Por uma sensibilidade no fazer histórico

Por Daniela Nunes de Araujo | 09/10/2010 | História

Entendendo o documento como uma escrita carregada de significados ideológicos, passível de sobreposição de valores éticos e relativos ao posicionamento crítico do pesquisador, a fim de reconstruir uma narrativa de verossimilhança com uma versão o mais aproximada do real acontecido, é que nos colocamos diante do artigo que aqui se apresenta. Como se pronuncia Sandra Jatahy Pesavento, essa é uma relação que se estabelece no campo da proximidade e não da veracidade.
Na reconfiguração de um tempo - nem passado nem presente, mas tempo histórico reconstruído pela narrativa - face à impossibilidade de repetir a experiência do vivido, os historiadores elaboram versões. Versões plausíveis, possíveis, aproximadas, daquilo que teria se passado um dia. O historiador atinge pois a verossimilhança, não a veracidade. Ora, o verossímil não é a verdade, mas algo que com ela se aparenta. O verossímil é o provável, o que poderia ter sido e que é tomado como tal. Passível de aceitação, portanto.

Ao iniciar uma pesquisa científica, o percurso escolhido, entre tantos possíveis é o que motiva o sucesso do trabalho, a opção que o pesquisador realiza em relação ao quadro teórico-metodológico para uma situação prática do problema levantado é que possibilita a continuidade da escrita. Sendo assim, o método existe para auxiliar a construção de uma determinada representação adequada das questões a serem estudadas e o responsável pela operação desse método é o indivíduo do conhecimento, que se torna sujeito e objeto da investigação.

Hoje, o método seguido pelos historiadores seguiu uma mudança. Já não se trata de fazer uma seleção de monumentos, mas sim de considerar os documentos como monumentos, ou seja, colocá-los em série e tratá-los de modo quantitativo; e, para, além disso, inseri-los nos conjuntos formados por outros monumentos: os vestígios da cultura material, os objetos de coleção, os tipos de habitação, a paisagem, os fósseis, e em particular, os restos ósseos de animais e dos homens. Enfim, tendo em conta o fato de que todo documento é ao mesmo tempo verdadeiro e falso, trata-se de pôr à luz as condições de produção e de mostrar em que medida o documento é instrumento de um poder.


Uma escolha que necessariamente significa uma recusa, uma renúncia a uma infinidade outras de possibilidades de discussão.
...em toda obra escrita há uma obra ausente. Isto quer dizer que selecionar fontes e modos de narrar pressupõe a opção de excluir do contexto outras fontes e modos de narrar. Em termos historiográficos, isto indica que a cada interpretação uma miríade de outras possíveis formas de apreensão do objeto são deixadas de lado e que, ainda, novos sentidos sempre poderão emergir de outras investidas.

O pesquisador deve iniciar o seu fazer pelo fato, pelo dado empírico, destituindo-se de todo o arcabouço teórico e se fixar no seu artefato, como coloca Paul Feyerabend
A idéia de conduzir os negócios da ciência com o auxílio de um método, que encerre princípios firmes, imutáveis e incondicionalmente obrigatórios vê-se diante de considerável dificuldade, quando posta em confronto com os resultados da pesquisa histórica. Verificamos, fazendo um confronto, que não há uma só regra, embora plausível e bem fundada na epistemologia, que deixe de ser violada em algum momento. Torna-se claro que tais violações não são eventos acidentais, não são resultado de conhecimento insuficiente ou desatenção que poderia ter sido evitada. Percebemos, ao contrário, que as violações são necessárias para o progresso.

Nas últimas décadas percebe-se uma ampliação da noção de documento histórico. O alargamento da concepção de fonte possibilitou ao pesquisador um acréscimo às possibilidades investigativas, o que requer como consequência, uma reflexão e problematização dessas alternativas.
Destarte, a importância do olhar é o primeiro passo para uma jornada que se propõe a investigar o outro. Um olhar que o pesquisador direciona aos seus interlocutores, entender a realidade circundante a partir de suas experiências, perceber as imagens que estão além do apenas visto, ou mostrado, compreender o sentido que perpassa a imaginação. Um olhar que pretenda captar as nuances, as emoções, as pausas, o dito e o não dito, o visível e também o invisível, não menos importante, mas que necessitará de uma sensibilidade mais aguçada para se tornar perceptível.
Compreender o outro e as múltiplas realidades que nos cercam se faz em contato com as experiências, percursos individuais que moldam nossas visões de mundo, que levam a uma necessidade de ampliação da tolerância, de abrangência dos campos de diálogo e de conflito, de entre-lugares . Um momento que torna possível a experimentação e reflexão sobre as inúmeras possibilidades e posições de um mesmo sujeito, ou de sujeitos diferentes, permitindo novas relações com os espaços.
Percebe-se no ofício do historiador uma atividade que seria ao mesmo tempo poética, científica e filosófica, incorporando em sua narrativa argumentativa modelos de análises literários, como coloca Hayden White:
(...) tem havido uma relutância em considerar as narrativas históricas como o que elas mais manifestamente são: ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como descobertos, e cujas formas têm mais em comum com suas contrapartidas na literatura que na ciência.
Mas isto não equivale, para o autor, tomar a ficção verbal da história como discurso destituído de valor; ao contrário, significa admitir que toda forma de conhecimento contêm elementos de imaginação e ficção.
Contra a acusação de destruir a diferença entre fato e ficção, e de assim abrir espaço para toda aventura historiográfica, Hayden White esclarece que sua teoria apenas redefine as relações entre os dois campos dentro dos discursos:

(...) se não existem fatos brutos, mas eventos sob diferentes descrições, a factualidade torna-se questão dos protocolos descritivos para transformar eventos em fatos (...). Os eventos acontecem, os fatos são constituídos pela descrição lingüística. O modo da linguagem usado para constituir os fatos pode ser formalizado e governado por regras, como nos discursos científicos e tradicionais; pode ser relativamente livre, como em todo discurso literário modernista ou pode ser uma combinação de práticas discursivas formalizadas e livres.

Paul Veyne em seu ensaio Como se escreve a História, reafirmou a propensão da história à narrativa e à literatura, sugerindo que o historiador, no seu ofício, agiria como o literato, tomado pela trama e pelo enredo urdido subjetivamente.
Dessa forma, conforme a exposição de Veyne, o historiador deve se apropriar da noção de intriga, elaborada pela ficção, recurso que possibilitará uma compreensão mais abrangente do acontecimento. É o narrador, através de sua intriga, que faz emergir do esquecimento a matéria desordenada de possíveis acontecimentos, atribuindo sentido aos fatos.

Os fatos não existem isoladamente, no sentido de que o tecido da história é o que chamaremos de uma trama, de uma mistura muito humana e muito pouco científica de causas materiais, de fins e de acasos; de uma fatia da vida que o historiador isolou segundo sua conveniência, em que os fatos tem seus laços subjetivos e sua importância relativa.

A discussão aqui elaborada se insere na chamada História Cultural, um subcampo da história que se ocupa de uma variedade de artefatos, sejam eles escrito, oral ou imagético, abrigando inúmeras possibilidades de tratamento com as fontes, investigações e leituras.
O historiador Robert Darnton é quem nos orienta a respeito da possibilidade de leitura das práticas sociais, "porque se pode ler um ritual ou uma cidade, da mesma maneira como se pode ler um conto popular ou um texto filosófico", advertindo o autor para a busca dos significados que surgem a cada novo olhar sobre o objeto. Significado que se altera em decorrência das experiências vivenciadas pelo pesquisador e igualmente pelo leitor.
Nesse exercício de decifração das práticas sociais o importante é intuir as tensões existentes entre as estratégicas discursivas e as técnicas de apropriação, assim, o desafio fundamental para o historiador é perceber a relação que se estabelece entre os textos disponíveis e as práticas originadas.
Como coloca Darnton, a História Cultural se interessa pela forma como as pessoas pensam, como interpretam o mundo, conferem-lhe significado e lhe infundem emoção .
O discurso historiográfico, longe de se comprometer com a veracidade dos fatos, surge a partir das escolhas do pesquisador, das suas experiências e preferências; da sua sensibilidade ao enxergar as pistas deixadas pelas pegadas dos homens no tempo, ao observar fatos aparentemente insignificantes inseridos na realidade complexa, mas nem sempre perceptível em um primeiro momento.
Assim entendemos que a partir das vivências, das sensibilidades e dos vestígios que permanecem no rastro do acontecido é que a escrita da história ganha forma, em uma atividade de reunião e organização das lacunas, conflitos e discursos da memória coletiva.
As pesquisas científicas quando se apresentam ao público leitor revelam-se como obras prontas, sem lacunas ou silêncios e escondem no discurso todas as fraquezas e dificuldades que levaram à realização da investigação. O sujeito por trás da sua elaboração torna-se oculto, independente da sua linha de estudos e dos seus recortes temáticos, espaciais e temporais.
Logo, na sua confecção são adotados procedimentos que, em certa medida, demonstram os obstáculos enfrentados pelo pesquisador ao longo do desenvolvimento de seu labor, mas que muitas vezes não aparecem explícitas ao final do texto por ele redigido.
Destarte, como coloca o filósofo, teólogo e historiador Michel De Certeau, a escrita não é simplesmente o reverso da pesquisa, é sim, um momento específico da historiografia, responsável por uma prática social.
Uma proposta inicial pode ser facilmente alterada ao longo de sua execução. Um fator que corrobora eficazmente para esta transformação constante da escrita é o problema da aceitação do trabalho pelos pares, o lugar de onde se fala, a discussão com a academia e o entendimento com outros autores. É nessa relação entre a prática e o texto que o historiador se filia, mediado pelas técnicas, métodos e topografias de interesse. Um trabalho que se realiza por meio de uma série de enquadramentos e referências, recusando e aceitando diálogos, conexões e cruzamentos, recortando a experiência e estabelecendo um jogo de pertencimentos e afastamentos.
A narrativa para Certeau apresenta-se como uma interpretação, uma adaptação criativa do pesquisador utilizando-se do suporte teórico metodológico fornecido pelo ambiente e suas relações.

Toda pesquisa histórica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural... Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam.
Um texto só existe se houver leitores para lhes atribuírem sentidos e novas interpretações, logo, os receptores criam quadros múltiplos de explicação a partir de seus lugares e experiências, mas também subvertem, não se sujeitam passivamente às intenções do autor. Assim como um texto se modifica a cada nova abordagem, também se torna diferenciado ao ser disseminado através de variados fluxos e suportes.
Pois como nos lembrou Michel de Certeau, numa passagem do livro A invenção do cotidiano ? Artes de fazer,

Longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos lavradores de antanho ? mas, sobre o solo da linguagem, cavadores de poços e construtores de casas -, os leitores são viajantes: eles circulam sobre as terras de outrem, caçam, furtivamente, como nômades através de campos que não escreveram, arrebatam os bens do Egito para com eles se regalar. A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar, e multiplica a sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não se protege contra o desgaste do tempo (nós nos esquecemos e nós a esquecemos); ela pouco ou nada conserva de suas aquisições, e cada lugar por onde ela passa é a repetição do paraíso.

O leitor constitui-se, a cada leitura, numa realidade histórica distinta, sofrendo condicionamentos variados, originários de sua inserção social e cultural. Uma mesma pessoa, ao reler um livro, ainda que imediatamente à primeira leitura, já não é o mesmo. É um novo leitor, cujo cabedal de leituras inclui essa primeira, que se transformará em elemento de produção de sentido da releitura iniciada. Cada um lê com os instrumentos de sua época e de sua cultura, que conseguiu amealhar a um capital maior, um maior dividendo de significações. O leitor, sem deixar de ser pessoa individual, é necessariamente uma realidade social e histórica, na sua leitura, inscrevem-se as marcas de seu tempo, de sua cultura, de suas preferências, de seu desejo e de sua loucura.
É pela leitura que podemos romper as grades de nosso tempo histórico e dialogar com homens de séculos distantes. Reside aí uma das maiores fontes de liberdade do ser humano: a possibilidade de viajar no tempo e no espaço, na cultura e na ciência, nas fantasias e nos medos de homens e mulheres que nos precederam nessa longa cadeia de discursos que constitui a cultura histórica.
A prática historiográfica contemporânea rendeu-se aos encantamentos de outras possibilidades investigativas, aboliu a rigidez de seu discurso e compreendeu a necessidade de abarcar em sua escrita os inúmeros registros do homem no tempo. Nessa jornada, diversos materiais passam a ser utilizados no seu labor, entre eles a literatura.
Em detrimento de uma narrativa que priorizava a construção de uma verdade objetivamente elaborada, o retorno da narrativa no nosso atual cenário, se vale de indícios para a construção de um terceiro tempo, um momento ficcional, uma invenção criativa do historiador, que por meio de uma intriga, reconfigura imaginariamente o passado, almejando substituí-lo. O historiador se vale de provas cuidadosamente selecionadas e dispostas em uma rede de combinações e analogias de modo a produzir um significado, muito mais que apenas explicar, opera como discurso de autoridade do pesquisador.
Foi com o advento da modernidade e sua crença nos modos racionais de explicação do real, que a narrativa entra em declínio, passou-se a estabelecer um novo posicionamento para historiador, que deveria se ausentar totalmente de sua escrita, o mais fiel às fontes, estas que deveriam passar pelo crivo da oficialidade. O uso de artefatos retóricos e literários foi abolido das academias, visto a manutenção do caráter de cientificidade que permeava todo o discurso da época.
Assim, o próprio nascimento da história, enquanto disciplina, pautou-se naquilo que ela jamais deveria ser: mito, fábula ou ficção, tudo o que não que não permitisse a objetividade e a racionalidade defendida pelos padrões acadêmicos então vigentes. A prática historiográfica deveria se afastar da linguagem dita literária, dos discursos ficcionais e dos artefatos lingüísticos utilizados na elaboração dos textos, que deveria ser guiado por uma linguagem simples, clara e concisa, muitas vezes voltada apenas para a reprodução do documento, que deveria ser escrito e oficial.
Essa maneira de abordagem da História passou a ser duramente criticada anos mais tarde, tendo na Escola dos Analles um dos principais centros de problematização e confronto. A crítica se voltava para uma escrita que objetivava sempre o enfoque nos grandes personagens e seus feitos imemoriais, uma historiografia que priorizava as questões políticas, os tratados e guerras e que relegava os personagens comuns e anônimos.
Foi somente a partir da década de 1970 que a questão passou a ser tratada de forma mais substancial no meio acadêmico, Lawrence Stone, em um artigo intitulado O Retorno da Narrativa, vai propor uma retomada desse tipo de fazer historiográfico, porém, com outras abordagens, no qual afirmara que os três grandes paradigmas da "história científica" vigentes entre o período de 1930 e 1970 começaram a ser vistos com certa desconfiança, já que em anos de produção acadêmica apresentaram resultados ineficientes em relação às suas expectativas iniciais.
A questão tomou fôlego e abrangência nos debates intelectuais das décadas seguintes, foi com Paul Ricouer que a narrativa passa a ser vista e utilizada de forma diferencial, não mais voltada para uma objetividade, mas permitindo ao pesquisador expor suas opiniões e escolher mais livremente, longe das amarras burocráticas, seus objetos, cenário e atores em sua investigação. Admitindo, pois, o caráter ficcional da disciplina, que seria responsável pela construção de uma nova temporalidade, controlada pelas fontes, onde a veracidade seria sempre um horizonte a alcançar, ainda que inalcançável.
Todos esses debates e contribuições resultaram na ampliação das possibilidades de investigação historiográfica, enriqueceu o campo de atuação dos pesquisadores e dos objetos abordados. A noção de documento também foi problematizada, ampliada e desmistificada, incorporando novos temas e enfoques, e fazendo surgir possíveis alianças entre os diversos campos do saber, entre eles a História e a Literatura.
Cada documento se vale de uma rede de significados que contribuíram para sua elaboração, assim, possui uma intencionalidade, nenhum discurso é destituído de valor, são inscritos com base em um universo imagético que se fará presente em sua confecção e que serão interpretadas pelo historiador. As representações desse tempo passado serão resgatadas na escrita, que se valerá das temporalidades presentes na fonte, em qualquer que seja seu suporte, a fim de conferir inteligibilidade e credibilidade a narrativa.
Destarte, História e Literatura apresentam-se como narrativas de explicação do real, duas formas de apreensão do mundo que utilizam o acontecido como referência, construindo outra leitura. Ao construir uma representação social da realidade, o imaginário passa a substituir-se a ela, tomando o seu lugar. O mundo passa a ser tal como nós o concebemos, sentimos e avaliamos.

Atividade do espírito que extrapola as percepções sensíveis da realidade concreta, definindo e qualificando espaços, temporalidades, práticas e atores, o imaginário representa também o abstrato, o não-visto e não-experimentado. É elemento organizador do mundo, que dá coerência, legitimidade e identidade. É sistema de identificação, classificação e valorização do real, pautando condutas e inspirando ações. É, podemos dizer, um real mais real que o real concreto...

Assim, literatura e história são narrativas que tem o real como referente, representações que se referem à vida, aos costumes, ao modo do homem se procionar e se relacionar. São discursos dotados de credibilidade, cada uma a sua maneira, o que requer percursos metodológicos diferenciados, mas não menos válido.
A Literatura, longe de se comprometer com a veracidade dos fatos, utiliza-se de uma liberdade maior em seu fazer, liberdade que também lhe confere autenticidade, pois encarnam defeitos e virtudes dos humanos, fala do absurdo da existência, das misérias e das conquistas gratificantes da vida, das coisas para além da moral e das normas.
O historiador não cria personagens, nem fatos, mas os descobre em suas fontes, faz ressurgir do esquecimento grandes homens e seus feitos, muitas vezes representados por um sujeito que passaria despercebido, mas que adquire vulto em sua escrita. Nesse exercício de decifração do passado, o historiador também utiliza de liberdade em seu labor. Subjetividade na escolha do objeto, do recorte, na seleção das fontes, na forma como irá compor sua narrativa, dos recursos que serão utilizados. O objetivo é convencer o leitor, um trabalho que terá um público específico, seja ele qual for, estabelecendo-se um pacto de lealdade, de veracidade com a escrita.
Destarte, não mais apenas a razão, mas o historiador tem hoje a liberdade de agregar um sua escrita posicionamentos particulares, subjetivamente selecionados em meio a um universo vasto de possibilidades. Muito mais do que simplesmente fazer uso desses recursos, existe a liberdade em se admitir o seu envolvimento com o objeto, sem a pretensa objetividade de uma historiografia já a muito ultrapassada. Esse novo fazer historiográfico se desenha no rastro das sensibilidades, na investigação dos modos como os homens do passado enxergavam o mundo, se inseriam no social, como sentiam, pensavam e se representavam, enfim, trata-se de permitir uma investigação científica que se guia, igualmente pelas emoções.
Às sensibilidades compete esta espécie de assalto ao mundo cognitivo, pois lidam com as sensações, com o emocional, com a subjetividade, com os valores e os sentimentos, que obedecem a outras lógicas e princípios que não os racionais.
Emoções responsáveis por instituir valores, criar laços identitários, consolidar práticas que se desenvolverão no espaço do cotidiano e que deixarão vestígios materias que serão resgatados e reapropriados pelo discurso de uma escrita. Assim, caberá ao pesquisador fazer inteligivel essas sensações, o que exigirá, também, sensibilidade ao compor e recompor sua narrativa, ao ordenar esses vestígios e fazer falar o documento que, nesse novo cenário acadêmico, assume as mais variadas formas.
Os fundadores da Escola dos Analles, com Lucien Febvre, recuperariam a postura de Michelet e reivindicavam ser tributários de sua postura, defendendo a necessidade de ir ao encontro das sensibilidades dos homens do passado e postulando uma história das mentalidades. O historiador Febvre nos fala de utensílios mentais que, traduzindo o espírito de uma época e a sintonia fina de perceber e expressar o mundo, davam margem a que se atingisse o reduto do sensível.
Destarte, as vantagens se estabeleceram nos dois campos. A História utiliza-se de obras literárias como uma representação passada e passível de investigação, e a Literatura, ainda que não tenha esse compromisso, beneficia-se da prática historiográfica, das fontes, métodos e teorias, para compor sua narrativa, que pode se dá no campo imaginativo, com total liberdade de escolha ou, em uma abordagem personagens e fatos que existiram no campo real.
Por mais descompromissado com a realidade que seja um documento qualquer, uma música, uma história em quadrinhos, um romance, uma imagem, entre outros, ele carrega em si marcas de historicidade, traz de forma explícita ou implícita, a forma como pensavam, sentiam e se posicionavam determinados agrupamentos sociais, permitindo ao pesquisador identificar as representações presentes e assim dar forma a sua narrativa.
Nesse trabalho de reconstrução do real, não apenas o trajeto imaginário, mas igualmente a forma escrita contribui decisivamente para a finalização do trabalho inicialmente proposto. E nesse jogo de inscrever e apagar, os recursos estilísticos tornam-se valorosos. É preciso conhecer o público alvo e direcionar a ele o objeto maior de nossas investidas.
Toda fonte, seja literária ou não, representa a opinião de um indivíduo que narra os fatos. Mesmo um documento dito oficial, que priorize uma linguagem técnica, existe a partir da contribuição de um sujeito responsável pela organização dos fatos narrados e que por mais objetivo que pretenda ser em sua escrita, não se furta de transmitir suas impressões pessoais, de se posicionar isento de emoção e de uma perspectiva particular de observação do mundo.
Nesse sentido, o saber histórico é também uma ficção de cunho literário, embora não deixe de ser uma narração de fatos verossímeis expostas através de um estilo pessoal de escrita. A probabilidade de veracidade, calacada em métodos científicos, fornece uma versão dos fatos digna de crédito, mas que, ainda sim, constitui-se dentre uma das possíveis alternativas de explicação do passado.
A História enquanto disciplina tem o compromisso de fornecer um retrato do passado, de forma a convencer o público leitor, mas existe também um compromisso com as técnicas e métodos particulares de cada época, as questões burocráticas e as práticas de receptividade. O compromisso em retratar o passado através dos fatos narrados é apenas uma alternativa dentre tantas outras possíveis, que será reconstruída pelo pesquisador, com o auxílio das fontes e também da criatividade.
Neste sentido, a reconstrução do passado é tarefa do presente, a partir dos pressupostos teórico-metodológico inerente a cada temporalidade, das experiências e emoções vivenciadas, respeitando as reservas de silêncios, desvios e lacunas inacessíveis ao pesquisador.
O objetivo central é trazer para o presente o ausente vivido e, dessa forma, poder interpretá-lo, decodificar a realidade por meio de seus indícios e vestígios, desejando chegar àquelas formas pelas quais a humanidade expressou-se a si mesmo e o mundo. Assim, essas representações do passado apresentam-se como construção imagética, uma forma de conhecimento particular de nossa sociedade, atuando como parte da realidade social e contribuindo para configurá-la. Cada espaço social é, pois, dotado de uma inteligibilidade própria, permeando normas, interesses coletivos, valores, princípios morais e éticos dos indivíduos.
Investigar uma dada realidade social pressupõe contar com um conjunto coordenado de representações, uma estrutura de sentidos, de significados que circulam entre os seus membros, mediante diferentes formas de linguagem. Buscamos, construímos e mantemos nossas referências identitária em constante movimento. O sujeito e as coletividades se definem por sua inserção em uma dinâmica social que se transforma permanentemente, erigidas dentro de um discurso histórico específico.
Assim entendemos que a partir das vivências, das sensibilidades e dos vestígios que permanecem no rastro do acontecido é que a escrita da história ganha forma, em uma atividade de reunião e organização das lacunas, conflitos e discursos da memória coletiva. É no tempo presente que a memória trabalha o material do passado, manifestada discursivamente pelo narrador, que ao realizar sua atividade escrita, oferece inteligibilidade e acesso ao universo de representações que sustentam as mais distintas e fragmentadas exposições, que se renovam e se conflitam a cada novo olhar.

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