e conhecimentos, numa ótica geral da ocupação territorial brasileira, com ênfase ao processo de invasões e controle fronteiriços, em especial no que tange a trajetória de consolidação do espaço geograficamente maranhense, e, sobretudo a capacidade de seus habitantes em preservar viva parte de sua cultura, mesmo diante de fortes embates e conflitos. Fatos estes relacionados à enorme capacidade de preservação de valores e costumes, haja vista a extrema significação intrínseca no interior de cada ser.
Palavras-chave: Processo de Colonização. Resistência Cultural. Formação de Quilombos e Conflitos.
Mestrando em Ciências da Educação e Multidisciplinaridade pela Faculdade do Norte do Paraná e professor de carreira da rede pública de ensino. Website: www.professorantoniojose.com.br E-mail: tonyprotesto@bol.com.br.
Introdução
O desbravamento da região, a principio litorânea e posteriormente ribeirinhas, na ótica da conquista estrangeira, (visto antes já existiam milhares de nativos ocupando a região), passou por várias situações conflitantes, envolvendo nacionalidades distintas bem como franceses, portugueses dentre outras. Ao longo do processo de colonização no Maranhão, antes com nomenclatura atrelado a outras regiões e conjuntura territorial ainda mais ampla, ocorreram diversas disputas intimamente ligada a ocupação da região.
Com a assinatura do Tratado de Tordesilhas entre os portugueses e espanhóis por volta de 1494, à região onde hoje se encontra o estado do Maranhão ainda não fazia parte do território brasileiro.
Entretanto, em 1534, o rei de Portugal D. João III dividiu o Brasil-colônia em Capitanias Hereditárias a fim de fazer um cerco no país e impedir a invasão de estrangeiros. Nesta divisão, o território do Maranhão foi fragmentado, mas logo seria invadido pelos franceses por ter uma localização estratégica na região Nordeste do país.
Em 1612, Daniel de La Touche comandou uma missão francesa até a ilha de Upaon-Açu e tornou-se um dos fundadores do povoado da França Equinocial, chegando a construir o Fourt de Saint-Louis, nome dado em reverência ao rei de seu país. Neste momento, nascia a futura capital do Maranhão: a cidade de São Luís.
Os portugueses decidiram reivindicar o território ocupado e expulsaram os franceses em 1615, sob comando de Jerônimo de Albuquerque Maranhão, que lutou ao lado de algumas tribos indígenas.
No ano de 1621, a Coroa portuguesa nomeou as divisões territoriais de Maranhão e Grão-Pará, para defender a costa marítima do país e estabelecer contato com a metrópole, que estava centralizada na cidade de Salvador.
Ainda no século XVII, as Invasões Holandesas no Nordeste também viriam a influenciar no desenvolvimento econômico do Maranhão. Estes estrangeiros queriam expandir a indústria açucareira com a procura de terrenos férteis para a produção de cana-de-açúcar.
Um novo movimento de expulsão por parte dos colonizadores portugueses se iniciou: em 1642, o capitão Antônio Teixeira de Melo organizou uma expedição para enfrentar os holandeses, mas só conseguiu a vitória efetiva dois anos depois.
Com a nomeação do Marquês de Pombal como Primeiro-Ministro português, o estado maranhense foi subdividido em quatro capitanias: Maranhão, Piauí, São José do Rio Negro e Grão-Pará.
Pombal fundou a Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão e estimulou a migração de outros povoados nordestinos para a região com o cultivo de arroz e algodão. Estas novas mercadorias aceleraram o desenvolvimento do estado, que chegou a abrigar diversos casarões antigos que fazem parte do Centro Histórico de São Luís.
Entretanto, com o fim do sistema escravocrata em 1888, o estado passou por um difícil período econômico e só veio se recuperar no início do século seguinte, por volta de 1910, com a industrialização do material têxtil.
Fatos que marcaram a trajetória de vida desse povo, sobretudo por viverem em uma situação difícil e oscilante no que se refere às questões relacionadas à própria sobrevivência. Neste contexto, mesmo diante de uma forte pressão física e psíquica, tinha como instituição controladora A Igreja Católica Apostólica Romana que aqui imperou por séculos através da companhia de Jesus (os Jesuítas), que durante séculos empunharam doutrinas centradas estruturalmente numa ideologia eurocêntrica, focando como interesses o enriquecimento e a conquista religiosa. Vale salientar que nem mesmo tal imposição impediu definitivamente que costumes e valores culturais indígenas e posteriormente africanos fossem trasposto e garantidos durante gerações, chegando até a pós-modernidade.
O sistema escravocrata implantado implacavelmente no Estado foi semelhante ao modelo disseminada em toda a colônia, porém com suas particularidades intrínsecas.
Origem do nome Maranhão
Não há só uma hipótese para a origem do nome do Estado do Maranhão. A teoria mais aceita é que Maranhão era o nome dado ao Rio Amazonas pelos nativos da região antes dos navegantes europeus chegarem, ou mesmo que tenha algum relação com o Rio Marañon no Peru. Mas há outros possíveis significados como: grande mentira ou mexerico. Outra hipótese seria pelo fato do Estado conter um emaranhado de rios. Por isso, pode ainda significa mar grande ou mar que corre.
Início da colonização no território maranhense
Em 1534, D. João III divide a Colônia Portuguesa no Brasil em Capitanias Hereditárias, sendo o Maranhão parte de quatro delas (Maranhão 1ª parte, Maranhão 2ª parte, Ceará e Rio Grande), para melhor ocupar e proteger o território colonial.
Porém, a ocupação no Maranhão aconteceu a partir da invasão francesa à Ilha de Upaon-Açu (Ilha de São Luís) em 1612, liderada por Daniel de La Touche, Senhor de La Ravardière, que tentava fundar colônias no Brasil. Os franceses chegaram a fundar um núcleo de povoamento chamado França Equinocial e um forte chamado de "Fort Saint Louis". Portanto, essa foi origem e início da cidade de São Luís.
Entretanto, os portugueses expulsaram os franceses em 1615 na batalha de Guaxenduba, sob o comando de Jerônimo de Albuquerque Maranhão, e passam a ter controle das terras maranhenses. Nesse episódio, foi importante a participação dos povos indígenas que somaram forças a ambos os lados, estendendo o tamanho da batalha.
Invasão holandesa
Depois de terem invadido a maior parte do território do Nordeste da Colônia portuguesa na América, os holandeses dominaram as terras da Capitania do Maranhão em 1641. Eles desembarcaram em São Luís e tinham como objetivo a expansão da indústria açucareira visando a implantação de novas áreas de produção de cana-de-açúcar.
Depois, expandiram-se para o interior da Capitania. Os colonos, insatisfeitos com a presença holandesa, começaram movimentos para a expulsão dos mesmos do Maranhão em 1642, sendo o primeiro movimento contra a dominação holandesa. As lutas só acabaram em 1644 e nelas se destaca Antônio Texeira de Melo como um dos líderes do movimento.
Revolta de Beckma
Em 1682, a Coroa Portuguesa decidiu criar a Companhia de Comércio do Maranhão. Tal Companhia tinha o dever de enviar ao Estado do Maranhão um navio por mês carregado de escravos e alimentos como azeite e vinho. Assim, Portugal pretendia aumentar o comércio na região.
Mas, a estratégia não dera certo, visto que a Companhia abusava nos preços e, por vezes, atrasava os navios. Isso somado às péssimas condições de vida na época fez com que entre os colonos se criasse um clima de hostilidade contra a Metrópole.
Liderada por Manuel Beckman (Bequimão) em 1684, começa uma revolta nativista conhecida como a Revolta de Beckman. Os revoltosos queriam o fim da Companhia de Comércio do Maranhão e a expulsão dos jesuítas, pois a Companhia de Jesus era contra a escravidão indígena (principal fonte de mão-de-obra na época).
Os revoltosos chegaram a aprisionar o Capitão-mor de São Luís e outras autoridades, e expulsaram os jesuítas, mas foram derrotados pelas forças da Coroa. Manuel Beckman foi condenado à morte e enforcado em praça pública, apesar de seu irmão, Tomás Beckman ter ido à Portugal para falar diretamente ao rei o motivo da revolta.
O movimento conseguiu fazer com que a Companhia fosse extinta, mas não foram atendidos sobre a expulsão dos jesuítas.
Marquês de Pombal e o Maranhão
Adotando o modelo de déspota esclarecido na época, D. José I nomeou a Primeiro-Ministro, em Portugal, o Marquês de Pombal que teve importante papel na História do Maranhão.
Pombal fundou o Estado do Grão-Pará e Maranhão com capital em Belém e subdivido em quatro capitanias (Maranhão, Piauí, São José do Rio Negro e Grão-Pará). Além disso, expulsou os jesuítas e criou a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão cuja atuação desenvolveu a economia maranhense.
Na fase pombalina, a Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão incentivou as migrações de portugueses, principalmente açorianos, e aumentou o tráfico de escravos e produtos para a região. Tal fato, fez com que o cultivo de arroz e algodão ganhasse força e logo colocou o Maranhão dentro do sistema agroexportador.
Essa prosperidade econômica se refletiu no perfil urbano de São Luís, pois nessa época foi construída a maior parte dos casarões que compõem o Centro Histórico de São Luís que hoje é Patrimônio Mundial da Humanidade. A região enriqueceu e ficou fortemente ligada à Metrópole, quase inexistindo relação comercial com o sul do país.
Mas, os projetos do Marquês de Pombal foram abalados quando subiu ao trono D. Maria I que extinguiu a Companhia de comércio e muitas outras ações do Marquês na Colônia.
Adesão do Maranhão à independência do Brasil
No Maranhão, as elites agrícolas e pecuaristas eram muito ligadas à Metrópole e a exemplo de outras províncias se recusaram a aderir à Independência do Brasil. À época, o Maranhão era uma das mais ricas regiões do Brasil.
O intenso tráfego marítimo com a Metrópole, justificado pela maior proximidade com a Europa, tornava mais fácil o acesso e as trocas comerciais com Lisboa do que com o sul do país. Os filhos dos comerciantes ricos estudavam em Portugal.
A região era conservadora e avessa aos comandos vindos do Rio de Janeiro. Foi da Junta Governativa da Capital, São Luís, que partiu a iniciativa da repressão ao movimento da Independência no Piauí.
A Junta controlava ainda a região produtora do vale do rio Itapecuru, onde o principal centro era a vila de Caxias. Esta foi à localidade escolhida pelo Major Fidié para se fortificar após a derrota definitiva na Batalha do Jenipapo, no Piauí, imposta pelas tropas brasileiras, compostas por contingentes oriundos do Piauí e do Ceará.
Fidié teve que capitular, sendo preso em Caxias e depois mandado para Portugal, onde foi recebido como herói. São Luís, a bela capital e tradicional reduto português, foi finalmente bloqueada por mar e ameaçada de bombardeio pela esquadra do Lord Cochrane, sendo obrigada a aderir à Independência em 28 de julho de 1823.
Os anos imperiais que seguiram foram vingativos com o Maranhão; o abandono e descaso com a rica região levaram a um empobrecimento secular, ainda hoje não rompido em função também das consequências imposta pela Metrópole portuguesa.
A Balaiada
Foi o mais importante movimento popular do Maranhão e ocorreu entre Período Regencial e o primeiro ano do império de D. Pedro II. Os revoltosos exigiam melhores condições sociais e foram influenciados pelas lutas partidárias da aristocracia rural.
Como líderes tiveram: Manuel Francisco dos Anjos Ferreira (O Balaio), Raimundo Gomes e Cosme dos Santos. Eles ainda conseguiram tomar a cidade de Caxias e estender o movimento até o Piauí, porém, as tropas do imperador lideradas por Luís Alves de Lima e Silva (que recebeu o título de Duque de Caxias) reprimiram o movimento. Os envolvidos foram anistiados e Manuel dos Anjos Ferreira e Negro Cosme foram mortos.
O estado do Maranhão recebeu duas importantes correntes migratórias ao longo do século XX. Nos primeiros anos chegaram sírio-libaneses, que se dedicaram inicialmente ao comércio modesto, passando em seguida a empreendimentos maiores e a dar origem a profissionais liberais e políticos.
Entre as décadas de 40 e 60 chegou grande número de imigrantes originários do estado do Ceará, em busca de melhores condições de vida na agricultura. Dedicaram-se principalmente à lavoura de arroz, o que fez crescer consideravelmente a produção do estado.
São Luís - A capital do estado do Maranhão foi fundada em 1612, na ilha de São Luiz, às margens da baía de São Marcos, do oceano Atlântico e do estreito dos Mosquitos.
Indígenas - A população indígena do estado do Maranhão soma 12.238 habitantes, distribuídos entre 16 grupos que vivem numa área total de 1.908.89 hectares. Desse total, aproximadamente 86% (1.644.089 hectares), que representam 14 áreas, já se encontram demarcadas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão do Governo Federal(9). Cerca de 14%, que correspondem a 264.000 hectares e incluem apenas duas áreas (Awá e Krikati) ainda estão em processo de demarcação, embora sejam ocupadas pelos índios.
O grupo mais numeroso é o dos Araribóia, com população de 3.292 habitantes, que ocupa área de 413.288 hectares, já demarcada pela FUNAI, no município de Amarante. O Cana Brava Guajajara é o segundo grupo em tamanho da população, com 3.143 índios que ocupam 137.329 hectares nos municípios de Barra do Corda e Grajaú.
João Francisco Lisboa analisa em seu livro "Apontamentos para a História do Maranhão", de l852, os acontecimentos gerados pelo descontentamento criado pela introdução do estanco - comércio de produtos monopolizados pelo Estado - que tiveram sua culminância na Revolução do Maranhão de l684, episódio conhecido como a "Revolução de Beckman".
O povo é o elemento passivo, apesar de agente da desordem, porque é nele que agem as forças coletivas, não pode controlar as ações, ao contrário, é levado por elas, tornando-se, então, a força incontrolável que irrompe em excessos e conduz à desordem.
O sujeito da ação dos eventos narrados é Manuel Beckman, personagem que agrega os valores capazes de lhe conferir a condição de um herói. Mesmo assim, com o desenrolar dos acontecimentos, ele também passará a ser afetado pelas forras coletivas.
Mas, vejamos como Lisboa se vale do uso do termo "povo", contraposto ao de "moradores", até o momento em que os acontecimentos revolucionários explodem na cidade.
Os "moradores" são a elite da cidade enquanto a ordem é mantida e estão claramente separados do “povo”. Contudo, a partir do momento em que a opressão a que esses proprietários estão sendo submetidos a partir da introdução do estanco se explicita, esta elite transforma-se, na narrativa de Lisboa, em "Povo".
É explícita a identificação do "povo" com uma situação de opressão. Este é o momento em que se alternam a designação de "moradores" e "Povo". Entretanto, este "Povo", constituído pela elite, jamais será igual ao "povo", formado pela plebe.
Existe, porém, um termo intermediário nesta transição de "moradores" para "Povo" "cidadão", que surge para designar os moradores uma vez que assumam parte ativa em uma situação política; termo que só permanece enquanto não surge nenhum tipo de ação identificada com uma subversão da ordem. Isso implica dizer que permanecem cidadãos enquanto se mantêm no âmbito da reflexão, passando a tornar-se “Povo" se partem para a ação propriamente dita.
Esta ideia nos permite uma aproximação com as observações de Michelet no livro "O Povo", de l846. Interessante porque, ambos se consideram liberais e poucos anos separam as duas obras. Podemos usar, portanto, algumas chaves presentes em Michelet para interpretar Lisboa.
Em ambos os escritores está presente a ideia de que o povo é arrastado por grandes forças coletivas; bem como, a distinção que fazem entre "homens de reflexão", binômio de onde emergirá afigura do herói, ou para usar a denominação de Michelet, do gênio individual.
Apesar de o povo ser "arrastado pelas grandes forças coletivas", o que Michelet considera mais interessante no povo é a sua capacidade de ação; por esta razão, segundo ele, o maior erro que as pessoas do povo podem cometer é abandonar os "seus instintos" e lançar-se em busca das "abstrações e generalidades", que, inversamente, caracterizam os homens das altas sociedades, que os fazem serem, "homens de reflexão".
O intuito de Michelet era resgatar a imagem do povo, porém, na verdade, esse objetivo ia além: ele estava descrevendo uma fórmula para salvação do povo, função esta, que caberia ao gênio individual, o herói:
"O povo, em sua concepção mais elevada, dificilmente se encontra no povo. Queira eu o observe aqui ou ali, não se trata dele, mas de uma classe, uma forma parcial do povo, alterada e efêmera. Em sua verdade, em seu poder maior, ele só existe no homem de gênio; neste é que mora a grande alma... Essa voz é a voz do povo; mudo pôr si, ele fala pela boca deste homem..., e nele, finalmente, todos são glorificados e salvos".
O limite a que chegou Michelet ao abordar o tema "povo" é revelado pela inversão que faz: ao invés de colocar o homem de gênio no povo, coloca o povo dentro do homem gênio.
No caso de Lisboa, o herói, em nenhuma de suas componentes, saí do seio do povo, partilha de elementos comuns com o povo ou o carrega em sua alma, como em Michelet; ao contrário, o herói é uma personagem que atravessa a fronteira entre a elite e o povo e ', é por causa dos valores que, por um lado, o destacam singularmente; e por outro, carregar consigo de berço, que o habilitam a desempenhar este papel.
O heroísmo que Beckman representa não está em momento algum a serviço do povo para resgatá-lo de sua posição. Seu heroísmo existe para reagir à injustiça e à opressão que, aliás, são sofridos mais diretamente pelos proprietários submetidos à tirania do estanco e à proibição do livre comércio. A designação de Povo que Lisboa emprega serve para nomeara elite que está submetida à opressão. O povo identificado como a maior gama da população é indicado mais propriamente pelas designações de turba, multidão ou plebe.
A política da Corte, "para não contrariar a prática seguida no Estado em ocasiões semelhantes" era fazer as coisas de modo a que, pelo menos, em aparência se dessem pela aceitação voluntária da parte do povo.
O que importava era que não se subvertesse a rotina naquele lugar. A novidade maléfica é a revolução que se anuncia através de uma série de pequenos incidentes que acabam por degenera-se até causar a deflagração da desordem no sistema. É exatamente isto que diz Francisco Lisboa "... em regra as crises, natureza nunca deixam de trazer consigo todos os elementos indispensáveis o seu completo desenvolvimento". Esta mentalidade é a marca da permanência e da continuidade mantidas pela Corte como garantia da manutenção de seu poder.
As calamidades naturais entram no rol das causas gerais que se acumulam para agir de uma só vez, culminando no processo incontrolável que escapa ao controle humano e leva à revolução. O "povo" é o elemento impulsionado pelas "causas gerais", não possui ação própria, ele é mostrado como uma massa passiva pronta a ser conduzida.
É um acidente o estopim que detona a crise - o elemento próprio da situação de desordem, contido naturalmente no processo de degeneração. Este acidente é a aparição da voz que levará atrás de si a multidão: a figura do revolucionário. A multidão sozinha, como já acentuada, jamais poderia levar este processo adiante.
Para desempenhar este papel, Beckman sofre um rito de passagem através de um rebaixamento à condição do homem comum, o que se dá quando ele "ata o seu destino ao destino do povo" atravessando a distância que separa a elite privilegiada do homem do povo, passando a participar “da miséria e opressão comuns" sendo, portanto, "dominado e arrastado pelas mesmas ideias e paixões, que eram de todos". Isso faz com que Beckman não possa ter mais total controle da situação.
Entretanto, esta situação não é absoluta já que Beckman nunca completa esta transição. Ele fica em uma situação intermediária entre o mundo da elite e o mundo do povo, entre o seu status nobre de "homem de reflexão" e o rebaixamento a "homem de ação". É esta localização especial que o habilita a conduzir as multidões e, sob este aspecto, ele representa o protótipo do herói.
A voz de Beckman, o líder, ao conduzir as novas ordens se confunde com a ação da multidão. Sua voz torna-se a própria ação. Mas é também, ao mesmo tempo, pela posição intermediária que ocupa o elemento de moderação capaz de controlar a selvageria do povo, que a esta altura, já aparece representado totalmente por uma multidão que não possui mais faces identificáveis, é somente "povo", e o "povo" entregue a seu estado completo, torna-se "plebe", e junto com ela, estará sempre presente a perspectiva de violência, permanecendo, entretanto, a separação entre os líderes e o "povo", antepostos como nobres diante da plebe furiosa.
Segundo o relato, fica claro que Beckman não teria tido o intento de instalar uma nova ordem, mas, pelo contrário, restaurar a antiga. A manutenção da ordem mínima surge como um ponto de honra a ser preservado pelos "melhores cidadãos", coisa muito diferente do que poderia fazer a "plebe".
Com o passar do tempo, começa a aparecer toda a inconstância do "povo", característica da falta das virtudes identificadas com a firmeza de propósitos e com a tenacidade própria somente do herói. Gradualmente, a ordem começa a ser restabelecida, e com a normalidade, a rotina.
É o retorno do mundo da permanência suplantado o instante fugaz da novidade revolucionária. Está demonstrada a instabilidade do povo, que parece saudar o fim da revolução com o mesmo entusiasmo com que abraçara a sua causa. A moral da história parece querer dizer que o "povo", enfim, ama a normalidade:
O início dos infortúnios de Beckman dera-se com o rompimento com o acordo tácito que mantinha as aparências "da aceitação voluntária do povo".
A revolução de Lisboa não é alteração radical das bases em que se apoiam a sociedade brasileira, a glória que destaca da revolta do Maranhão não é o fato de haver sido uma revolução, mas o heroísmo de Beckman.
Sobre revoluções, Lisboa não as apoia, sua atração pelo tema restringe-se às discussões entre homens ilustrados, entre os "homens de reflexão", lugar onde ele mesmo se situa, e de onde pode encontrar a legitimidade e a justiça de uma revolução, que seria um movimento, como já se disse voltado, unicamente, contra as injustiças e a falta de liberdade política e econômica para aqueles que identificam como cidadãos. Vai nesse sentido o liberalismo de Lisboa.
“Poderia parecer absurdo, que Lisboa acabe reverenciando a revolução pela sua moderação, “respeito à vida”, à “fazenda” e aos direitos dos adversários”. O respeito à "fazenda", serve para diferenciar estas de outras revoltas menos nobres descritas como "simples fatos materiais", enquanto que, por outro lado, uma revolução feita de ideias poderia, facilmente, permanecer restrita aos salões da República das Letras, em perfeito isolamento dos ditames da tão temida necessidade.
É ao intelecto que deve estar ligada a revolução e não à necessidade. Esta é a divisão entre "homens e reflexão" e "homens de ação", de que nos fala Michelet, e que parece fornecer os limites do mundo de Francisco Lisboa.
Quando a maioria dos brasileiros ouve falar em quilombos, pensa automaticamente em Palmares, local imaginado como uma cidade africana no meio da floresta, governada por um grande e misterioso rei guerreiro, Zumbi.
Quero colocar em evidência um outro elemento da mitologia da escravidão: a submissão do africano ao cativeiro, em contraste com a altivez do índio, que preferiria a morte ao trabalho forçado nos engenhos. Não era incomum, na minha época de criança (década de 1970), que a crença na docilidade do negro, escravo capaz de amar o seu senhor, constasse dos manuais escolares e fosse ratificada pelo discurso do professor. Hoje, sem dúvida, o contexto das salas de aula é bem diverso, mas o antigo lugar comum sobrevive. Não é raro vermos gente jovem, educada após o último período ditatorial, se referir à subalternidade dos afro-brasileiros como um dado natural e consagrado através da História.
Nesta perspectiva "tradicional", a existência de Palmares se torna um episódio anômalo, praticamente um fato isolado. Eu afirmaria sem receio que o cidadão médio desconhece que a resistência quilombola foi um movimento amplo, multissecular e difundido por praticamente todas as partes da América Portuguesa e, posteriormente, do Império do Brasil. Mas, existe em oposição a outra falácia vulgar, a ideia de que "o Brasil não tem História", numerosas referências aos quilombos em documentos do Estado, ao alcance de qualquer pessoa com acesso à Internet.
Consultando os relatórios maranhenses do século XIX, percebemos que as fugas de escravos e sua organização em quilombos, por vezes em aliança com outros elementos desfavorecidos da sociedade local, foram vistas como um problema de primeira grandeza pelas autoridades daquela província ao longo do período monárquico. Presidente do Maranhão em 1839, Manuel Felizardo de Sousa e Melo fez menção aos quilombos da região de Codó, combatidos pelos proprietários rurais; no mesmo texto, se destaca uma referência ao início da rebelião regencial que ficou conhecida como Balaiada. Um dos líderes balaios, Raimundo Gomes, é citado de maneira especialmente preconceituosa.
Vale salientar que o Maranhão é o segundo estado com a maior população de afrodescendentes do país. A cultura é rica e abundante em tradições como a música, a dança a religião, a culinária e os costumes.
“No século XVIII o Maranhão foi um dos locais do Brasil que mais recebeu escravos, sendo o quarto maior a receber escravos em todo o território brasileiro, escravos negros africanos”. Os escravos africanos que chegaram ao porto de São Luís ficaram mais conhecidos como “negros mina”, porque eram embarcados, em sua maioria, na Costa da Mina, hoje Costa do Marfim, além de Angola e Moçambique.
Quando chegavam ao Brasil, os negros eram batizados seguindo os costumes católicos; porém, mesmo diante das imposições jamais abandonaram suas próprias tradições e crenças. ”Eram batizados na África, antes de embarcarem ou quando chegavam. Os senhores eram obrigados a batizá-los e iniciar imediatamente uma profissão de fé nas novas terras. Os rituais compreendiam desde a reza, a recitação, o rosário, as ladainhas”, diz Maria Raimunda de Araújo, historiadora.
“Ladainha é fé... E com isso foi se seguindo a tradição, os anos passaram, os devotos aumentaram a uma proporção... Mas é fé, é Deus em primeiro lugar, e o nosso mensageiro, famoso Benedito, nosso negro de coração que leva o recado e a gente consegue tudo”, afirma Maria das Graças Jansen.
A historiadora completa a história sobre a festa do São Benedito. “Uma festa de São Benedito tem a ladainha, no geral rezada em latim por pessoas da comunidade. Depois tem o tambor de criola. Inclusive na hora que dança o tambor, faz-se necessário carregar a imagem de São Benedito. A devoção a São Benedito.”
“Só se tem notícia do tambor de criola, com este nome, com essas características no Maranhão. Ele foi recentemente registrado como patrimônio material do Brasil e se mantém. Acontece em São Luís e vários interiores do Maranhão, prioritariamente, sobretudo, naqueles que tem comunidades negras”, explica Joila Moraes, historiadora.
“As negras e os negros faziam sua festa e exaltavam sua alegria”, comenta Clemente José Filho, professor.
O Pai de Santo, José Almeida Amorim, explica o que é o tambor de mina. “No tambor de mina, o sincretismo de São Benedito é "averequete", vodum. Ele foi quem abriu o tambor de mina para os encantados, para os caboclos, para esse povo de mata. Então, ele é como se fosse um padrinho do tambor de mina”.
O Maranhão é considerado uma sociedade escravista tardia. Foi no final do século XVIII que se desenvolveu mais fortemente uma escravidão agrícola na região, ainda que desde o século anterior escravos africanos tivessem sido utilizados como mão-de-obra essencial na tentativa de torná-lo centro produtivo rentável. (Assunção, 1996: 434).
Naquela época, formou-se o Estado do Grão-Pará e Maranhão, cuja administração era feita diretamente por Portugal. Foi fundada também a Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão. O objetivo da companhia era fortalecer o comércio mercantilista com Portugal. A atuação da companhia acarretou muitas mudanças na sociedade maranhense, bem como a proibição da escravidão indígena e a implantação de carga tributária exagerada, criada para satisfazer os desejos econômicos da coroa portuguesa.
A partir da fundação da Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, houve um crescimento significativo de escravos africanos na região. Até 1755, calcula-se que existiam aproximadamente 3 mil escravos no Maranhão. No período de existência da companhia, entre 1755 e 1777, este número saltou para 12 mil (Santos, 1983: 14-15).
A compra de escravos era financiada pela Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, em troca do monopólio do comércio que ocorria no porto de São Luís. Os colonos passaram a utilizar-se de braços vindos de Cacheu, Bissau e Angola. Em suas lavouras de arroz e algodão, também cultivavam outras culturas auxiliares como complementação alimentar.
A entrada crescente de escravos africanos no Maranhão culminou com a chegada de 41 mil pessoas entre 1812 e 1820. Como resultado, às vésperas da Independência, 55% dos habitantes do Maranhão eram escravos. Tal número correspondia a mais alta porcentagem de população escrava do Império. Ela concentrava-se nas fazendas situadas na baixada ocidental e nos vales dos Rios Itapecuru, Mearim e Pindaré.
Esses locais tinham uma grande quantidade de matas, rios e riachos. Tal aspecto foi decisivo no momento de ocupação dos territórios pelos colonizadores: os espaços foram utilizados de forma bastante rarefeita. Essa conformação criou condições para o surgimento de quilombos em cabeceiras de rios e locais mais distantes nas florestas. Tratava-se de lugares que escapavam ao controle do Estado, permitindo que os quilombos multiplicassem e suas populações se sentissem relativamente seguras.
Sabe-se da existência de quilombos no Maranhão desde o início do século XVIII. Porém, eles tornaram-se “um fenômeno endêmico da sociedade escravista” (Assunção, 1996: 436) com a chegada da grande quantidade de escravos nos últimos anos daquele século. Mesmo que não seja possível precisar a quantidade de quilombos que existiu desde esse período até a Abolição, afirma-se que no Maranhão havia poucas fazendas escravistas sem quilombos à sua volta, isso implica dizer que “os focos de inicialização de quilombos eram disseminados sem controle pela coroa portuguesa em todo o estado”.
Era comum, principalmente na primeira metade do século XIX, que pequenos grupos de escravos fugidos se escondessem nas matas que cercavam as propriedades. Essas fugas ocorriam principalmente em locais que reuniam um bom número de fazendas e escravos, como Alcântara, Viana, Vitória do Mearim, Itapecuru-Mirim, Rosário e Manga do Iguará. Percebe-se superficialmente a correlação, mesmo que obscura entre comunidades quilombolas e as fazendas da região.
Diante da multiplicação dos quilombos, as autoridades maranhenses organizaram vários tipos de forças policiais para enfrentá-los. Governo e fazendeiros contavam também com os serviços dos capitães-do-mato para combater os quilombos. Porém, diante de um território imenso, o número de soldados e de capitães-do-mato sempre foi insuficiente para desarticular de forma definitiva os quilombos no Maranhão.
Além disso, ao contrário do que é comum afirmar, os quilombolas não viviam isolados de outros setores da sociedade da época. Eles relacionavam-se permanentemente com os escravos que ainda se encontravam nas propriedades. Muitos mocambeiros chegavam a trabalhar para fazendeiros. Era comum que estes últimos acobertassem os mocambeiros, se houvesse uma batida policial. Por meio dessa articulação, os quilombolas obtinham bens materiais e informações sobre a movimentação das tropas policiais na região.
Em vários quilombos, os ex-escravos dedicavam-se à agricultura e a extração de minérios. Eles trocavam ouro e parte da produção agrícola (fumo e algodão) por produtos industrializados, como armas. Foi o caso dos habitantes dos quilombos da região de Turiaçu, que se dedicavam à caça, pesca, extrativismo, criação de gado, agricultura de subsistência, a produção de fumo e algodão, além da arte da garimpagem.
Os quilombos em Turiaçu criaram uma rede de comércio de ouro com mercadores, fazendeiros e mesmo negociantes de vilas do litoral, como Santa Helena, Curutapera e Turiaçu. Tal conjuntura garantiu aos quilombolas a complacência de pessoas livres da elite maranhense, que estavam interessadas em ter relações pacíficas com os quilombolas que lhes vendiam ouro. Esse tipo de situação dificultava a repressão dos quilombos do Turiaçu por parte das autoridades provinciais. Tais quilombos existiam ao menos desde o começo do século XVIII. Mesmo tendo havido inúmeras tentativas de aniquilamento pelas forças policias, eles atravessaram o século seguinte.
Os quilombos do Maranhão também se comunicavam entre si. Desse modo, eles trocavam notícias e planejavam ações comuns. A Insurreição de Escravos em Viana foi uma dessas ações que causavam grande medo à sociedade escravista.
As iniciativas dos quilombolas, algumas vezes, combinaram-se ainda com as atividades políticas das camadas populares maranhenses. Tal foi o caso da Balaiada, o maior conflito ocorrido no Maranhão. Tais situações revelam que os escravos negros maranhenses reagiram de diferentes formas à situação degradante que a escravidão estabeleceu. Enfrentando a sociedade escravista, os quilombolas escreveram importantes capítulos da história brasileira.
Em 1841, o doutor João Antônio de Miranda deixou um relato muito semelhante, pelo qual se percebe a atuação dos quilombolas de Codó no sentido de reforçar suas fileiras com mais fugitivos. Outros impropérios são dirigidos a Raimundo Gomes, bem como a Cosme, líder negro que comandava um verdadeiro exército de escravos.
Jerônimo Martiniano Figueira de Melo, que governava o Maranhão em 1843, assinalou novos combates entre os quilombolas e as forças do Estado, que lutavam também contra índios não integrados à sociedade imperial.
Honório Pereira de Azeredo Coutinho, presidente em 1850, demonstrou o quanto às fugas eram corriqueiras: no prazo de três anos, nada menos do que 569 escravos haviam sido recapturados somente na capital, São Luís. Coutinho lamentava que os mecanismos de repressão não funcionassem de maneira mais eficaz.
Em 1852, Manoel de Sousa Pinto de Magalhães atestou a existência de outros quilombos, nas comarcas de Viana e Guimarães.
Em seu relatório de 1853, Eduardo Olímpio Machado identificava o quilombo instalado no distrito de Turiaçu como o mais ameaçador para a ordem senhorial, constatando a existência de outros na área do Alto Mearim. Machado temia que uma insurreição da escravatura se estendesse às comarcas de Alcântara e Viana. A Guarda Nacional da província combatia os quilombolas, aparentemente conseguindo arrasar alguns de seus abrigos.
Em 1854, o mesmo Eduardo Machado noticiou a repressão aos quilombos do Alto Mearim e a destruição dos existentes em Turiaçu, fato que documentos posteriores parecem desmentir.
Ainda na presidência em 1855, Machado se referiu à continuidade dos conflitos no Alto Mearim, bem como à mobilização de tropas destinadas à contenção de índios classificados como "menos ferozes".
Em 1856, Antônio Cândido da Cruz Machado relatou que na própria ilha de São Luís, no local denominado Guapiranga, escravos fugitivos logravam se esconder, ao que tudo indica com o apoio de habitantes livres.
Benvenuto Augusto de Magalhães Taques, presidente em 1857, que definia a escravidão como "aberração moral", dissertou também sobre a resistência dos índios do Maranhão "à civilização e ao cristianismo". No mesmo texto, vemos uma nova referência à cooperação, no campo econômico, entre pessoas livres e cativos fugidos, além da continuidade das ações dos quilombolas de Turiaçu.
Francisco Xavier Paes Barreto, em 1858, comprovava a importância da questão quilombola, ao estimar que, somente na área de Turiaçu, havia quinhentos fugitivos.
Ocupando a presidência em 1862, o conselheiro Antônio Manoel de Campos Mello apontou que seu antecessor, sem sucesso, tentara eliminar os quilombos na região do rio Gurupi e, mais uma vez, nas áreas de floresta próximas a Viana. Porém, em um dos ataques, as tropas tinham destruído casas e demais benfeitorias no quilombo intitulado São Luís.
Em 1863, o desembargador Miguel Ayres do Nascimento se inquietava com a movimentação dos quilombolas em Turiaçu, no Alto Mearim e em Viana. Segundo o administrador, as fugas de escravos das fazendas vizinhas dos quilombos era um evento quase diário.
Para o vice-presidente José da Silva Maia, redator do relatório provincial publicado em 1869, os índios insubmissos do Grajaú, assim como os quilombolas de Turiaçu, contavam com a ajuda de desertores. Para combater a todos, planejava-se a fundação de colônias.
No ano seguinte, Silva Maia voltou a citar os quilombolas de Viana, cujas expedições se estendiam ao município de São Bento. No qual, a exemplo de outros, nota-se que os dirigentes ressaltam a índole supostamente benévola da população governada, contrastando com a ferocidade dos índios "selvagens" e dos negros que se rebelavam contra a escravidão.
Em 1877, o presidente Francisco Maria Correia de Sá e Benevides verificava, além da continuidade do processo de agrupamento dos fugitivos em quilombos, a antiguidade de várias destas povoações. Benevides mostrou satisfação por um ataque desferido contra os quilombolas do município de Pinheiro, onde 113 pessoas teriam sido capturadas. Entretanto, a tropa enviada contra um dos quilombos de Turiaçu falhara na tentativa de aprisionar seus habitantes.
Esta longa trajetória de resistência, infelizmente, por falta de conhecimentos e interesse de muitos, permanece esquecida. Fato que acaba sendo muito conveniente aos políticos ruralistas e outros conservadores. Colocando-se na posição de vítimas, eles difundem fartamente a noção de que "basta qualquer negro se apossar de um lote e dizer que ali existiu um quilombo para que o governo desaproprie a terra". Fato este que vem contrariar a própria carta magna do país.
A Constituição Federal do Brasil, de 1988, assegura aos remanescentes das comunidades dos quilombos o direito à propriedade das terras ocupadas (Artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Desde 1995 até abril de 2014, foram titulados no País cento e cinquenta e quatro territórios quilombolas, ou seja, foram emitidos cento e cinquenta e quatro títulos para uma ou mais comunidades, o que inclui a demarcação da área e a posse coletiva da terra (INCRA, 2014). De 2004 até outubro de 2013, duas mil e sete comunidades remanescentes de quilombo foram certificadas, ou, em outras palavras, foram reconhecidas pelo poder público enquanto tal (FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, 2013).
Depois do Pará, o Maranhão é o estado do Brasil com o maior número de terras quilombolas tituladas: trinta e cinco no total. Todavia, no município de Alcântara, localizado a 22 quilômetros da capital, São Luís, comunidades quilombolas travam há algumas décadas uma luta pelo reconhecimento e pela posse de sua terra.
O município de Alcântara, fundado em 1648, teve sua economia fundamentada na cultura de algodão, no século XVIII; e na da cana-de-açúcar, no século XIX, com base no trabalho escravo. Com a falência desse modelo econômico, em dois momentos distintos, os fazendeiros abandonaram suas propriedades, onde escravos e alforriados se estabeleceram num modelo de campesinato de agricultura de subsistência, caracterizado pelo uso comum das terras. Posteriormente, passaram a produzir farinha e arroz, chegando a fornecer para toda a região. Vivendo próximos ao mar e a rios, em terras férteis, praticavam a agricultura, a pesca, a caça e o extrativismo.
Aquela população negra que se instalou nas antigas fazendas manteve relações de parentesco, compadrio e vizinhança sob uma série de normas construídas ao longo das décadas, sem interferência oficial. Contudo, nos anos 1980, trezentas e doze famílias, de trinta e um povoados foram obrigadas a sair das terras, ocupadas desde o século XVIII, para a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), da Aeronáutica, uma vez que a localidade é considerada excelente para lançamentos espaciais. As famílias foram assentadas em sete agrovilas, administradas pela Aeronáutica, em um território onde não podem realizar novas construções sem autorização, o que implica em ir morar na periferia de São Luís e de Alcântara quando a família se amplia. Além disso, enfrentam problemas para plantar, pois os terrenos são pequenos em comparação à realidade anterior, e o solo é ruim para a agricultura. Por estarem longe do mar, encontram dificuldades para a prática da pesca. Um projeto de expansão do CLA pode atingir outros cerca de um mil e quinhentos quilombolas que permanecem em suas terras, mas terão que ser deslocados (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO).
Em 1999, foi fundado o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), representante das comunidades quilombolas na luta por seus direitos e pela reversão dos danos causados pela implantação do CLA. A denúncia de violação de direitos sofrida pelos quilombolas fez com que o Ministério Público Federal (MPF) iniciasse inquéritos e impetrasse ações civis públicas para resguardar os direitos garantidos constitucionalmente e apurar o ocorrido, inclusive questionando os estudos realizados antes da implantação do CLA. A pedido do Ministério Público Federal (MPF), um laudo antropológico foi elaborado demonstrando que aquele é um território étnico e que a remoção compulsória acarretou em prejuízos para o grupo. (ALMEIDA, 2006).
Em conjunto com diversas outras organizações — Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão, o Centro de Cultura Negra do Maranhão, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, a Justiça Global, o Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos — os quilombolas de Alcântara vêm exigindo seus direitos. Em 2001, o caso foi levado a instâncias internacionais: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A tensão e a insegurança fazem parte do cotidiano dos quilombolas de Alcântara que travam batalhas diárias para permanecerem em seu território.
De acordo com Almeida (2006), na área pretendida pelo CLA, a qual se configura como metade da superfície do município de Alcântara, há noventa povoados e oito mil, trezentos e noventa e oito habitantes. Os quilombolas exigem a liberação de acesso a suas roças e o livre trânsito nos espaços tradicionalmente ocupados, de modo a manter o estilo de vida construído por gerações. Demandam, principalmente, que o Governo Federal supra o débito histórico com a população negra efetivando a titulação das terras remanescente de quilombo em consonância com o que estabelece a Constituição Federal.
Enfim, os quilombolas de Alcântara trabalham para manter o que os antepassados conquistaram — a posse da terra e do direito de viver uma forma de vida própria, autônoma, caracterizada por intensas relações de troca de produtos agrícolas, extrativos e artesanais; por relações de parentesco entre membros de diferentes comunidades, pelas tradições religiosas e festivas e pelo uso comum dos recursos naturais. (PROJETO..., 2007, p.5).
Diversidade cultural é fruto da trajetória de resistência que começou com a história dos escravos. Essa diversidade cultural também é fruto de uma trajetória de resistência, que começou no século XVIII, com as histórias dos escravos e dos quilombos. O que chama a atenção é que a educação já era vista como forma de cidadania.
O orgulho dos afrodescendentes do Maranhão está relacionado às manifestações e as lutas contra o racismo. Uma dessas lutas ficou bastante conhecida entre os maranhenses: a balaiada, que teve como líder Negro Cosme.
Esta é a história de uma luta fratricida que sangrou a província do Maranhão. A história que está sendo descrita neste documento, foi ouvida, vivida... “Um pedaço aqui, lida um trecho ali, outro acolá”.
“A balaiada é uma revolta dos pobres, uma revolta do interior, no interior do Maranhão”, conta a historiadora Maria Raimunda de Araújo.
Juntamos alguns cacos para compor o quebra-cabeça que foi essa guerra ocorrida nos primeiros anos do século XVIII, movimento entre grupos rivais que envolveram, mas que se caracterizou, devido o alto contingente de pessoas de classe baixa, homens do campo. “Desde o início os negros tiveram uma participação direta ou indireta. Cosme liderou mais de três mil negros em armas e deu um novo fôlego ao movimento”, explica Iramir Alves de Araújo, escritor e pesquisador.
A historiadora fala sobre a preocupação de Cosme com o conhecimento. “Ele cria um quilombo no tempo da guerra, com pouco tempo. Mas é o próprio governo que diz que lá tinha uma escola de ler e escrever. Ora um homem desses preocupado ao mesmo tempo de tá se defendendo, ele não esqueceu que a educação era uma forma de estar livre também. Não só livre do cativeiro, mas essa liberdade da mente, que se adquire com o conhecimento.”
Essa parte da história do Maranhão está contada no livro a balaiada de Iramir Alves de Araújo que foi adotado como material didático em escolas de São Luís. “Foi promulgada a Lei 10638, dentro do próprio sistema educacional brasileiro que torna obrigatório o ensino da História e da Cultura Afro-brasileira. No estado do Maranhão, é necessário que professores e alunos, tenham um acesso a esse legado cultural de tamanha importância na identidade do povo maranhense. Conhecer a história do Maranhão”, explica o professor, Carlos Eduardo Penha Everton.
Em 10 de abril de 1842 Cosme Bento das Chagas - tutor da liberdade - foi executado. Não como rebelde ou aliado dos balaios, mas como exemplo aos escravos para que não ousassem sonhar com liberdade.
“Ele cometeu o pecado capital, o de saber ler, o da cultura, o de saber discernir, o de ser informado e exatamente por tentar promover e criar algum núcleo, ou núcleos, dos quais, aqueles que quisessem poderiam melhorar o seu conhecimento de mundo” foi brutalmente condenado à morte e executado por enforcamento.
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