Por Um Currículo Libertador
Por Ary Carlos Moura Cardoso | 20/07/2008 | EducaçãoToda ação educativa se desenvolve a partir de uma concepção filosófica. Que fins e objetivos pretende determinado currículo? Compreender isto é imprescindível para a chamada seleção dos conteúdos.
Na montagem do currículo existem duas grandes diretrizes fixadas: uma oriunda do Conselho Federal de Educação (estabelece os componentes mínimos e obrigatórios – núcleo comum.)e outra emanada do Conselho Estadual de Educação ("relaciona os componentes que a escola pode escolher para formar a parte diversificada").
Somos sabedores que, hoje, o próprio sistema volta-se para conceitos básicos e as chamadas habilidades a serem desenvolvidas. De modo que o professor tem liberdade para selecionar os conteúdos.
Regina Haidt sugere os seguintes critérios: 1) validade -devem estar inter-relacionados com os objetivos propostos e atualizados quanto aos conhecimentos do ponto de vista científico. 2) Utilidade – devem estar adequados "às exigências e condições do meio em que os alunos vivem, satisfazendo suas necessidades e expectativas, e quando têm valor prático para eles, ajudando-os na vida cotidiana a solucionar seus problemas e a enfrentar as situações novas". 3) Significação – deve se relacionar com as experiências do alunado. 4) Adequação ao nível de desenvolvimento do aluno – "deve respeitar o grau de maturidade intelectual do aluno e estar adequado ao nívelde suas estruturas cognitivas". 5) Flexibilidade – deve estar sempre aberto às possibilidades de alterações a fim de atender às novas exigências.
Convém lembrarmos que um currículo, de modo geral, apresenta inúmeros enfoques quanto a sua organização: temos o enfoque no educando, enfoque no conteúdo, enfoque na ação, enfoque na estrutura da escola, enfoque nas estratégias, enfoque noprofessor,enfoque na sociedade, na cultura e nos valores. Isto não quer dizer que um enfoque, necessariamente, exclua os demais.
O essencial do que pretendo nesta fala, como o título dado sugere, é fazer uma leitura crítica que caracterize o que chamo de "Currículo Libertador". Aposto, sobretudo, no potencial do professor como principal instrumento desta empreitada.
À luz do que acima expus de currículo, suponho que uma metáfora razoável para o mesmo é de ser ele uma "janela". De imediato, uma janela nos reporta para abertura, para liberdade, para contemplação. Através dela, a luz penetra. A janela simboliza receptividade. Dela é que empregamos olhares, por isso tal jogo é complexo e não pode ser mero brinquedo ante esse mundão das aparências.
Bom currículo, amigos e amigas, é aquele que nos força, nos incita, nos convida a sairmos das "clausuras", "das cavernas" e nos põe em contato com luzes de auto-realizações em que a convivência de abertura íntima em direção ao outro seja realidade. Bom currículo é arejamento, é transcendência crítica.
Se nossa aposta for nos deslocamentos e nos avanços possibilitados pela práxis dialética, cumpre-nos aprofundar uma análise segura que enquadre o currículo na perspectiva freireana do "inédito viável". Portanto, interrogar constantemente nosso trabalho procurando saber mesmo o que quer este currículo dizer, o que ele dizendo está deixando de dizer é assumirmos um comportamento engajado, é, ouso afirmar, irmos para além do senso comum dos educadores. Afinal, escrutinar o verdadeiro currículo envolve tanto o explícito, como o oculto, o encapotado. Ademais, currículo sem uma, repito, prática dialética, é deslavada farsa, é embuste. Nele, o inesperado não deve ser temido. Nele, o toque utópico é imperativo categórico. Nas palavras de Ernst Bloch, "o descortino das utopias começa na formulação de hipóteses capazes de fulminar a ortodoxia".
Nosso grande e urgente desafio talvez seja descomprimir nossos pensamentos das leituras equivocadas sobre currículo para que possamos admitir uma espécie de intervenção cujo objetivo maior é a humanização crítica, libertadora, do processo educacional. Ou seja, precisamos imaginar horizontes que fujam dessa barbárie fatalística das coisas. Nossa vocação maior não é a lógica do capital.
O currículo jamais deve ser racionalização do estabelecido. Não deve conter uma filosofia política que justifique estruturas desumanas como se fôssemos incapazes de idealizar, imaginar e construir um outro mundo. Não pode fugir da vida prática como ponto de partida, deve, sim, enfrentar a realidade como ela é. O currículo, amigos e amigas, não é instrumento de opressão através do qual "cantamos acorrentados". Jamais deve ser reflexo, digamos, de um fenômeno que chamo de "neodesesperança" caracterizado por arrazoados supersticiosos de que é absolutamente inviável a mudança. Não deve ceder ao nhenhenhém de ideólogos conservadores que vivem requentando fórmulas e receituários para o conformismo e para a falta de imaginação. O currículo não deve se apropriar de teorias estranhas para explicar a nossa realidade, quer internamente, quer externamente. O currículo, enfim, é obra de compreensão percuciente, de identificação das estruturas, de consciência crítica que molda nossa realidade. Nele, sem dúvida, hão de estar as contradições, as anomalias, as brechas que nos abrem possibilidades transformadoras.
Tenhamos ou não consciência disso, o âmago das questões curriculares é puramente político. Que nossas escolhas, além do saber necessário acumulado, se pautem na luta em prol de um mundo mais digno. Ou avançamos com denodo ou estaremos forjando um futuro cujo termo, infelizmente, mais adequado é "uma geração de debilóides". A transgressão salutar é ferramenta, no dizer de mestre Bourdieu, é pré-requisito para avançar. Conhecimento legítimo, útil, cidadão, conhecimento libertador, não é introjeção de "silêncios". Disseminar, em nome da cultura, em nome da Educação, conteúdos sabidamente ligados aos interesses de uma minoria é embuste, é fetiche. Faço minhas as palavras de Michael Apple, autor de "Ideologia e Currículo": "Não posso aceitar uma sociedade em que mais do que uma entre cada cinco crianças nasce na pobreza, condição essa que está se agravando dia a dia. Tampouco posso aceitar como legítima uma definição de educação que estabeleça como nossa tarefa a preparação de alunos para funcionar sem problemas nos "negócios" dessa sociedade. Nações não são empresas, para ficarem eficientemente produzindo em série o "capital humano" necessário para dirigi-las".
Finalizo, amigos e amigas, estas breves reflexões com as sábias palavrasde Paulo Freire: "Um dos piores males que o poder público vem fazendo a nós, no Brasil, historicamente, desde que a sociedade brasileira foi criada, é o de fazer muitos de nós correr o risco de, a custo de tanto descaso pela educação pública, existencialmente cansados, cair no indiferentismo fatalistamente cívico que leva ao cruzamento dos braços. "Não há o que fazer" é o discurso acomodado que não podemos aceitar". Não, não e não. Estamos com o mestre: "A esperança é necessidade ontológica, a desesperança, esperança que, perdendo o endereço, se torna distorção da necessidade ontológica. Não sou esperançoso por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histórico. Precisamos da esperança crítica, como o peixe necessita de água fria."
Ary Carlos Moura Cardoso
Mestre em Literatura pela UnB
Pós-Graduado em Educação pela UnB
Pós-Graduado em Filosofia pela UGF
Professor da UFT