Portugueses e Indígenas: Um Encontro
Por CÉSAR EDUARDO PINHEIRO | 08/11/2009 | FilosofiaEste trabalho procura compreender, no período que vai do século XVI ao século XVIII, como a variedade de raças, povos e etnias existentes no Brasil na época em que se inicia o período colonial, foi totalmente ignorada pelos portugueses que aqui chegaram. Os europeus tratavam esses povos como se constituíssem um único povo, designando-os de “índios” . Esse enfrentamento de perspectivas tão diferentes construídos por povos tão distintos não poderiam deixar de gerar conflitos e confrontos. Palavras como encontro, descoberta e cristianização serviriam para encabelar o verdadeiro acontecimento quinhentista: a conquista. A propriedade da terra era desconhecida pelos nativos, ao menos no que se refere ao seu significado na “plantation”. Cada tribo possuía sua própria língua, sua terra. Calcula-se que os povos que habitavam o Brasil no século XV e XVI possuíam aproximadamente trezentos dialetos diferentes.
A colonização daquilo que hoje chamamos continente americano não teve início com a chegada dos portugueses no século XVI e deve ter se dado bem antes, embora ainda não haja um consenso sobre sua data exata e sobre quais povos aqui chegaram primeiro, nem tão pouco de onde provinham.
Sabe-se que durante o período designado de pré-histórico, a necessidade de comida fazia com que grupos humanos seguissem as manadas de grandes mamíferos que se deslocavam em busca de melhores pastos ou fugindo dos caçadores e do frio. Com esse deslocamento, o homem acabou povoando cada vez mais o planeta, transformando a terra em um mundo sem fronteiras[1].
Esse povoamento terrestre que teve seu início na África, estendendo-se à Europa e Ásia, deve ter chegado ao continente americano e à Austrália (Oceania), possivelmente, entre os anos de 50.000 a 20.000 a.C. A chegada ao Brasil, estima-se que deva ter ocorrido por volta de 27.500 anos atrás.
O continente americano com o formato que hoje conhecemos, deve ter surgido há aproximadamente 100 milhões de anos e, durante o espaço de milhares de anos, desenvolveram-se aqui várias espécies de vida animal e vegetal. Assim, podemos acreditar que os primeiros homens que aqui chegaram buscavam lugares onde a caça fosse farta e a coleta abundante.
Segundo a teoria mais aceita sobre a colonização primitiva da América, o homem, que já havia atingido a Ásia, chegou ao continente americano através do Estreito de Bering.[2] Com o passar dos anos, os grupos humanos multiplicaram-se e espalharam-se por todo o continente, inclusive pelo atual território brasileiro.
Acredita-se que ao longo do processo milenar de povoamento do Brasil, houve uma progressiva diferenciação lingüística e civilizacional entre os descendentes dos primitivos ocupantes. Pesquisas arqueológicas demonstram que por volta de 5.000 a.C. registrou-se um acentuado crescimento demográfico, resultado de diversos movimentos migratórios, que estiveram na origem do aparecimento de grupos populacionais crescentemente individualizados. Este fato pode ter direcionado as tribos nativas no sentido de gerar um isolacionismo e uma série de disputas intertribais[3].
A busca por uma datação correta, no que diz respeito ao povoamento americano, tem sido alvo de freqüentes pesquisas e descobertas arqueológicas, antropológicas e históricas. Dentre elas, pode-se destacar os vestígios de fogueiras encontrados em São Raimundo Nonato, no Piauí[4], que indicam a presença humana no Brasil há 40.000 anos. Todavia, não se encontraram ainda fósseis humanos com essa idade e os descobertos datam entre 12.000 e 8.000 anos atrás[5].
Com a prática da agricultura, os povos primitivos passaram então a deter-se por um período maior de tempo em determinados lugares, abandonando assim o nomadismo e tornando-se mais sedentários.
Ainda no que se refere às buscas arqueológicas, a arqueóloga Anna Roosevelt anunciou, em 1985, a descoberta de sítios arqueológicos que provaria ter existido uma grande civilização em Monte Alegre[6], no Pará, há cerca de 11.200 anos. Depois de examinar pinturas rupestres, artefatos cerâmicos e restos de alimentos, ela acredita que o local teria sediado uma "metrópole" com 300.000 habitantes. A arqueóloga afirma que alguns pedaços de cuias e vasos que encontrou têm até 7.500 anos. Se esta hipótese for confirmada, desmonta a tese de que os índios brasileiros passaram a dominar o manejo do barro há 3.000 anos, como se acreditava até então[7].
2. Os nativos do Brasil antes do contato português
Embora existam muitas divergências quando se estuda a densidade demográfica do Brasil anterior à presença portuguesa, acredita-se que antes da chegada portuguesa, existiriam cerca de 5 milhões de pessoas espalhadas por todo esse território. Esses povos já viviam em tribos separadas e, por vezes, distantes umas das outras, possuindo peculiaridades culturais, sociais e religiosas[8].
Partindo desse pressuposto, pode-se afirmar que um dos primeiros equívocos dos portugueses ao se depararem com a alteridade foi o fato de terem acreditado na existência de uma única tribo ou, um único povo em todo o território. Com isto, a nominação genérica de "índios" foi largamente utilizada, sem levar em conta as particularidades das divisões tribais existentes.
Hoje, após diversos estudos realizados, é possível afirmar que as várias tribos que aqui residiam possuíam sua religião, seus mitos e suas lendas[9]. Cada nação indígena[10] possuía sua própria terra, não sendo necessário nenhum tipo de cercamento limítrofe que pudesse demarcar território. Viviam em ocas organizadas em círculo, no qual o centro era o local onde se realizavam as festas e as reuniões tribais.
O jovem do sexo masculino, ao completar seus 12 anos de vida, recebia como presente um arco e uma flecha e já podia sair para caçar com seus companheiros como se fosse adulto. Nesta mesma idade as meninas já poderiam se casar. Quanto ao trabalho, havia uma divisão de acordo com o sexo e praticamente não havia desigualdades sociais, pois o acesso à terra e aos bens de consumo era garantido a todas as pessoas que compunham aquela comunidade.
O respeito à natureza era inerente à existência. Quando necessitavam de uma árvore para fazer uma canoa, por exemplo, iam à mata e arrancavam apenas aquela escolhida como adequada. Se necessitassem de um animal qualquer para alimentação ou para a ornamentação de seus corpos, matavam apenas os necessários. Sendo assim, acabavam por tirar da natureza apenas aquilo que lhes era essencial para sua existência, sem que houvesse uma exploração destrutiva dos recursos naturais.
As tribos também faziam guerras de conquista entre si na tentativa de adquirir mulheres e prisioneiros. Esses prisioneiros, na maioria das vezes, não eram tratados como escravos. Ao contrário, eram bem tratados, recebiam esposas e eram preparados para serem devorados em rituais de antropofagia. Os nativos acreditavam que ao devorar seus inimigos, além de vingarem seus mortos, assimilariam as qualidades e as habilidades dos guerreiros derrotados[11].
No que se refere à língua falada pelos tantos grupos existentes, pode-se afirmar que era de uma diversidade inimaginável. Atualmente os 300.000 índios que vivem no país, não falam apenas o tupi-guarani – tronco lingüístico que abrange 30 grupos indígenas, mas outras 170 línguas diferentes: nambikwara, suruí, juruna, pataxó, bororo, karajá, ticuna, kadiwéu, entre outras.
Imagina-se que essas formas de falar e de se expressar possuem uma origem comum, mas não se sabe ainda qual seria a língua-mãe. Apenas sabe-se que a maioria delas deriva de quatro troncos lingüísticos: o tupi-guarani, o jê, o aruak e o karib. Os que não se encaixam em nenhum desses ramos são considerados isolados, como o makú e o yanomami[12].
Apesar da diversidade de grupos que habitavam o Brasil à época da chegada dos portugueses, as tribos mais descritas foram as pertencentes ao tronco lingüístico tupi, pois essas tribos habitavam o litoral nas regiões que correspondem aos atuais estados do Rio de Janeiro, da Bahia, do Maranhão e do Pará.
Plantavam principalmente milho, feijão, mandioca, cará, batata-doce, abóbora e tabaco. Sendo a divisão do trabalho realizada de acordo com o sexo e a idade, os homens caçavam, pescavam e construíam as tabas, guerreavam, derrubavam as matas e faziam a coivara[13]. As mulheres ocupavam-se dos trabalhos relativos à agricultura (plantio, semeadura, conservação e colheita), às atividades de coleta (frutas silvestres, mariscos, entre outros), ajudavam nas pescarias, buscando os peixes flechados pelos homens, transportavam produtos das caçadas e aprisionavam formigas voadoras (para alimentação).
As aldeias eram normalmente unidas através de um grau de parentesco e pelos interesses comuns. Esse parentesco representava uma interdependência de uma vigorosa teia no mecanismo de existência tribal, gerando uma unidade[14].
Os nativos eram politeístas e tinham por hábito religioso a adoração de vários deuses e às forças da natureza, tais como o vento, a chuva, o relâmpago e o trovão. Os mortos eram tidos como modelos de conduta e suas ações ou atitudes acabavam por reger as ações dos vivos. Suas famílias eram com freqüência poligâmicas e cada homem possuía quantas mulheres quisesse e pudesse sustentar.
Os grandes grupos indígenas ocupavam praticamente toda a extensão do território brasileiro. Os tupis estavam espalhados por todo o litoral e foram os primeiros a ter contato com os europeus. Os tapuias habitavam a região do planalto brasileiro; a bacia do Amazonas era dominada pelos maruaques; ao norte do Amazonas encontravam-se os índios caraíbas, que eram hábeis navegadores.
Quando os lusitanos chegaram às costas brasileiras, os tupinambás haviam alcançado as mediações da ilha de Cananéia, no atual litoral paulista. Estas comunidades de língua tupi-guarani praticavam uma horticultura tropical e subtropical de subsistência baseada no milho, na batata-doce, nas vagens e principalmente na mandioca. Pelo fato dedesconhecerem a adubação sistemática e os instrumentos de ferro, favoreciam as atividades coletoras e caçadoras. Quando às terras onde residiam esgotavam sua fertilidade, migravam para outras regiões[15].
Os tupinambás desenvolveram refinadas táticas e estratégias de guerra, o que fez com que essa nação se transformasse na mais poderosa comunidade indígena do litoral até a chegada dos europeus.
Algumas tribos possuíam uma agressividade militar muito forte e comumente praticavam a antropofagia[16] mas, tanto um quanto outro elemento eram fatores constitutivos de sua tradição cultural. Por exemplo, a antropofagia entre os tupis tinha uma função unicamente ritualística, pois acreditavam que essa prática auxiliava seus espíritos a alcançar o sobrenatural. Assim, a ingestão de carne humana era um ritual simbólico e mágico[17].
Os registros escritos e preservados que descrevem os indígenas que habitavam o litoral do Brasil possibilitam reconstruir fisicamente os nativos: possuíam pele de cor avermelhada, uma altura média em torno de um metro e sessenta centímetros, rosto cheio e arredondado, nariz curto e estreito, lábios finos e dentes sadios. Esta descrição é de um tupinambá mas, os estudiosos dos grupos anteriores e conquista portuguesa acreditam ser essa a descrição do brasileiro típico do ano de 1500[18].
Para entendermos melhor as relações na colônia precisamos conhecer também questões referentes a formação do povo português, é o que veremos a seguir.
3. Portugal: a formação de um reino
3.1. A formação e estruturação do Estado português
Portugal, um país da Europa Meridional, situa-se a sudoeste da Península Ibérica. Estende-se por cerca de 560 km, que vão do Vale do Minho às costas meridionais do Algarve, numa largura média de 160 km, sem nenhum ponto de seu território a mais de 216 km do mar[19].
Ocupa uma área continental de apenas 88.487 km², cercada ao norte e a oeste pela Espanha. Situado no extremo sudoeste da Europa, soube muito bem aproveitar dessa posição ao iniciar as conquistas de novas terras e o desbravamento dos mares nos séculos XV e XVI, tornando-se um dos maiores impérios coloniais, tendo conquistado regiões na África e na América.
No território português pode-se destacar o registro de dois mundos diferentes que acabam por se encontrar: o mundo atlântico e o mediterrânico. Por sua posição e localização geográfica, é um país atlântico; mas por sua natureza e estrutura é um país mediterrânico.
Durante um período de tempo bastante extenso, Portugal esteve isolado do restante da Europa devido a sua posição geográfica. Esse distanciamento só foi amainado com os avanços nas técnicas de navegação, que acabaram por favorecer as viagens pelo alto mar.
A constituição étnica do povo português acabou tendo a influência de vários grupos. Na Antigüidade, foram visitados por fenícios, gregos e cartagineses. Durante a luta contra os mouros, processo que ficou conhecido como "Reconquista", o litoral português passou a ser povoado como medida de defesa ou transformou-se em via de passagem. Essas vias de passagem propiciaram aos portuguêses contatos marítimos com Flandres, Inglaterra, França e Sevilha (Espanha)[20].
Do Condado Portucalense, que se separou do Reino de Castela, nasceu o Reino de Portugal, em 1140. Salvo o efêmero domínio espanhol, no período compreendido entre 1580-1640, manteve-se desde então independente, o que significa que é um dos estados mais antigos da Europa. Em 1910, transformou-se na República Portuguesa, seu nome oficial.
Os habitantes primitivos de Portugal possivelmente foram os lígures e os íberos, daí o nome de celtíberos à raça da Península Ibérica. Com esses povos lidaram os gregos, fenícios e cartagineses.
Na conquista romana, os lusitanos resistiram sob a chefia do lendário Viriato e de Sertório, desertor do Império Romano. Isso impediu por muito tempo o estabelecimento dos domínios portugueses e sua formação enquanto um grupo social com interesses comuns.
No século V aparece a primeira indicação de um nome para as terras peninsulares, Portus Cale, provavelmente derivado de um posto fiscal à entrada do Rio Douro. Um pouco mais tarde, essas terras pertencentes ao reino português foram absorvidas pelo reino visigótico que, logo depois é invadido pelos árabes que, além de ocuparem os postos de direção, estabeleceram um sistema de tributos dentro do qual a antiga população cristã pôde conservar suas características[21].
No período conhecido como "A Reconquista", iniciado em 718 e que só teve um término no século XV, deu-se a unificação portuguesa e sua estruturação enquanto Estado Nacional[22]. Nesse contexto, devido ao envolvimento religioso, a Reconquista assumiu o caráter de Cruzada, afinal de contas, esse movimento atraiu vários cavalheiros cristãos entre eles dois príncipes de Borgonha, Henrique e Raimundo que depois acabaram casando-se com as filhas de Afonso VI. De Raimundo descendem os reis de Leão e Castela. Henrique é o tronco dos reis portugueses.
Em 1147, D. Afonso Henriques, auxiliado pelos cruzados que se dirigiam à Palestina, toma Lisboa aos mouros. Com seus descendentes Sancho I, Afonso II, Sancho II e Afonso III, Portugal alcança uma integração territorial e política como nenhum outro reino da península.
Com a unificação do reino português, nas povoações, vilas e cidades com uma densidade populacional elevada, os habitantes acabaram se organizando de acordo com suas profissões de artes e ofícios.
O comércio era feito normalmente nas feiras periódicas e a cidade era residência de mercadores manufatores. Os fidalgos, fora da corte, viviam em terras senhoriais, solares e castelos, e o regime de governo era a monarquia.
No ano de 1383, iniciou-se uma grave crise desencadeada pela morte do rei D. Fernando de Borgonha. A nobreza, na tentativa de manter a burguesia afastada do poder, lutou para que o rei de Castela herdasse o trono português. Já os comerciantes, artesãos e o povo em geral queriam um rei português. Esses atritos pelo poder só tiveram fim no ano de 1385, quando D. João, mestre de Avis e irmão bastardo de D. Fernando, foi coroado rei de Portugal.
Esse momento da história portuguesa ficou conhecido como Revolução de Avis e, foi o principal fator na submissão da nobreza ao poder real e no reforço à aliança entre o rei e a burguesia, que estava em franca ascensão. Sendo assim, Portugal transformou-se no primeiro país da Europa a possuir um monarca com pleno domínio, sendo considerado o primeiro Estado moderno europeu.
Com a inauguração da dinastia de Avis e a incontestável ascensão da burguesia, as cidades comerciais da costa portuguesa assumem grande importância na política externa expansionista do reino português.
Numa comparação entre os dois momentos históricos de Portugal, pode-se afirmar que a dinastia anterior[23] à dinastia de Avis conseguira delimitar e defender o solo e, nos últimos reinados, organizou a nação. A dinastia de Avis volta-se para a expansão do seu território e, vendo barrada a expansão por terra, resolve partir mar afora na conquista de novos domínios. O primeiro passo foi a conquista de Ceuta, em 1415 [24].
Nos reinados subseqüentes, devido ao grande consumo e aos altos custos das especiarias, a busca volta-se para o encontro de um caminho marítimo para as Índias que poderia determinar um grande avanço comercial.
Com a morte de D. João, assume o reino português D. João II, que acaba por rejeitar os planos apresentados por Cristóvão Colombo, que ter-lhe-ia dado a primazia de encontrar a América. Essa passagem de Colombo a serviço de Castela e seu inesperado êxito, criaram o maior embaraço para o rei português. Com o êxito de Castela, Portugal resolve então direcionar-se às buscas de novas terras e intensifica-se a busca por um caminho marítimo às Índias.
Ainda, proporcionado pelo sucesso espanhol em suas navegações e no crescente interesse português por terras além-mar, além das questões econômicas, políticas e religiosas, fez-se necessário um acordo entre os reinos peninsulares, no sentido de se dividir as futuras possíveis descobertas. Com essa intenção, surge o Tratado de Tordesilhas que divide o mundo entre portugueses e espanhóis.
O Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, estipulava que as terras que ficassem a leste de um meridiano situado a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde pertenceriam a Portugal e as terras situadas a oeste dessa linha seriam da Espanha.
À sombra do princípio da partilha, cada reino tratou de se expandir o máximo possível. Até que no ano de 1500, Pedro Álvares Cabral e sua frota chegaram ao Brasil, entrando assim em contato com um "novo mundo"[25], possuidor de uma nova cultura.
Tem início o processo colonizador impulsionado, por um lado, pela pregação da fé católica, com seus dogmas e estigmas, por outro lado, determinado e direcionado pela expansão mercantilista e pela busca de novos mercados de produção e consumo.
3.2. A sociedade portuguesa nos momentos que antecedem a conquista
No período conhecido como Idade Média, surge na Europa, e conseqüentemente em Portugal, uma nova estrutura social denominada de feudalismo, que predominou na Europa no século VIII até o século XV[26]. Neste sistema produtivo o trabalhador rural é transformado em "servo", que não trabalhava impelido pelo medo de castigos físicos e não era propriedade do senhor.
A sociedade feudal estava dividida em três camadas sociais distintas e com posturas díspares: clero, nobreza e povo. A transposição de uma classe à outra era quase impossível, e o poder político parecia bastante descentralizado e era mais uma atribuição dos senhores feudais do que dos reis.
O trabalho nos feudos era realizado pelos servos, que recebiam do senhor a posse da terra e os direitos de plantar e morar em uma área do feudo. Além disso, recebiam a proteção do senhor contra qualquer inimigo externo. Em contrapartida, viam-se obrigados a ceder parte de sua produção a esse senhor.
Os servos viam na condição inferior algo natural, como se isso fosse fruto da vontade de Deus. O Criador os havia feito servos e deveriam aceitar isso.
A cultura predominante do período feudal esteve sempre baseada no teocentrismo[27], alicerçado por uma visão do homem voltada para Deus e para uma vida venturosa no pós-morte. A Igreja católica, que teve um papel inegavelmente preponderante durante todo esse período, foi a principal divulgadora e incentivadora dessa cultura[28].
A prática feudal incentivava cada vez mais uma fragmentação do poder político centralizado, ao passo que cada senhor era absoluto em seus domínios, pois julgava, prendia, possuía sua própria moeda e determinava as obrigações dos servos.
É em meio a esse período de desestruturação de um poder central que nasce, já no início de desagregação desse sistema, a monarquia portuguesa, incorporando parte de suas características. A formação do Estado português e a estruturação monárquica desse reino se dão em decorrência da luta dos europeus pela expulsão dos árabes, que habitavam e dominavam a Península Ibérica.
Com o fortalecimento dos reis, surge também uma nobreza feudal e gera-se uma proliferação de títulos como os de duques, viscondes e barões. Essa nobreza caracterizava-se pela freqüente ociosidade, uma vez que o trabalho era considerado humilhante e um castigo. Os nobres se dedicavam às caças, torneios, festas e guerras.
Esse fortalecimento dos reis, no sentido de centralizar o poder, surge com a expansão e estruturação da burguesia. Essa burguesia apresentava-se enquanto uma classe social composta de mercadores, que se estrutura com o advento do capitalismo e começa a questionar os poderes que estavam nas mãos dos senhores feudais. Essa nova classe social então alia-se ao rei, buscando fortalecer o Estado na figura real pois, assim, este poderia criar monopólios e conceder direitos e privilégios a sua base de sustentação.
O deslocamento populacional dos feudos para as nascentes cidades e as pestes mortíferas da Idade Média provocou uma crise no sistema, pois a produção não poderia satisfazer as necessidades de uma população comercial crescente. Esse excedente populacional nos arredores das cidades tornou-se um problema, pois abandonava os feudos e a produção passando a viver do banditismo. A nobreza e o clero percebiam que a manutenção da estrutura feudal e, conseqüentemente, dos seus privilégios, dependia de se conseguir desviar esse enorme contingente de desocupados para fora da Europa.
No intuito de dar uma função a esses desocupados, criaram-se expedições encarregadas de expulsar os árabes, que dominavam parte da Ásia, o norte da África e a Península Ibérica em nome da fé. A essas expedições, iniciadas no século XI, deu-se o nome de "Cruzadas".[29]
Esse movimento, além de propiciar ocupação para aqueles que poderiam incomodar os detentores do poder, possibilitou aos europeus a retomada do comércio do Mar Mediterrâneo. Criaram-se novas necessidades na Europa com a introdução dos produtos do Oriente, o que fomentou o renascimento comercial e o aparecimento dos burgos, pequenos núcleos populacionais que se tornaram prósperas cidades. A decadência da estrutura feudal fazia brotar do seu interior um novo sistema econômico, político e social: o capitalismo.[30]
Com o renascimento comercial, Portugal, que era um reino centralizado politicamente e, também devido ao grande encarecimento das especiarias vindas do Oriente, lança-se rumo ao mar na intenção de achar um caminho marítimo que levasse às Índias, sem intermediários.
Naquela época, os navegantes europeus não se afastavam muito da costa, pois isso seria uma aventura rumo ao desconhecido e o medo os impedia. Esse medo era derivado do imaginário social que acreditava em abismos e monstros no mar.
Embora todas as crenças tentassem limitar as viagens pelo mar, a falta de metais preciosos e de mão-de-obra ocasionava uma grave crise financeira, que orientou a burguesia comercial lusitana para uma meta muito bem delineada: a procura de ouro e escravos fora do continente.
3.3. Expansão e domínio
Glórias e terras para a nobreza, lucros para a burguesia e poder para o rei: talvez fosse essa a grande síntese das perspectivas de Portugal com as grandes descobertas.
A decadência do comércio português nas Índias, a falência do sistema econômico feudal e a dificuldade de sustentar uma nobreza ociosa, aliada às invasões que se tornaram constantes nas terras descobertas pela coroa portuguesa, fizeram com que D. João III resolvesse levar adiante a empresa colonizadora. Ele incumbiu Martim Afonso de Sousa e seu irmão, Pero Lopes de Sousa, do comando da expedição para explorar o litoral do nordeste até o rio da Prata, atacar estrangeiros e montar os primeiros povoados no Brasil. Em 1532 foi fundada a Vila de São Vicente, o primeiro núcleo populacional do Brasil.
À medida que se atingiam novas regiões, criavam-se feitorias, pontos do litoral onde se construíam fortes com a função de defesa. Nas feitorias (entrepostos comerciais) ficavam alguns homens para trocar mercadorias européias e produtos nativos.
Com as feitorias, os portugueses não intencionavam colonizar, nem organizar uma produção sistemática. O único objetivo era obter lucros, negociando os produtos da região conquistada através do escambo[31].
A colonização no Brasil foi organizada em torno do cultivo da cana-de-açúcar. Investimento, transporte, refinamento e distribuição foram problemas que se apresentaram aos portugueses e, cuja solução foi dada pela Holanda. Portugal lucraria através dos impostos resultantes do Pacto Colonial[32] e teria a garantia de posse das terras brasileiras. A montagem da produção açucareira obedeceu ao sistema de plantation, resultando na criação de uma sociedade patriarcal e escravista.
A expansão e a ocupação do território brasileiro tiveram origem em diversos fatores, entre os quais destacam-se as expedições para a expulsão de estrangeiros, a busca de riquezas minerais e de índios para escravizar[33].
Nas questões concernentes ao imaginário europeu, até o Descobrimento da América, acreditava-se que a terra era quadrada e, imaginava-se que, caso navegassem para muito longe da costa, cairiam em um abismo repleto de monstros. Além disso, havia o Lendário Equador sobre o qual acreditava-se que, quando alguém o atravessasse, seria salvo e purificado de seus pecados pelo calor.
Todo o lendário proveniente de concepções européias do período medieval vai nortear a ideologia colonizadora. Trata-se de crenças como, além das já citadas, a existência de um paraíso terrestre, a Ilha das Sete Cidades, o Eldorado (terra da fonte da juventude), entre outras[34].
Não tendo encontrado no Brasil sociedades organizadas com base na produção para mercados, como nas sociedades européias ou asiáticas, os portugueses acabaram por não demonstrar muito interesse pela terra recém-descoberta. No período que vai de 1500 a 1530, Portugal retirou apenas o pau-brasil que se espalhava por toda a Mata Atlântica, estendendo-se do Rio Grande do Norte ao Rio de Janeiro.
O início efetivo da colonização gera o encontro/confronto de dois mundos diferentes, em suas perspectivas, crenças e formas de conceber o mundo.
Sabemos que um grupo elabora regras que, mesmo quando não são escritas acabam por ser reconhecidas e determinam ações e atitudes de cada indivíduo inserido nele. Sendo assim, o novo sempre vai gerar estranheza e pode gerar formas de rebeldias.
[1] SANDERS, William T. e MARINO, Joseph. Pré-história do Novo Mundo; arqueologia do índio americano. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
[2] "atualmente um mar que separa os dois continentes e impede a passagem por terra de um para o outro. Se realmente a entrada desses povos foi mesmo o Estreito de Bering, que separa a Sibéria do Alaska atual, essa chegada do homem na América pode recuar em aproximadamente 15 milênios, tempo que seria necessário para os"andarilhos" pré-históricos atingirem o Monte Verde, no Chile.
[3] LIMA, Murilo Rodolfo de. Fósseis do Brasil. São Paulo: Edusp, 1986.
[4] "Ainda no Piauí, no Parque Nacional da Capivara e em Minas Gerais, Lagoa Santa, foram encontrados outros sítios arqueológicos que atestam a presença do homem em nosso continente. As descobertas feitas nesses sítios arqueológicos por Niède Guinon permitem-nos afirmar que homens pré-históricos americanos possuíam características que os assemelhavam aos seus distantes parentes africanos, asiáticos e europeus". Revista Super Interessante. São Paulo: Abril, ano 10,n. 6, p.45-55, jun. 1996
[5] LIMA, Murilo Rodolfo de. Fósseis do Brasil. São Paulo: Edusp, 1986.
[6] Um ano após o anúncio de Monte Alegre um esqueleto causou uma agitação descomunal na comunidade científica. Em Kennewick, no Estado de Washington, EUA, dois estudantes encontraram um fóssil humano de 9.300 anos que apresentava traços anatômicos semelhantes aos dos polinésios. Se for comprovado, pode significar que nossos ancestrais possam ter mais que uma única origem. Revista Nova Escola, São Paulo: Abril, ano XIV, n. 121, p. 10-21, abr. 1999.
[7] Idem.
[8] Revista Nova Escola, São Paulo: Abril, ano XIV, n. 121, p. 10-21, abr. 1999.
[9] RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. São Paulo: Global, 1983. (História Popular).
[10] O termo "nação indígena" é a forma consagrada pela Antropologia e Sociologia no tratamento aos grupos de povos nativos.
[11] FERNANDES, Florestan.Afunção da guerra na sociedade tupinambá. 2.ed.São Paulo: Pioneira/Edusp, 1970.
[12] Revista Super Interessante, op. cit.
[13] Forma de praticar a agricultura onde queimavam a área desmatada antes de semear as novas culturas
[14] FERNANDES, Florestan.Afunção da guerra na sociedade tupinambá. São Paulo: Pioneira, 1970.
[15] FERNANDES, Florestan.A organização social dos tupinambás. 2.ed. São Paulo: Hucitec/Unb, 1989.
[16] Além da antropofagia, os diversos povos nativos do Brasilcolonial realizavam outros ritos que podem ser consultados em Mesgraves, Laima. O Brasil dos séculos XVI e XVII. São Paulo: Contexto, 1994. (Repensando a História) 2. ed. Capítulo 2, pág. 24-53.
[17] RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização; a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Zahar/Edusp, 1996.
[18] A descrição do nativo foi construída através de informações retiradas dos textos de cronistas dos séculos XVI e XVII, entre eles: Pero Vaz de Caminha, Pe. Manoel da Nóbrega, Jean de Lèry e Frei Vicente do Salvador, acreditamos não ser correta mas é a que mais se aproxima do real.
[19] MATTOSO, José (org.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1992.
[20] SÉRGIO, Antonio. Breve interpretação da História de Portugal., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1977.
[21]MATTOSO, José (org.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1992.
[22] Existe uma polêmica historiográfica no uso do termo "nação" para Portugal nesse momento. Neste trabalho,nação ou Estado nacional serão usados para expressar uma união política visando a um fim em comum, sem pretensões de ao aprofundamento do debate.
[23] Dinastia de Borgonha.
[24] MATTOSO, José (org.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1992.
[25] O termo "novo mundo"foi usado por Colombo ao chegar à América, e depoisfoirepetido por vários cronistas, acabando por se tornar um termo corrente, embora a expressão mais correta poder-se-ia ser "outros mundos" pois realmente apresentava-se ao navegador português algo ainda desconhecido.
[26] No que se refere ao sistema feudal, tentou-se dar uma noção geral de seu funcionamento não entrando em suas especificidades, apenas para caracterizar o modo de produção de Portugal e, conseqüentemente de quase toda Europa.
[27] Miceli, Paulo. O Feudalismo. São Paulo: Atual/Unicamp, 1986, p. 19-21.
[28] BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo – Séc. XV- XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996. v.3.
[29] Isaac, J e Alba A. História Universal, Idade Média. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 63.
[30] Huberman, Leo. História da Riqueza do Homem. 19 ed. Rio de Janeiro: Zahar, p. 25-27 e 30-1.
[31] GODINHO, Vitorino M. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa: Editorial Presença, 1981. v.4.
[32] As colônias exportavam matérias-primas, produtos tropicais e riquezas minerais, e importavam produtos manufaturados e eram proibidos de comercializar com qualquer outro país. Pacto corresponde a uma bilateralidade, o que não aconteceu nesse período já que tudo favorecia a metrópole.
[33] MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra; índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
[34] HOLANDA, Sérgio B. Visão do paraíso. 4ª ed. São Paulo: Nacional, 1985.