PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR – CONCEITO – LC 491/2010 (BREVE HISTÓRICO) – TEORIA DEFENDIDA POR  OSKAR VON BULOW (TEORIA DA RELAÇÃO PROCESSUAL) – JURISPRUDÊNCIA (Felipe Genovez)

Por Felipe Genovez | 26/02/2018 | Direito

No Estado de Santa Catarina, sob os auspícios e lavra da Procuradoria-Geral do Estado, foi editada a LC 491/10 que dispôs sobre procedimentos administrativos no âmbito de todos os órgãos do Poder Executivo. A partir da vigência dessa importante legislação a instauração de processo disciplinar somente poderá ser determinada pela Procuradoria-Geral do Estado e, ainda,  ser determinada por outros órgãos, autoridades (ver art. 82, inciso XVIII, letra “g”, da Lei orgânica do Ministério Público – LC 197/2000) ou em razão de denúncia formulada por cidadãos, entretanto, desde que calcado em prova capaz de firmar uma opinião favorável por parte da direção da Polícia Civil a quem compete de ofício determinar a instauração desse procedimento administrativo disciplinar.

Dentro de uma interpretação literal e legalista, o Delegado-Geral deverá determinar (e somente isso) a instauração de processo disciplinar, por meio  de portaria. Essa “determinação” tem sido sempre desvirtuada, pois não significa que caberá também ao Chefe de Polícia deflagrar a instauração do processo disciplinar, isto é, essa competência passou a ser da PGE, restando ao Corregedor da Polícia Civil e ao Delegado-Geral exercerem o papel de mero despachantes. 

O fato é que a referida legislação (LC 491/10) foi aprovada quando o Delegado Maurício Eskudlark (Deputado Estadual) respondia pela direção da Polícia Civil, enquanto que à frente da Pasta da Segurança Pública estava o Deputado Federal Ronaldo Benedet. Nessa época o Delegado Renato Hendges estava na Presidência da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de Santa Catarina – Adepol. A legislação foi aprovada em silêncio e sob o olhar complacente de todos, tudo bem conduzido pela PGE, sem qualquer consulta, sem qualquer resistência, sem qualquer questionamento. O resultado foi que vários dispositivos do Estatuto da Polícia Civil foram revogados (Lei n. 6.843/86 - EPC/SC). Sobre o assunto naquela época nada foi comentado, nada foi escrito...  Certamente que a coisa seria bem diferente se Delegados resolvessem se arvorar a apresentar projeto de lei revogando diversos artigos da Lei Orgânica da Procuradoria-Geral do Estado? Ou quem sabe do Ministério Público? Parece que funcionou o “efeito na casa da Mãe Joana...”.  

O processo disciplinar, ensina Hely Lopes Meirelles, "deve ser instaurado por portaria da autoridade competente na qual se descrevem os atos ou fatos a se apurar e se indiquem as infrações a serem punidas, designando-se, desde logo, a comissão processante, a ser presidida pelo integrante mais categorizado" (in O Processo Administrativo, RT 483, pág. 17).

O art. 145, da Lei n. 8.112/90 RJUSPC/União), dispõe que:  "da sindicância poderá resultar: I - arquivamento do processo; II - aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30 (trinta) dias; III - instauração de processo disciplinar".  Nesse caso, pôs-se fim a polêmica originada no texto constitucional que teria vetado a aplicação de penas disciplinares com base em sindicância, haja vista este procedimento não atender os princípios da ampla defesa e do contraditório.

A sindicância se constitui em  instrumento célere, hábil e capaz de infundir penas disciplinares, devendo atender obrigatoriamente ao princípio do "devido processo legal". Quanto a esse entendimento, verificar o acórdão citado pelo autor neste comentário, onde o Desembargador Nelson Schaefer Martins, com base na sentença prolatada pelo Dr. Volnei Ivo Carlin, entendeu que em caso de suspensão ser imprescindível o processo disciplinar (Apel. Civil n. 88.074491-5, Capital).

É preciso se esclarecer que a aplicabilidade da pena disciplinar deverá estar jungida à portaria que determinar a instauração do processo, em se tratando de enquadramento. O Delegado-Geral da Polícia Civil ao enquadrar a conduta do indiciado na correspondente infração estatutária, cuja pena disciplinar cominada seja superior a 30 (trinta) dias, estará vinculando a decisão dos autos ao Titular da Pasta (art. 222,  do EPC/SC). Caso os membros da comissão entendam em proceder a novo enquadramento, na fase do relatório de instrução (LC 491/10), deverão deliberar sobre a  suspenção do andamento do feito, remetendo os autos ao Delegado-Geral, a fim de que o mesmo decida sobre  a proposta, se for o caso, requisitando diligências e motivando sua decisão, aplicando-se subsidiariamente o disposto no art. 384, do CPP. Em caso de infração mais grave, dependendo do estágio em que estiver o processo, deverá ser imediatamente aberto prazo para a defesa se manifestar e requerer todas as provas admitidas em direito. É facultado ao Delegado-Geral da Polícia Civil constituir nova comissão disciplinar, caso não concorde com o enquadramento apresentado pela comissão, neste caso, não se admitindo recalcitrância, ficando a comissão adstrita ao enquadramento previsto pelo Delegado-Geral.

Uma das questões importantes que gostaríamos de destacar é a que diz respeito à teoria da relação jurídica em se tratando de Processo Disciplinar. Sem aprofundar muito no assunto, gostaríamos de chamar a atenção inicialmente para a teoria dominante aplicável à relação processual no processo-crime. Lá, segundo a corrente mais predominante, ficou defendida e aceita a teoria apregoada por Oskar Von Bülow que tem apoio de jurista do calibre de José Frederico Marques, Moacyr Amaral dos Santos, Gabriel Rezende Filho, Romeu Pires de Campos Barros, Geraldo Batista de Siqueira, Sérgio Demoro Hamilton, José Roberto Baraúna, Hélio Tornaghi, Alfredo Buzaid, Galeno Lacerda, Ada Pellegrine Grinöver, dentre outros. Segundo essa teoria advoga-se que a relação existe triangularmente, isto é, tanto no sentido horizontal, como no ascendente e descendente, ou seja, entre o autor e o juiz, entre este e o réu (e vice-versa) e entre autor e réu reciprocamente. Neste caso, como fica então a relação jurídico-processual em se tratando de procedimento disciplinar? Segundo nosso entendimento,  os membros da comissão processante estão no lugar do autor (órgão acusador), o acusado em seu devido lugar e, por último, a autoridade que julgadora (Governador do Estado, Secretário de Estado da Segurança Pública ou Delegado-Geral, dependendo do caso) no lugar do juiz. As três esferas mantém entre si estreitas relações. A comissão preside o feito, o qual é instaurado pelo Delegado-Geral. No entanto, os membros da comissão deverão sempre que necessário, submeter suas decisões interlocutórias ao referendamento do Delegado-Geral. O mesmo se verifica com o indiciado, o qual poderá recorrer das decisões junto às autoridades superiores ou, ainda, recorrer ou requerer reconsideração junto à própria comissão, como também à autoridade julgadora. A Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Santa Catarina (LC 197/2000) estabelece que: “Será facultado ao Procurador-Geral  de Justiça intervir em todos os atos do processo administrativo ordinário, podendo inclusive dirigir reperguntas a testemunhas ao denunciante ou ao indiciado, se este vier a ser ouvido pessoalmente” (art. 259, par. 5o).

JURISPRUDÊNCIA:

PROCESSO DISCIPLINAR – PRINCÍPIOS:

“Administrativo. Princípio do informalismo. Processo. I – O processo administrativo goza do princípio do informalismo, o qual dispensa procedimento rígido ou rito específico. II – Não configura nulidade, ab initio, o fato da instauração iniciar-se através de resolução em substituição a portaria. Exigir a lavratura de portaria para abertura do inquérito administrativo é formalismo desnecessário. III – Depoimentos coligidos pela comissão processante constituem prova suficiente para embasar a penalidade. IV – Recurso improvido” (STJ, Rec. Ordinário em MS n. 2.670, data da dec.: 29.08.94).

STF - Falta Residual:

"O exercício do poder disciplinar pelo Estado não está sujeito ao prévio encerramento da 'persecutio criminis' que venha a ser instaurada perante ao órgão competente do Poder Judiciário. As sanções penais e administrativas, qualificando-se como respostas autônomas do Estado à prática de atos ilícitos cometidos pelos servidores públicos, não se condicionam reciprocamente, tornando-se possível, em conseqüência, a imposição da punição disciplinar independentemente de prévia decisão da instância penal. Com a só exceção do reconhecimento judicial da inexistência de autoria da inocorrência material do prévio fato, ou, ainda, da configuração das causas de justificação penal, as decisões do Poder Judiciário não condicionam o pronunciamento decisório da Administração Público. Precedentes" (MS 21.0290-0, Rel. Min. Celso Mello, DJ 183, de 23.09.94, p. 25.326)

Requisitos - Portaria:

"A portaria instauradora do procedimento disciplinar administrativo, deve necessariamente, ao lado da qualificação do indiciado, especificar os atos, fatos a apurar, bem como os dispositivos legais tidos por infringidos, a fim de que possa aquele exercitar o seu direito de ampla defesa. Se da referida peça não constar uma sumária exposição do ilícito atribuído ao funcionário, tal omissão, torna imprestável o inquérito disciplinar" (Apel. Civil 16.154, da Capital). No mesmo sentido: ... (JC 32/80)" (Apel. Civ. Em MS 4.708, de Blumenau, Rel. Des. Xavier Vieira, DJ 8.996, de 26.05.94, p. 8), (JC 32, p. 180, Rel. Des. Napoleão Amarante).

“(...) No processo administrativo disciplinar, instaurado mediante Portaria da autoridade competente, uma vez nomeada a Comissão Processante, a esta incumbe dar-lhe efetividade, discriminando a qualificação do servidor contra o qual é ele instaurado, identificando a espécie infracional que lhe é acometida, descrevendo sumariamente os fatos objetivados de apuração, com a indicação dos dispositivos legais tidos como violados (...)” (Apel. Civil em MS n. 98.001647-9, Gaspar, Rel. Des. Trindade dos Santos, DJ 10.045, de 01.09.98, p. 18).

Portaria - falta de capitulação ao fato:

"Funcionário Público. Mandado de Segurança. Demissão resultante de inquérito administrativo. Alegação improcedente de cerceamento de defesa, de falta de capitulação específica  da acusação. Ordem denegada. O amplo direito de defesa de que fala a CF (art. 153, §15) e o ESP/SC (art. 250), fica assegurado com a comunicação circunstanciada ao indiciado da instalação dos trabalhos da comissão, com data e local do início da inquirição das testemunhas, interrogatório, além da citação específica para apresentar defesa no prazo legal. A remessa ao indiciado de xerox completo de todas as peças do inquérito para facilitar e propiciar a defesa supre falta de elaboração de resumo sucinto, mencionado no art. 254 do aludido Estatuto (...)" (JC 35, p. 82, Rel. Des. Ernani Ribeiro). (Obs.: o referido acórdão é anterior a Carta Política/88, conseguintemente, a meu ver, não pode prosperar, merecendo ser dissentido, eis que atualmente viola princípios da ampla defesa e do contraditório.

“Muito embora, no direito administrativo, se possa falar em atipicidade, não havendo necessidade de tipificação estrita que subsuma rigorosamente a conduta à norma, mesmo assim, a capitulação do ilícito administrativo não pode ser tão aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa" ( apud Celso Ribeiro Bastos, in Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2º vol., págs. 265/8), tanto que recomenda a doutrina que, surgindo fato novo no correr da sindicância, deve ser aditada a Portaria que a instaurou. O princípio da ampla defesa, consagrado constitucionalmente, tem importância ímpar no ordenamento jurídico brasileiro, posto que visa assegurar a igualdade das partes no transcorrer do processo." ( ACv nº 97.015815-7, de Timbó, Rel. Des. Vanderlei Romer. DJ nº 10.441, de 19.04.2000, p. 17).

“Configura-se ilegalidade a aplicação de pena de demissão a servidor público concursado e estável, após sindicância cuja portaria não configurou esta hipótese, não se lhe propiciando deste moto a contraditório e a ampla defesa (...)” (Ap. Civil em MS n. 96.001254-0, Seara, Rel. Des. Nelson Schaefer Martins, DJ n. 9.760, de 7.7.97, p. 12)”.

“Recurso de Decisão n. 254/98, de Joinville, em que é recorrente Cleusa Gonçalves, Oficial de Justiça e recorrido o Dr. Juiz de Direito. Relator o Ex. Des. João Martins. Advogado Dr. Norberto Angelo Garbim. Decisão: por votação unânime, anular o processo a partir da portaria, inclusive. Custas ex lege. Ementa: Processo Administrativo Disciplinar – Portaria  que não citou o dispositivo Legal que a indiciada teria infringido. Inépcia. Processo anulado ab initio”  (DJ n. 10.062, de 25.09.98, pág. 2).

Portaria nula – demissão de servidor:

“(...) Constatando-se que a portaria instauradora do procedimento administrativo que ensejou a demissão do servidor, deixa de especificar os atos e fatos a apurar e de indicar os dispositivos legais tidos por desrespeitados pelo impetrante, com inobservância de expressa disposição da lei orgânica do município, tem-se como caracterizado a nulidade, pois a circunstância apontada implicou em cerceamento de defesa” (Apel. Civil em MS 96.009199-8, Chapecó, Rel. Des. Nelson Schaefer Martins, DJ 9.811, de 16.9.97, p. 8)

“(...) não se há de considerar nula a portaria deflagradora de processo disciplinar, se a defesa do acusado ocorrer de forma ampla, tanto mais se o apelante não aponta objetivamente, como forma de caracterizar o alegado cerceamento, qualquer forma de prejuízo” (Apel. Civil 888.070407-6, da Capital, Rel. Des. Eládio Torret Rocha, DJ 9.828, de 9.10.97, p. 10).

Momento da instauração do processo disciplinar:

“(...) Outrossim, nos termos do Estatuto dos Servidores Públicos Municipais de Gaspar (Lei Municipal n. 1.305, art. 182, I), o processo disciplinar administrativo somente se considera instaurado  com a publicação do ato constitutivo da Comissão Processante, publicação essa que pode ocorrer a qualquer tempo, desde que precedentemente à prática de qualquer ato próprio do processo disciplinar. Conquanto, de regra, a Comissão Processante deva ser designada na própria Portaria que dá início ao processo  disciplinar, inexiste qualquer contra-indicativo legal quanto à sua designação em Portaria apartada, pois, designar-se desde logo a Comissão, não equivale a dizer deva a mesma, imperiosamente , ser designada no próprio corpo do ato administrativo deflagratório do procedimento disciplinar (...)”(Apel. Civil em MS n. 98.001647-9, Gaspar, Rel. Des. Trindade dos Santos, DJ 10.045, de 01.09.98, p. 18).

"(...) É nula portaria que determina a instauração de processo administrativo contra funcionário público se a mesma não contém a exposição do fato ou fatos que constituem infrações disciplinares, com todas as circunstâncias, à semelhança do que se faz na ação penal com a denúncia, que é a peça básica da persecutio criminal". (ACMS nº 98013017-3, de Capinzal. Rel. Des. Anselmo Cerello. DJ nº 10.434, de 10.04.2000, p. 19). 

"(...)  A autoridade administrativa processante e competente, deve, ao baixar portaria descrever precisamente os atos ou fatos que devem ser apurados, através de procedimento disciplinar".  ( ACMS nº 99.011748-0, de Coronel Freitas, rel: Des. Anselmo Cerello. DJ nº 10.464, de 25.05.2000, p. 19).

Impedimento – suspeição:

“(...) As hipóteses de suspeição previstas no Código de Processo Penal são aplicáveis aos juízes (art. 254 do CPP), peritos, intérpretes e aos serventuários e funcionários  da justiça (art. 274 c/c 105 do CPP), mas não há previsão legal para que seja levantada contra delegados ou policiais civis e militares, mormente  quando o artigo 107 do mesmo diploma legal expressamente prevê que ‘não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito’ (...)” (Apel. Crim. 98.013078-6, Canoinhas, Rel. Des. Álvaro Wandelli, DJ n. 10.131, de 13.01.99, pág. 7).