POST MORTEM E A POSSÍVEL CONSIDERAÇÃO DO MATERIAL REPRODUTOR COMO HERANÇA...
Por Josafá Maia de Oliveira | 20/10/2016 | DireitoFILHOS HAVIDOS POR FECUNDAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM E A POSSÍVEL CONSIDERAÇÃO DO MATERIAL REPRODUTOR COMO HERANÇA: OS EFEITOS E CONSEQUÊNCIAS DA APLICAÇÃO HIPOTÉTICA DA SUCESSÃO GENÉTICA SOB AS PERSPECTIVAS FAMILIAR E SUCESSÓRIA DO ATUAL DIREITO CIVIL BRASILEIRO[1]
Josafá Maia de Oliveira e Thalyta Maria Lopes[2]
Anna Valéria de Miranda Araújo Cabral Marques[3]
RESUMO
O presente trabalho busca traçar, hipoteticamente, a viabilidade de aplicação da figura do testamento biológico - observado em Israel -, visando a sucessão de material reprodutor para inseminação post mortem no ordenamento jurídico brasileiro, em análise conjunta com o tratamento da possibilidade da figura do testamento vital; elencando, para tanto, as possíveis consequências e direitos do filho post mortem conforme as perspectivas familiar e sucessória do Direito Civil brasileiro atual.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos observaram-se situações intrigantes no Estado de Israel, onde se estabeleceram precedentes inéditos no mundo acerca de temáticas familiar e sucessória: veio à tona a utilização de sêmen e óvulos como possíveis objetos de sucessão. Com esses precedentes, abriram-se outros processos com o mesmo teor em Israel, passando a ser concedido pelas cortes o acesso a esses gametas armazenados pelos falecidos para a reprodução de filhos deste.
Analisando a figura e o teor desse testamento biológico, fomenta-se a idealização de uma nova possibilidade nos ordenamentos jurídicos das sociedades, em principal, no âmbito jurídico brasileiro, preocupando-se em delinear novos modelos de constituição de família; o direito ao próprio material genético, direito à procriação, e as consequências no que toca o direito de sucessões. Em suma, idealiza-se perante essa novidade possíveis efeitos e as consequências da aplicação hipotética da sucessão genética sob as perspectivas familiar e sucessória do atual Direito Civil brasileiro; levando, assim, a análise de possíveis mudanças nos paradigmas e análises procedimentais no que tange a novidades observadas na construção social, uma vez que o direito, como ciência social, não pode se engessar ao longo do tempo, e deve sofrer mudanças reais e positivas. A hermenêutica civil, nesse caso, propõe um novo olhar sobre a disponibilização de material genético, sobre perpetuação do indivíduo e ciência da sucessão familiar, dando a relevância do estudo, que analisa os fatos empíricos, sociais, e a relação formal subjetiva e objetiva da possível inclusão dessa nova figura no ordenamento jurídico brasileiro
1 A POSSIBILIDADE DA HERANÇA DE MATERIAL REPRODUTOR POR MEIO DO TESTAMENTO BIOLÓGICO EM ISRAEL: PRECEDENTES PARA UM EXPERIMENTO INÉDITO NO MUNDO
A justiça de Israel acatou uma ideia pioneira no mundo, que foi a possibilidade de concepção e nascimento de crianças a partir de material genético deixados como “herança” aos pais do de cujus, por meio de um testamento biológico escrito e instruído por este. A partir de precedentes, foram observados outros casos em que pessoas armazenavam o seu material genético e discriminavam a sua sucessão como último ato de vontade expresso seguido das coordenadas para o uso desse material; assim, ao falecer, os gametas armazenados seriam sucedidos para as pessoas que foram indicadas pelo testador do documento, a fim de que utilizassem para originar um filho do de cujus com uma pessoa selecionada por quem herdou o material genético (FLINT, 2014).
Conforme traz Bartolo (2014):
O Testamento Biológico é um documento escrito, formalizado perante testemunhas onde o testador declara a sua vontade de ser pai ou mãe após a morte, com um detalhe único, os pais do testador é que escolherão quem será o pai ou a mãe de seus netos, ou seja, a concepção e o nascimento de bebês a partir de óvulos ou de sêmen deixados como “herança” por pais já mortos
E assim foi o caso de Nissim Ayash, que “tem um filho de 2 anos, que veio ao mundo vários anos depois que sua mãe morreu de câncer. Ela havia deixado óvulos fertilizados congelados para criar um filho do casal”; cumprindo, assim, o testamento de sua esposa (FLINT, 2014).
Para a advogada israelense Irit Rosenblum, idealizadora do testamento biológico, trata-se se uma ideia revolucionária e futurista, que permite a realização do direito de dar continuidade à vida, à sua linhagem genealógica, e tal vontade deve ser respeitada mesmo após a morte do autor do testamento biológico. Além disso, a advogada assevera que esta seria uma opção melhor que a adoção, pois a criança já nasceria nos laços familiares de sua própria linhagem sanguínea, saberá quem foi seu pai (ou mãe), quem são seus avós e demais parentes, resguardaria o vínculo genealógico original (FLINT, 2014).
Contudo, em um dos casos de julgamento para a execução de testamento biológico, a Promotoria de Israel alegou que teria um aspecto negativo caso fosse realizado a sucessão do material genético para os avós para gerar um neto, que seria o fato de que a criança já nasceria órfã. Porém, mesmo assim a decisão do juiz foi em favor da execução do testamento biológico (FLINT, 2014).
Dessa forma, a referida prática enseja um vislumbramento perante a realidade jurídica de outros países, visto que as formas de constituição familiar evoluem no transpor do tempo, e tal ideia nascida em Israel pode algum dia vir a fazer parte da realidade de muitas sociedades inclusive a brasileira. Nesse viés dá-se a tentativa hipotética de alocação do testamento biológico - conforme observado em Israel – na atual conjuntura sucessória brasileira, conforme exposto a seguir.
2 UM ESTUDO COMPARADO: ADOÇÃO DA SUCESSÃO GENÉTICA NO BRASIL SOB O VIÉS SUCESSÓRIO, COM FINS DE INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM E O TESTAMENTO VITAL
Direito de Família e Direito Sucessório configuram ramos do ordenamento civil que necessariamente se entrelaçam. A capacidade humana de se relacionar sob diferenciadas vertentes alimenta as abordagens sobre os direitos familiares, em diversos aspectos, seja em formação familiar; alimentos; afetividade, que se modificam em detrimento dos anseios sociais, e da capacidade humana de reinventar relações, e que, por consequência, acabam por ensejar uma necessidade quanto à dinamicidade das sucessões, no ordenamento jurídico, na medida em que acompanhe todas as mudanças ocorridas ao longo dos anos e evoluções da sociedade no que toca a mudança de titularidade patrimonial.
A adoção da Sucessão genética sob o viés sucessório com fins de inseminação artificial perpassa, necessariamente, pelo necessário acompanhamento do direito sucessório, no que relaciona o tipo de patrimônio, a forma de “herança”, dentre outros aspectos. O direito Sucessório, respaldado constitucionalmente no artigo 5º da Constituição Federal, elenca a herança como direito fundamental, irradiando assim, tal disposição para o ordenamento, fazendo de tal instrumento direito de todo e qualquer cidadão conforme as circunstancias legais previstas no Código Civil. De succedere, expressão latina que significa “colocar-se sob algo, ou alguma coisa”, a sucessão é uma espécie de continuação de determinado vínculo; transmissão de relações com o advento da morte, numa espécie de manutenção de relações jurídicas, em especial, da família.
No que tange a fundamentalidade de suceder algo, Carlos Roberto Gonçalves (2014, p.25) afirma
O fundamento da transmissão sucessória, ou seja, a razão pela qual se defere a uma pessoa indicada por lei, ou pela vontade manifestada em vida pelo autor da sucessão, o acervo de direitos e obrigações que até então a este pertencia, apresenta variações conforme o momento histórico que se esteja a analisar e a corrente de pensamento a que se queira filtrar
É nesse esteio, que se aborda a adoção da sucessão genética. Em tempos que a ciência permite a reprodução assistida, isto é, o planejamento familiar a curto ou longo prazo em que se permite a viabilização de filhos para as famílias daqueles indivíduos que possuem dificuldades, sejam circunstanciais, sejam físicas para procriação, a conservação no eixo familiar de um bem classificado como direito, patrimônio genético, é tema novo para o direito sucessório, não havendo, portanto, regulamentação legal sobre o chamado testamento biológico quanto a utilização de material genético post mortem, que inova o direito sucessório em ordenamentos jurídicos fora do Brasil.
O testamento biológico com tal finalidade surge para conservação desse patrimônio genético, classificado como direito, dentro de um grupo específico: entidade familiar. Ocorre que no Brasil, não há diploma legal que delineie juridicamente tal vontade específica. No ordenamento pátrio há regulamentação para a inseminação artificial post mortem, que na conceituação de Regina Tavares é "é aquela técnica de inseminação utilizada com sêmen ou embrião conservado, por meio de técnicas especiais, após a morte do doador do sêmen”. Isto é, o material genético do marido ou companheiro é criopreservado, possibilitando ao outro parceiro, seja cônjuge ou companheira, que mesmo após o falecimento do doador, se utilize o material genético de pré-moriente. A técnica de fecundação levanta diversos embates doutrinários e jurisprudenciais, em que parte da doutrina ratifica a inseminação artificial post mortem baseada na paternidade presumida art. 1597, III, do Código Civil, isto é, tendo pleno trato legal e legitimidade, uma vez que as implicações quanto ao direito sucessório e de família restariam feitas, uma vez que o diploma legal presume como concebidos na constância do casamento os filhos advindos de técnicas de reprodução assistida homóloga, isto é, com material genética do próprio casal ou heteróloga com autorização, coadunando ao princípio constitucional da igualdade entre os filhos, fazendo com que a criança esteja apta para a sucessão a partir de subsídios fornecidos pela doutrina e jurisprudência, uma vez que não há presunção expressa legalmente para a sucessão.
Já outra parte da doutrina alega a falta de validade constitucional da referida prática, por afrontar aos princípios da paternidade responsável, dignidade humana, melhor interesse da criança e igualdade dos filhos. (LEVY, 2013). A doutrina alega que não se pode falar em direitos sucessórios, pois a herança se dá em consequência da morte, art. 1784, CC, e participando dela apenas “pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”
Deste modo, na hipótese de inseminação artificial homóloga póstuma, tendo o filho sido concebido após a abertura da sucessão, estaria afastado do recebimento da herança deixada por seu pai, muito embora seja considerado filho do pré-morto, conforme garante o art. 1.597, inciso III do Código Civil. Esse pensamento prima pela proteção dos herdeiros que já se encontravam nascidos ou concebidos quando da morte do autor da herança, evitando assim insegurança jurídica, vez que eles teriam que esperar indefinidamente pelo nascimento de criança, ou crianças, oriundas de inseminação, o que causaria revisões sempre possíveis de seus quinhões hereditários. (LIMA JUNIOR, 2012, p. 4
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