PRINCÍPIO DA IGUALDADE E AS AÇÕES AFIRMATIVAS

Por Janselmo Melo Braga | 15/05/2016 | Direito

Janselmo Melo Braga[1]


RESUMO: Este trabalho tem por escopo refletir a (in)constitucionalidade da lei de cotas, que garante número mínimo de vagas para indivíduos da etnia negra, tomando por fundamento o princípio constitucional da igualdade e levando em consideração dados do CENSO e IBGE dos últimos anos no que cinge índices populacionais e o histórico étnico-cultural do povo brasileiro.

Palavras-chave: Direito; Princípio da Igualdade, Constitucionalidade; Cotas raciais; Racismo.


1 INTRODUÇÃO

A história da formação do povo brasileiro é a história da dominação étnica que desencadeou um processo de aculturamento tanto para os colonizados quanto para os colonizadores, todavia aqueles permaneceram subjulgados aos valores eurocêntricos durante todo processo histórico. Dessa forma, a construção da nação brasileira tão heterogênea que conhecemos hoje, é o resultado de uma troca cultural desproporcional, que ao longo de muito tempo foi mascarada pela mítica ideia da Democracia Racial, quando na verdade o que observávamos a todo instante era um verdadeiro “Racismo Democrático” [2].

Reportando-nos diretamente aos negros, etnia que no passado, com uma “canetada”, saiu da condição de mão de obra escrava para camada social que ficou a ver navios, eles continuaram a serem herdeiros dos resquícios do preconceito social e do descaso estatal mesmo há 125 anos desde a abolição da escravatura. Preconceito e descaso que, por simetria, também é observado quanto aos indígenas.

Assim, tomando como marco histórico o advento da Constituição Cidadã de 1988, apelidada nesses termos porque “ela inaugurou um novo arcabouço jurídico-constitucional que ampliou as liberdades civis e assegurando direitos e garantias fundamentais para o cidadão brasileiro, indispensáveis ao pleno exercício da cidadania[3], trouxe também como algumas de suas cláusulas pétreas a igualdade e a justiça, ápice da democracia brasileira, momento em que o Estado começou a tirar a sua venda para as questões raciais do país que estavam disfarçadas (mas nem tanto). É a partir daí que se verificam os primeiros passos tímidos no sentido da efetivação de uma sociedade mais igualitária.

Mais recentemente, como um dos instrumentos voltados à ampliação da participação social de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, tais quais os afrodescendentes e os indígenas, foi estabelecida nas Instituições de Ensino Superior Públicas a política de ações afirmativas – alvo da reflexão do trabalho.

Embora, em um primeiro momento, a instauração das ações afirmativas tenha causado um desconforto político em relação ao sistema universal de ingresso nas Universidades, a política de cotas pode ser encarada como um acerto em longo prazo na solução de diversos problemas sociais derivados da questão racial, entre eles a distribuição de renda.

2 DA LEI DE COTAS E DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE.

2.1 Estatisticamente falando

De acordo com o CENSO 2010, foi demonstrado que a população brasileira deixou de ser majoritariamente branca. Em termos de contagem, 91 milhões de brasileiros se identificaram como brancos (47,7%), enquanto que cerca de 82 milhões que se declararam pardos (43,1%) e 15 milhões, pretos (7,6%). Os amarelos chegaram a quase 2 milhões (1,1%) e os indígenas a 817 mil (0,4%). Ou seja, pela primeira, vez menos de 50% da população não foi catalogada como branca. Lembrando que branco, pardo, amarelo e preto são termos da própria tecnologia do IBGE[4], onde se entende por pardo qualquer individuo que se identifique como mestiço da etnia negra com qualquer uma dessas outras, e amarelo os de identificação asiática.

Verificou-se também que o contingente pardo é mais numeroso nas regiões Norte e Nordeste, enquanto os negros estão fixados em maior número nos estados do Nordeste, destacando-se a Bahia, em que 17,1% (2,4 milhões) dos indivíduos da unidade federativa se autodeclararam negros.

O CENSO também revelou que entre os brasileiros um desnível considerável no que cinge o acesso a níveis de ensino, divido por indicadores raciais. No nível superior, encontravam-se 31,1% dos brancos nesse grupo etário, enquanto apenas 12,8% dos pretos e 13,4% dos pardos, fator que é refletido no mercado de trabalho onde a parcela de pele clara continuou recebendo remunerações mais e se qualificando mais que as demais parcelas raciais.

2.2 Constitucionalmente falando

A Constituição Federal promulgada em 1988 traz em seu Artigo 5º, Caput o Principio da Igualdade, versando que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. No artigo 3º também verificamos no inciso IV o tratamento igualitário entre os indivíduos que compõem o Estado: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Em seguida, a mesma Constituição reforça no artigo 19 inciso III: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federa e aos Municípios: III – Criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

Em um primeiro momento pergunta-se: Então, como entender uma Lei – Nº 12.711/2012 – que visa estabelecer uma quota para o ingresso de estudantes nas Universidades Públicas tomando como critério, sugestivamente, distintivo como o fator étnico?

Explicando constitucionalmente, não há uma distinção entre os brasileiros sugerida pela Lei de Cotas que possa ferir os artigos anteriormente transcritos; o que se verifica é uma tentativa trazer os membros das diferentes etnias para o mesmo patamar de modo que o direito, almejando a justiça por meio da isonomia, possa alcançá-los em condições similares. É o que tanto as doutrinas como a jurisprudência definem como discriminação positiva

A discriminação positiva se diferencia da discriminação negativa, uma vez que aquela é justificada no auxilio ao próximo, dando-lhes tratamentos desiguais para que possam-lhes ser garantidas oportunidades iguais, pensando no bem comum, respeitando o Principio da Igualdade comportando uma postura igualitária. Enquanto que, a discriminação negativa está encoberta pelo discurso do ódio e da segregação.

Nesse sentido dispõe o Art. 205 c/c Art. 206, I, VI e Art. 208, V:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um.

Assim o Princípio da Igualdade se justifica pela promoção igualitária dos bens jurídicos, devendo o Estado atuar de modo ajustado às dificuldades da sociedade, e a educação, como uma desses bens, deve ser gerada de modo a evitar a construção de uma sociedade classista que favorece a marginalização de camadas da sociedade, principalmente no que tange a questão racial. Por consequência, o dever estatal se vale da distinção positiva, adotando uma postura seletora das suas ações, voltando-as para cada grupo social, visando fornecer as mesmas oportunidades a todos de acordo com as “desigualdades dentro das desigualdades”[5].

Logo, superada a ideia de antinomia entre o teor Constitucional e o da Lei de Cotas no âmbito do Principio da Igualdade, poderia ser questionado: diante do aumento da população negra verificado pelo CENSO, seria incoerente adotar uma lei que, pensando em proteger o direito de uma parcela da população desfavorecida, acaba por privilegiar a mesma camada que agora é numericamente superior?

Não há incoerência. Os próprios dados do CENSO e do IBGE justificam. Embora a população negra e parda tenha aumentado – e o mesmo não tenha acontecido com a indígena – o interior das instituições de Ensino Superior ainda não reflete a distribuição dessa população nos estados brasileiros. Quando o legislador da Lei 12.711/2012 previu o artigo 3º, provavelmente ele teve a preocupação de observar a relação entre a proporcionalidade numérica entre os acadêmicos negros das Universidades Públicas e os indivíduos da mesma etnia do próprio estado.

Não distante da situação, tomemos a região Nordeste como referência. Mesmo os índices demonstrando o crescente número de indivíduos que se identificaram como pretos na região citada, o somatório da porcentagem de pardos e negros no interior das Instituições Públicas de Ensino Superior não foi maior que a porcentagem dos declarados brancos; e mais, os cursos mais disputados nas Universidades Púbicas são preenchidos por sujeitos de pele clara provenientes de instituições privadas do Ensino Médio. Dessa forma observa-se mais uma desproporcionalidade: aqueles que podem pagar por um Ensino Médio isento da precariedade da educação governamental são aqueles que têm acesso ao Ensino Superior gratuito, enquanto o Ensino Superior particular é cada vez mais procurado por aqueles que tem dificuldade arcar com os custos, pois, na prática, não é observada uma igualdade de oportunidades entre o aluno do Ensino Médio público em relação ao ensino particular, cada vez mais sofisticado, criando-se, nas palavras do Ministro Gilmar Mendes[6] uma ‘dificuldade quase lotérica’ de acesso à universidade por intermédio do vestibular”.


 3 CONCLUSÃO

Nesse seguimento, conclui-se que, mais que um mero instrumento de tentativa de dirimir os erros sociais cometidos no passado em ralação à escravidão, à perseguição étnica e ao descaso, a Lei de Cotas deve ser encarada como um veículo capaz promover a justiça social desde momento, visto que a questão racial que tange a dificuldade de acesso à educação no Brasil tem suas raízes fincadas nas disparidades econômicas. Não obstante a lei traga no seu bojo o amparo àqueles que não podem pagar pelo Ensino privado, a solução encontra-se na reforma do Sistema Educacional Brasileiro, que não sendo de qualidade, procura sanar seus déficits da maneira menos adequada.

Observa-se a temporalidade do sistema de cotas; uma que alcançado o intento do mesmo, o sistema far-se-á desnecessário posteriormente. É o que diz o Ministro Celso de Mello[7]: As políticas públicas têm na prática das ações afirmativas um poderoso e legítimo instrumento impregnado de eficácia necessariamente temporária, já que elas não deverão ter a finalidade de manter direitos desiguais depois de alcançados os objetivos”.

Dessa forma, feito tais ressalvas e seguindo no sentido do Princípio da Igualdade disposto no artigo 5º da Constituição Federal subsidiado pela interpretação de outros artigos do mesmo Texto Constitucional, reitera-se o entendimento do STF preconizando a igualdade material e formal, ao julgar a ADPF 186 impetrada pelo DEM, declarando a constitucionalidade da Lei de Cotas Nº 12.711/2012.  Anotando que, nas palavras da Ministra Rosa Maria Weber[8], cabe ao Estado adentrar no mundo das relações sociais e corrigir a desigualdade concreta para que a igualdade formal volte a ter o seu papel benéfico”.

Por fim, a Ministra Cármen Lúcia[9] nos deixa como reflexão: “As ações afirmativas não são a melhor opção, mas são uma etapa. O melhor seria que todos fossem iguais e livres”.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988. 2011.

BRASIL. Lei Nº12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12711.htm>. Acesso em 20 mai. 2012.

DUARTE, Alessandra. Censo 2010: população do Brasil deixa de ser predominantemente branca. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/politica/censo-2010-populacao-do-brasil-deixa-de-ser-predominantemente-branca-2789597#ixzz2URspgIHn>.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2010. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em 20 mai. 2012.

SCHULZE, Clenio Jair. Igualdade, discriminação positiva, cotas e ADPF 186. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21671/igualdade-discriminacao-positiva-cotas-e-adpf-186>. Acesso em 20 mai. 2012.

SEMER, Marcelo. STF julga cotas raciais e define sentido da igualdade. Disponível em: < http://terramagazine.terra.com.br/blogdomarcelosemer/blog/2012/04/25/stf-julga-cotas-raciais-e-define-sentido-da-igualdade/>. Acesso em 19 de mai. 2012.



[1] Acadêmico do Curso de Bacharelado em Direito pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA.

[2] Termo do autor para se referir ao racismo implícito; aquele que ainda impede que muitos indivíduos de etnias dominadas no passado ascendam socialmente e concede privilégios à camada dominante.

[3] CARDOSO, Marcos. 2008. Jornalista, autor de "Sempre aos Domingos: Antologia de textos jornalísticos".

[4]  Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

[5] BRITTO.  Carlos A. A. de F. Min. STF 2003. Sobre ADPF 186 ajuizada pelo DEM relativa a cotas raciais.

[6]  MENDES. Gilmar Ferreira. Min. STF 2002. Sobre ADPF 186 ajuizada pelo DEM relativa a cotas raciais.

[7]  FILHO. José C. de Mello. Min. STF 1989. Sobre ADPF 186 ajuizada pelo DEM relativa a cotas raciais.

[8]  ROSA, Rosa Maria W.C. Min. STF 2011.  Sobre ADPF 186 ajuizada pelo DEM relativa a cotas raciais.

[9]  ROCHA, Cármen Lúcia A. Min. STF 2006. sobre ADPF 186 ajuizada pelo DEM relativa a cotas raciais.