Por que Paidéia?

Por Walter Aguiar Valadão | 21/04/2011 | Arte










POR QUE PAIDÉIA?

WALTER AGUIAR VALADÃO




















Resumo: Trata-se, aqui, de um olhar sobre a cidade como a suprema instância pedagógica de qualquer processo educacional cuja essência deve ser que Auschewitz não mais se repita. Que ela não pode ser concebida ou administrada governamentalmente apenas como centro irradiador do comércio, obra de mercadores, mas, antes, lugar de convívio humano, Cosmo e não Caos; de promoção da vida, da felicidade, da justiça, da liberdade, da solidariedade para o maior número de cidadãos possível. Circulação de riqueza poética mais do que de riqueza material. De formação e não deformação do Homem, de humanidade e não de desumanidade. É o que, com a aplicação do conceito de PAIDÈIA, queremos pensar.

Palavras-chave: política, cidade, educação, pedagogia.



SUMMARY: This is here for a view of the city as the ultimate pedagogical instance of any educational process should be that whose essence Auschewitz not happen again. It can not be conceived or governmentally administered only as the irra-diating center of commerce, merchants work, but rather the place of human society, and not Cosmo Chaos; promotion of life, happiness, justice, freedom, solidarity for as many citi-zens as possible. Movement of poetic richness rather than material wealth. Training and not the human strain of humanity and not inhumanity. Is that with the implementation of the Paideia concept, we think.

KEYWORDS: Politics, City, Education, Pedagogy








































Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas "originais". Significa também e especialmente difundir criticamente verdades já descobertas, "socializá-las", por assim dizer, e fazer com que se tornem bases de ações vitais, elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral.

ANTÔNIO GRAMSCI






"O QUE TEM QUE SER TEM MUITA FORÇA", escreveu Clarice Lispector em "A maçã no Escuro". Esse aforismo que saltou das páginas de Clarice Lispector ocorreu-me quando a questão "Por onde começar?" assediava cruelmente meu espírito a partir do momento que Michelle Oliveira Menezes, Coordenadora da SERRAVIX, convidando-me a colaborar, colocou-me o desafio da realização de um SEMINÁRIO de reflexão sobre a Cidade cujo tema seria A Cidade que so-nhamos; a Cidade que vivemos; mote: O poder pedagógico da Cidade" e soli-citou-me que escrevesse um texto suscetível de servir de base para as reflexões e as críticas durante os debates do Seminário: "a partir dele as questões se coloca-riam e a participação dos alunos seria efetiva", disse-me. Tarefa difícil! Na ocasi-ão, observei que a história de uma comunidade, como a história de uma pessoa, tem suas raízes em determinadas tradições e formas de vida imaginárias, e é por elas moldadas até a frustração, e que, por isso, talvez fosse interessante partirmos de uma reflexão monológica inesgotável segundo a qual nossas raízes (como Ocidentais) estão enterradas na Grécia. Captaríamos, assim, dizia eu, de um só fôlego, tanto a cidade imaginária quanto a cidade que vivemos, que moram (atualmente) em nossos desejos tanto quanto em nossas insatisfações políticas pelos estados de coisas estruturais e pelos acontecimentos conjunturais que constituem, os primeiros, nossos mais controvertidos e implacáveis padrões e, os segundos, nossos mais diligentes e questionados (porque renitentes) dilemas. E o título que eu sugeri foi PAIDÉIA. Com ele, expliquei, teríamos, como a própria cultura Ocidental, nossa raiz fincada na Grécia, e, por mais distante que estejamos dos tempos antigos, não adianta espanar a poeira, dar a volta por cima (o céu não é uma saída), ainda somos bárbaros. O que quer dizer que ainda estamos conquistando a Grécia, ou seja, assumindo seus valores, sua cultura, sua arte etc. psicogeneticamente. É o nosso indefectível ponto de partida e sugere que o que não pode ser tem tanta força quanto o que tem de ser. Sugestão de polichinelo! Alguns momentos de perplexidade, alguns debates, dúvidas sanadas, relutâncias vencidas e o título foi aceito. Mesmo porque, orienta-nos Mattei,

todo documento de cultura, Benjamin o disse na sua Tese VII sobre a filoso-fia da história, é ao mesmo tempo "um documento de barbárie", de modo constitutivo e não acidental, pois a barbárie segue os passos da humanidade como a sombra acompanha o homem que caminha na direção do sol.

Fui, então, instado pela tarefa e assediado pela questão: Por onde começar? Questão que problematiza todo autor, todo tema, toda trama, todo enredo, toda história... Do mais particular ao mais universal. Foi então que, de repente e inoportunamente, ocorreu-me à memória um aforismo de Nietzsche, que li em "Miscelânea de opiniões e sentenças". A saber: "Aquele que viu o ideal de alguém é para este um juiz implacável; e de alguma forma sua má-consciência" Foi uma lástima! Assim me via diante da perspectiva de ter um texto em análise e julgamento por toda uma Cidade, e, o que é pior, pelos intelectuais dessa Cidade e por todos que nela (tantos, que) encontram motivos para não gostar de mim (o que me amargura), sem falar de todos os que posso encontrar (que não me conhecem) de outras Cidades, o que me fez vacilar. Quem sou eu? Que dirão, de verdade, de mim? E que acolhida encontrarei na própria SERRAVIX? Juizes implacáveis; más-consciências? Sim, talvez! Mas também, e principalmente, Amigos. Que alívio! É o nosso "círculo aconchegante", na expressão de Göran Rosemberg, que sempre se aproxima e não nos deixa sozinho. É para ele que queremos falar, e que geralmente falamos. Impõe-se, portanto, que seja um texto competente, honesto, amoroso, poético, utópico... É o mínimo que devemos. E é isso que sustenta e preserva as Amizades. Consolida-as. Eterniza-as. Torna possível que a Filosofia se desenvolva para a ação. Por essa razão, observou alguém: "Ninguém quer ser amado por falta de inteligência". É justamente no convívio de "Amigos da sabedoria" que teoria e prática se enroscam como anéis de DNA; biografia, história e cultura se determinam assimetricamente... Portanto, como opina e sentencia Nietzsche: "Se até agora acreditaram no valor superior da vida e se, no presente, estão decepcionados, devem, pois, se livrar da vida a pre-ço totalmente irrisório?" Não, é óbvio que não! Respondo com veemência e certe-za inabalável. Espero que não! E digo mais: nem a vida, nem a própria morte. Encontro assim todas as razões para ouvir meu coração cantar no deserto, (onde Cristo orou), uma nova canção: "Trícia, Trícia, Trícia...". E que promete deixar marcas no futuro. Meu coração também é uma fonte. E é com ela, Trícia, (quem sabe?), e por ela (mas também com), Penélope, que florem as idéias de POR QUE PAIDÈIA? Educadores que somos! Mas também, quantas vezes tais idéias deixam-nos horas, dias, meses, anos frente a uma página vazia sem nenhuma inspiração. São esses os nossos momentos crianças, quando em nosso espírito todas as idéias brincam de "chicotinho queimado" ou de "pique esconde-esconde", com a nossa consciência e necessidade. Dizem que isso libera a afetividade das influências deletérias. Creio que sim! Que isso libera um texto ou uma obra das influências da "objetividade" idiota. Seria perfeito! Que isso, por outro lado, atrai todas as perplexidades. Creio que sim! Mas que também a angústia (doce angústia) pode nos paralisar. Não duvido! Neste sentido, já observou com agudeza Pascal, em um de seus fragmentos, o19, que "a última coisa que se encontra ao escrever uma obra é o que colocar em primeiro lugar". Mas, "já que é preciso um começo", como diria Antônio Cândido, ocorreu-me, visto que se trata de um texto pedagógico para embasar as reflexões críticas dos alunos, denominar o presente e pequeno texto com uma interrogação: POR QUE PAIDÉIA? Dois coelhos, uma só cacetada. Ao mesmo tempo um título e uma idéia a ser desenvolvida. Mesmo porque, depois de superados os momentos crianças (o que só é possível pela infelicidade), quando a dor (que magoa e inspira) e o tempo (que oferece experiências e saberes) os deixam para traz, por consolo do destino diante do que está por vir, diante da força do que tem que ser, é preciso (como Heitor que sabia que ia morrer pela mão de Aquiles, como narra Homero) saber morrer na luta, com glória, com a certeza de ter realizado "algum feito relevante, cujo relato chegue aos homens por vir". A Grécia, portanto, pode ser um bom ponto de partida, - algo mais que um pasto e uma fonte d?água. O heleno, diz Nietzsche, "não é nem otimista nem pessimista. Ele é essencialmente viril, vê as coisas terríveis como elas são e não as dissimula a si". Mas quer a grandeza, a glória, o heroísmo, a amizade, a força, o poder, não ser esquecido. Tudo isso vale mais que a felicidade pessoal, quando ela não deixa marca para o futuro. Deixar marcas para o futuro, coisa rara! Digna apenas de heróis e deuses. Amantes verdadeiros! Amar intensamente, sem deixar que o acaso se apodere da mais ínfima partícula de seu ser, logo, desse Amor, é a Fidelidade. É ser um mar. E como disse Nietszche em Assim falava Zaratustra: "O homem é um rio turvo. É preciso ser um mar para, sem se toldar, receber o rio turvo" . Esse, talvez, seja o sentido mais radical, mais viril de paidéia, e que é essencialmente homérico. Por essa razão, colocando-me diante da questão POR QUE PAIDÉIA? vejo-me obri-gado (por ter sugerido um título e proposto uma tarefa ) a oferecer uma resposta. E, diante dessa obrigação, é grande a tentação de limitar-me a dizer pouco ou mais do que simplesmente que a paidéia, hoje, são nuvens; as nuvens ético-políticas e pedagógicas do pensamento grego que perpassam o céu Ocidental em mil e uma figuras. Tenho na memória, ipsis verbis, as palavras de Lyotard: "A periferia de uma nuvem não é mensurável com exatidão, é uma linha fractal de Mandelbrot". E concluo: a periferia somos nós. A conclusão, -- contra certa endo-colonização --, nasceu da leitura desconfiada (e por isso crítica) de "Gregos, bár-baros, estrangeiros: a cidade e seus outros", de Barbara Cassin, Nicole Loraux e Catherine Peschanski. Se podemos dizer que "POR QUE PAIDÉIA?" é uma questão historial de nossa existência Ocidental-européia, então, se a mudarmos para "POR QUE PAIDÉIA, hoje?, não implicaria fazer da resposta dada ser mais poderosa que a própria pergunta? Ou, então, fazê-la transportar uma transcendentalidade que não possui?... O que é mais importante, portanto, não é a questão "POR QUE PAIDÉIA?", mas tudo o que nela convoca o pensar e o dizer: se o passado, se o presente, se o futuro. Pode-se dizer, ainda, se a essência ou a existência, se a potência ou ao ato, se a filosofia ou a política, se a palavra ou a coisa... Se, se, se... quer dizer, tudo acontece. Principalmente se não passar pelo sentido. Inequivocamente, porém a ausência na cidade de lugares públicos adequados para a voz e o ouvido humanos, para a mão que afaga, para o olho que identifica o belo, para o corpo cansado e para a mente embaralhada apascentar-se, convoca-nos para uma reflexão sobre a cidade como a grande estância pedagógica... Por tudo isso POR QUE PAIDÉIA?.

.1.

Paidéia: a formação do homem grego é o título do livro de Werner Jaeger, de onde nos veio a idéia de denominar POR QUE PAIDÉIA? ao presente trabalho. Insinua-se uma oposição a Jaeger? Sim, talvez! A coisa ainda está por vir e deve ser dita em "mil e uma noites", e cada resposta apenas no dia seguinte. "Viver é perigoso", alerta-nos Guimarães Rosa. Alguma dúvida? Basta olhar para a Cida-de. Um dia muito especial e para mim triste olhei para minha cidade, Vitória, quando passava pela Terceira Ponte (bela paisagem), sentido Vila Velha-Vitória, pensava no Amor que eu perdia, que deixava para trás, e que muito doía. Disse para mim mesmo: "Eu sempre amei minha mulher porque acreditava em nós dois. Mas não havia como nessa Cidade ela saber disso". Que desconsolo! E agora que inevitavelmente tudo acabou só me resta, para a saúde de minha dor, cantar como Jota Quest, celebrando minha consciência:

Eu sempre acreditei muito em nós dois
Primeiro em você, depois em mim...
Éramos nós.

Agora não somos mais nós. Agora somos apenas você e eu; um pra lá, outro pra cá e agora a vida nos convidou pra dançar: "... são dos pra lá dois pra cá"... Agora que a tempestade passou, com a oportunidade que SERRAVIX me propiciou, tento entender esse divórcio entre eu e ela pelo divórcio entre eu e minha Cidade. Sei que o inferno foi os outros, e ainda são os outros. Que dizer contra tal canibalismo? Que fazer? Viver numa Cidade não deveria dizer justamente isso: "Não desejar a mulher do próximo"? Não é isso, entre muitas outras coisas, que entendemos por religião? Pelo que sei fazem isso não só quando o marido fracassa; fazem-no fracassar. Por quê? Não é difícil imaginar os "bons" conselhos e presentes recebidos e a conveniência da recepção... Tudo se troca muito facil-mente e tudo que foi usado é vendido muito barato e se vende sem dificuldade! Que perversidade é essa? Angustia-me, portanto, saber, como colocou o falecido Cornelius Castoriadis e como nos lembra o vivo Zygmunt Bauman, que o proble-ma com a nossa cidade (Bauman fala "com a nossa civilização") é que ela parou de se questionar. Apesar de Auschewitz, que loucura! Fechar os olhos criminosa-mente para a advertência de Theodor W. Adorno: "A exigência de que Auschwitz não se repita é primordial em educação" (ADORNO,1995). Como então esperar encontrar respostas para os dilemas que a aflige, que nos aflige? Como encontrar respostas? ? certamente não antes que seja tarde demais e quando as respostas, ainda que corretas, já se tornaram irrelevantes. Irrelevantes já se tornaram, por exemplo, o Amor, a Fidelidade, a Honra (grandes conceitos civilizatórios atualmente vazios); e, se a ausência de sentido nas relações huma-nas assusta, enlouquece e mata, como entender a excitação prazerosa que dá em toda essa gente que se tornou juiz ou má-consciência? Com efeito, com POR QUE PAIDÈIA? o que pretendemos é recolocar as questões fundamentais para a cidade, a nossa Cidade, e para que nossos amores não sejam líquidos e assim caibam em qualquer vasilhame ou frasco, pois que adquirem a forma de qualquer recipiente financeiro pragmático e jurídico ou de perversões e taras sexuais que convierem aos proxenetas de plantão. Contra tudo isso, resta-nos apenas as idéias que temos de uma Cidade. Evidentemente a idéia não nos veio gratuitamente, e, de certa forma nela, residem invisíveis muitos elementos biográficos que não cabe aqui narrar. Afinal, vivemos na cidade desde criança e seus fantasmas sempre nos perseguirão. São nossos fantasmas, e nem sempre são camaradas. E se nos pega a questão por que "um termo grego para exprimir uma coisa grega" como título e tarefa? As épocas, as coisas, os homens, as medidas, os lugares não são totalmente diferentes? De imediato, que dizer? Digamos simplesmente em resposta, por ironia. Quer dizer, o título POR QUE PAIDÉIA? confere-nos algo assim como que uma espécie de reconhecimento (renascimento, restauração, reconstrução) de todos os "presentes de grego" que recebemos da história da Humanidade. E o que isso significa? Parafraseando Henri Lefebvre, podemos dizer que isso significa que a ironia, (método educativo de Sócrates),

"aparece nos períodos agitados, perturbados, incertos, quando as pessoas consagram-se a importantes negócios, quando o futuro depende de grandes decisões, quando grandes interesses estão em jogo e os homens de ação empenham-se sem reservas na luta".

Então, o grande ironista aparece "para sustentar um papel, usar uma máscara, dizer o falso (e que ele sabe falso) para chegar ao verdadeiro". Com ele, diz Le-febvre, aprendemos que "o caminho da verdade passa ainda pela dissimulação e, pior ainda, pela derrota". -- E não é verdade que em toda "boa causa" derrotada descobrimos as falsas crenças, os amores iludidos e os erros que também as fun-damentavam? Mas, digamos, "o descobrimento das falsas crenças, dos Amores iludidos, dos erros", concordando com Lefebvre, "segue estes desvios: simulação, ficção, paciência, espera, reserva lúcida, fracassos da verdade e da vontade do verdadeiro". É preciso então (diante de um inevitável niilismo) Amor, Fidelidade e Honra para seguir em frente. Por essa razão todo ironista, tal qual como Socrates, tem a confessar que "nunca a fome o rebaixou a ser lisonjeador". Por isso sempre há ou haverá um problema; em uma amizade que seja. Em um amor, nem é bom pensar! Como observou Bernard Shaw: "Existe duas tragédias na vida, uma delas e não conseguir o que o seu coração deseja; e a outra é conseguir". Mesmo por-que, como se diz, todo mundo é virtuoso sozinho, para pecar são necessários no mínimo dois. No mais, todo final é arbitrário e geralmente se fixa a preços total-mente irrisórios. E não foi porque Sócrates se tornara amigo de Alcebíades que lhe instauraram, em 399 a.C., o processo de assedia, alegando que corrompia a mocidade e introduzia novos deuses? Teria podido fugir do cárcere, é verdade, mas não o fez, porque a sua voz interior, o seu demônio, lhe proibia ser infiel à tarefa que lhe foi confiada pelo deus délfico, de se provar a si mesmo e aos seus cidadãos. Fica claro que para o grande ironista todos os problemas e todas as condenações apontam para outros limites, outras possibilidades, outras perspecti-vas. A tragédia não assusta, e a morte, fim de todos os limites, tranqüiliza. Sim, Sócrates ironizava o poder da cidade ao aceitar passivamente beber a taça de cicuta, e o faz tranqüila e placidamente, dizendo depois de ter ingerido a última gota do mortal líquido: "Devo um galo a Esculápio", quer dizer, aceitava a morte como uma espécie de cura e não de castigo. Mas antes de ingerir a primeira gota disse em sua defesa:

"Como, tu, meu estimadíssimo cidadão da cidade maior e mais notável pela cultura do espírito, não te envergonhas de trabalhar, para encheres o mais possível a tua bolsa de dinheiro e de adquirir glória e honras, e não te impor-tas com os princípios morais, com a verdade e a elevação da tua alma, não empregando nisso o mínimo cuidado".

E não é justamente contra toda injustiça ou condenação moral que Plutarco se insurge ao lembrar-nos a resposta de Diógenes à questão: "Como me defenderei contra meu inimigo?" Resposta: "Tornando-te tu próprio virtuoso". E é sempre as-sim, nos períodos de maiores dificuldades o ironista recolhe-se em si mesmo, por certo tempo, habita solitariamente as grandes altitudes e as grandes depressões. Exige princípios morais, exige o amor, a verdade, a elevação da alma; e só encon-tra solidão. Onde está o Amor? A mais negra solidão. Qual o valor do Amor? Tal-vez chore. Talvez sofra. Talvez gema de dor. Talvez grite. Quem saberá? Talvez somente o eco que brota de seus vales e labirintos interiores compartilhe de seu solitário sofrimento. Como saber? Sim, em sua dor e em seu sofrimento o ironista, depois do primeiro impacto, jamais incomoda ninguém. São seus momentos mais particulares, e mais desertos. É neste tempo, porém que ele se recupera e afirma-se. A dor o orienta e o guia, pacientemente. Ou seja, ouve o conselho de Plutarco:

"Sonda o âmago de tua alma, examina tuas falhas, para não te expores a ouvir dizer baixinho, por algum vício oculto não se sabe onde em ti mesmo, este verso do poeta trágico: Queres curar outrem, quando regurgitas de úlceras.".

Com efeito, conclui Plutarco:

"Nada seria mais vergonhoso nem mais mortificante que ver recair sobre si a censura que se teria feito a outrem; mas os olhos fracos parecem feridos mais vivamente pela reverberação da luz, e os acusadores pelas acusações que a verdade faz recair sobre eles".

Assim é que se recupera e afirma-se o ironista. Mesmo porque, em sua dor e em seu sofrimento, o ironista não trai o seu amor porque sabe como observou muito bem Adorno: "Quem amou e traiu o amor faz mal não só à imagem do passado, mas ao próprio passado". E quem assim o fez não deixa para traz nenhum feito relevante como exemplo ou lição. Está convicto o ironista de que não ama quem só está acostumado a tomar por modelo de relações humanas a troca de 12,80 reais por um bife de 750 gramas. É por essa razão que, depois de ter sido depu-rado por sua dor e sofrimento, o ironista volta-se para fora e para o público mais que pronto para o interrogatório, para enfrentar todas as acusações, para sofrer ou corrigir as injustiças, e, assim, com um riso irônico nos lábios, [riso que, afirmam os sábios ? de Demócrito a Elias Canetti ?, lembra-nos Roberto Romano, "demonstra a superior maestria contra aqueles que (muitos) desprovidos de senti-do para o humor, sempre se mostraram desconfiados perante a vida e o pensa-mento" e o julgaram com leviandade, pressa e vilania, e, principalmente, para aqueles que, além disso, o aconselharam a partir, a evadir-se, a fugir], ele diz "dê-me o cálice de cicuta", mas, primeiro, observa com satisfação Lefebvre, "ele interroga os atores para saber se eles sabem exatamente por que arriscam suas vidas, a felicidade ou a falta de felicidade, sem contar a vida, a felicidade ou a infelicidade dos outros". Se eles sabem bem o que representam e qual o jogo de que participam. Se eles já se deram ao trabalho de terem contados os custos implícitos em certas escolhas. Se eles pensam em alcançar ou julgam que já alcançaram a felicidade com aburguesamento e acanalhamento da vida. Se eles sabem que assim morrem duas vezes: a primeira quando deixam de viver, a segunda, quando a lembrança de suas existências depois de alguns dias de luto familiar se reduzem a uma cruz cravada na sepultura e a uma data nelas talhadas, significando que o valor que eles atribuíram ao seu Eu para trair o amor era ilusório e vão. E mesmo assim, não por merecimento, mas por misericórdia. E implicitamente, para o ironista, ali estará a inscrição: "Aqui jaz fulano de tal... e sua importância". E a sepultura será para estes, como a própria vida foi até então, um bom lugar privado. Como muito bem disse os versos de Marwell A sua amada recatada (To his Coy Mistress"):

A sepultura é um bom lugar privado
Mas nela, creio, ninguém é amado.

De que vale viver assim para ser esquecido? E morrer assim, tão miseravelmen-te? Para os que se contentam com a vida burguesa, a felicidade é negada (mes-mo quando, como agora, já não há mais felicidade). E porque no aburguesa-mento da vida não há mais felicidade? A felicidade é, disse Freud, "a gratificação ulterior de um desejo pré-histórico", ou seja, um desejo infantil. Eis a razão pela qual, ele acrescentou, "a riqueza proporciona tão pouca felicidade: o dinheiro não é um desejo infantil". Nem um desejo original. Mesmo porque, gosto de citar Ba-chellard, "Só podemos compreender e amar aquilo com que sonhamos um dia". Por essa razão, no mundo atual mais que nunca antes, a (in)felicidade é deixada aos que, nessa vida, já são sombras, e para os quais vale a expressão de Píndaro: "seres efêmeros". Vale, para uma perfeita ilustração do que estamos dizendo, a observação de Marcel Conche:

Sabe-se o duplo destino que se oferecia a Aquiles: "Se fico combatendo aqui em torno da cidade de Tróia, perdido está o meu retorno; em compensação, uma glória imperial me aguarda. Se, ao contrário, volto à terra da minha pátria, perdida está minha nobre glória; uma longa vida, em compensação está me reservada" ? uma longa vida feliz. Aquiles conhece a tentação do retorno. Ele se lembra que pensou muitas vezes em levar, na sua Ftia natal, uma vida tranqüila: "Meu coração com freqüência me incitou a lá tomar co-mo legítima esposa e companheira a que conviesse à minha posição, a fim de desfrutar depois, tranqüilo, os tesouros do velho Peleu". Nesse momento de nostalgia, ele diz que "nada se compara à vida", que a vida de um homem não se volta a encontrar. Como o herói está plenamente consciente do que está "perdendo", de todas as alegrias que não terá, sua escolha é ainda mais rica de sentido. De um lado, a felicidade, do outro, a grandeza, o fecundo sacrifício de si mesmo. Porque o herói não é feliz: Aquiles tem medo, geme, chora, "e a idéia de sua vida demasiada breve" não o abandona. Mas a vida das pessoas felizes, que encontra seu fim em si, não deixa marcas para o futuro. "Felizes"? Pois bem! Mas elas logo serão como nunca haviam sido. O poeta (Homero, em a "Ilíada") canta a cólera de Aquiles ante as muralhas de Tróia; não canta a paz de uma aldeia em férias. Entre a insignificância e o sentido, é preciso escolher?

O ironista escolhe o sentido. Ele conhece bem o perigo e o tempo que dura às ameaças; ele possui "a antena do caracol"; escolhe, portanto, o sentido, deixa a insignificância para quem se compraz com ela. Escolhe o sentido porque, como diria o nosso poeta antropofágico Oswaldo de Andrade, "a alegria é a prova dos nove". Quer alegria maior que a realização de um grande feito? De uma grande obra? Ter seu nome inscrito na posteridade? De viver a fidelidade a um Amor a-pesar de? Agora, quanto à tão sonhada e decantada felicidade, como insistia He-gel em suas aulas sobre a filosofia da história universal, "a história não é o palco da felicidade; nela, os períodos de felicidade são páginas em branco". Esta é a razão para as grandes causas da história da insensatez e dos desatinos em nome da felicidade. Daí o desprezo de Aquiles para com a vida feliz, mas sem glória. Queria escrever seu nome na história da humanidade; a vida feliz era o único perigo real. O caracol, portanto, é o grande signo do presente texto. E isso nos leva a uma rápida digressão e responde a uma provocação risonha "por que um caracol como símbolo de POR QUE PAIDÉIA?, é preciso que se diga isso?". Pois bem, foi em "notas e esboços" da "Dialética do Esclarecimento", de Adorno / Horkheimer que encontrei algo "Sobre a gênese da burrice" que propunha o caracol, "a antena do caracol", como símbolo da inteligência. E essa é a nossa razão. Então, se pensarmos como Deleuze, que "aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados", a conclusão inevitável é que "não existe aprendiz que não seja "egiptólogo" de alguma coisa". Conseqüentemente, duas questões insistem em se desprender. Com naturalidade. A primeira diz respeito à preocupação de: "por que um termo grego, de uma coisa grega" para designar um texto a ser publicado em uma revista pedagógica que sirva de base para reflexões sobre a cidade e dirigido a alunos e a profissionais de Direito, de Pedagogia, de Psicologia, de Administração etc.? E ao mais fundamental, ao Povo em geral. Em outras palavras, POR QUE PAIDÉIA? se depois dos gregos o jogo mudou, e a cena e a regra do jogo? A segunda atende à provocação do por que o caracol como símbolo e ilustração? Com efeito, para atender a essa dupla solicitação de esclarecimento, volta-se então para fora o ironista e, pela paradoxal linguagem da graça, como Abraão recebeu de volta a vida do filho Isaac, ele recebe a sua e conquista tudo aquilo que prometera ao deus-délfico.-- Platão tinha razão, somente "aquele que o amor não toca, caminha na escuridão".

-2-

A tarefa que Jaeger se propôs com "PAIDÉIA" era "evidenciar a ação recíproca entre o processo histórico pelo qual se chegou à formação do homem grego e o processo espiritual através do qual o Grego logrou elaborar o seu ideal de huma-nidade". E foi assim que Jaeger se devotou à tarefa e o fez porque julgou "ver que da solução deste problema histórico e espiritual estava pendente a inteligência daquela criação educativa impar, da qual irradia a imorredoura ação dos Gregos sobre todos os séculos". A preocupação de Jaeger, portanto, podemos dizer, era principalmente pedagógica em seu sentido amplo. Hoje todos nós sabemos que a pedagogia, diz-nos Merleau-Ponty, "é o conjunto das técnicas que resumem a ciência psicológica e transformam-na em regras de ação", mas, também, não ficando apenas subordinada à Psicologia, primeiro, e à Moral, depois (posto que suponha valores preestabelecidos que não questiona). A pedagogia é um trabalho dirigido para "as reações do adulto em relação à criança". E como encontramos no conceito de paidéia a melhor interpretação de nossas ambições pedagógicas, o presente texto acabou por ser denominado POR QUE PAIDÉIA?, consagrando a nossa, digamos, releitura. Até podemos dizer que, de certa forma, guiamo-nos pelo ensinamento de que os historiadores, como nos diz Frank Herbert, (no volume V de sua série de ficção "Duna", na tradição do Imperador Deus Leto II): "Recriam o passado. Modificando-o para se adequar às suas próprias interpretações. Fazendo isso, modificam igualmente o futuro". Mesmo porque, nessa recriação, ironizaria Ernest Bloch, "a verdadeira gênese está no final e não no princípio". E o final é sempre o que está aqui-e-agora (nunca em si, e sempre preso a certa e determinada relação simbólica) e com um pé no "amanhã?, isto é, no "futuro" ou na utopia (quer dizer, apenas em seu devir desejado ou possível). O que quer dizer que as recriações do passado não são apenas superficiais, (na fórmula de Valery, "o mais profundo é a pele"), mas também corruptoras da História já que todo conhecimento se reduz a ser uma interpretação, daí o predomínio da imaginação e, conseqüentemente, de nossa incrível capacidade de criar o que não existe por meio da (re)invenção dos acontecimentos, das conjunturas... No mais, convém observar que uma interpretação sempre levanta suspeita. Essa é a razão pela qual, diz-nos Deleuze, "o método de Foucault sempre se contrapôs aos métodos de interpretação. "Jamais interprete, experimente...". Experimentemos, portanto, a cidade grega (como quem degusta comida chinesa num restaurante Uruguaio) para sabermos o segredo de sua paidéia. Mas o que é a cidade grega? Esta cida-de que, nos dirá Bárbara Cassin e Nicole Loraux, "é o modelo por excelência, ori-gem e paradigma, da democracia". O quê que é isso? O que pode significar isso? Que qüiproquó é esse? É incontestável que, como disse Jean-Pierre Vernant, "o aparecimento da polis constitui na história da vida e do pensamento grego, um acontecimento decisivo". E no seu desenvolvimento assistiremos, como nos ensi-na Gustave Glotz, ao confronto de três forças: a família, a cidade e o indivíduo. E assim, diz-nos Glotz:

Toda história das instituições gregas reduz-se a três períodos: no primeiro, a cidade compõe-se de famílias que ciosamente protegem o seu direito primi-tivo e submetem todos os seus membros ao interesse da coletividade; no segundo, a cidade põe sob sua dependência as famílias, chamando em seu auxílio os indivíduos libertos.

(Neste ponto convém sublinhar, en passant, com auxílio de José Trindade dos Santos, em seu livro Antes de Sócrates: introdução ao estudo da filosofia grega, que em meados do século IV a.C., quando o historiador Heródoto quis ex-plicar a vitória da Grécia sobre os Bárbaros, quando das duas guerras médicas, ele põe em evidência "a superioridade dos cidadãos combatentes, que não têm outro senhor além da Lei e que comandam a si mesmos, em comparação com os Guerreiros do Império Persa, que obedecem a um homem e não têm outras moti-vações além do interesse e do temor" ). -- E continuando com Glotz:

"no terceiro, os excessos do individualismo arruinaram a cidade, a tal ponto que se torna necessária à constituição de Estados mais extensos".

Como, entretanto, não se trata aqui de contar a "história interior" da cidade grega, importa-nos apenas fixar, como disse Vernant, que o sistema da polis "é primeira-mente uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instru-mentos de poder". E a palavra torna-se "o instrumento político por excelência, e como a guerra e a violência, a chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e domínio sobre outrem". Poder! Poder! Poder! Clama toda palavra. Evi-dentemente que a escrita (tomada dos fenícios e modificada por uma transcrição mais precisa dos sons gregos) "vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum, e permitir uma completa divulgação de conhecimentos previamente reservados e interditos". Nada é gratuito, vale lembrar. Por isso foi tremendo o impacto da literariedade na vida cultural grega, que, segundo José Trindade Santos,

teria levado cerca de quatro séculos a acomodar-se a ela (e, mesmo assim, não é possível saber se a totalidade dos cidadãos teria alguma vez acesso à palavra escrita, num mundo em que a oralidade nunca deixou de imperar).

É claro, portanto, que Jaeger, ao estudar o conceito de paidéia, deixou de lado muita coisa, (e nem poderia dar conta): não narrou os elementos perturbadores da ordem na voz dos rapsodos, bardos (também chamados aedo), poetas, sofistas etc., provocadores do desenvolvimento da filosofia política, estimuladores da polêmica, desorganizadores do ordenamento interno das faculdades intelectu-ais e afetivas da época, etc. etc., por exemplo, a retórica marginal dos "malditos" que afetaram o trabalho, limitaram a autonomia da razão e promoveram as pai-xões e o dissenso... Subvertiam já a invenção futura de um platonismo? Torna-ram-se assim na época não-necessários (mas também não-desnecessários, su-pérfluos, talvez) para a história de um acidente, diria Garaudy, chamado Ocidente? Nesse sentido, uma interrogação apresentada por Santos deixa-nos inquieto e perplexo:

Que razões terão levado os Gregos, de entre tantas mensagens saídas de um passado tumultuoso e obscuro, a escolher os poemas de Homero para seu primeiro registro escritural? Seja como for, o lançamento por escrito destas canções de giesta ? por Homero? ? assemelha-se à súbita imobiliza-ção de uma formidável torrente de inspiração, como um rio gelado que pare-ce ainda e sempre correr para a foz.

E, assim, podemos concluir que séculos de informação acumulados na memória coletiva convertem-se gradualmente em temas apaixonantes de reflexão para uma linhagem de intelectuais, que gradualmente emergem do ou permanecem no anonimato. Mas o essencial foi feito e o resultado geral do livro de Jaeger é tão agradável, apesar de suas grandes lacunas, que nos permite perdoá-lhe; e a ação educativa dos gregos sobre todos os séculos parece ser inequívoca e facilmente reconhecível. Basta observar o que disseram Barbara Cassin e Nicole Loraux, no Prefácio de "Gregos, Bárbaros, Estrangeiros: a Cidade e seus Outros", que a cidade grega, apesar de ter funcionado à custa de exclusões,

é o modelo por excelência, origem e paradigma, da democracia. É dela que retiramos as exigências constituídas de toda política moderna, tanto no norte como no sul: a liberdade e a igualdade (pelo menos a mais bela das liberda-des e das igualdades: perante a fala, o pensamento, a educação, a lei etc.), com seus procedimentos de regulação essenciais como os do voto e do tri-bunal.

Por que tamanha afirmação? É evidente que estamos em face de uma falsa projeção do Pequeno (a polis grega) sobre o Grande (a megalópolis moderna), ou seja, que Cassin-Loraux ao considerarem a cidade grega, uma sociedade Pequena e Agrária, como o lugar de onde "retiramos as exigências constituídas de toda política moderna" não consideraram que talvez ela não passe de uma prótese-simbólica, ou seja, não se apresentam dispostas a aceitar a tese de Peter Sloterdjik, de que na sociedade contemporânea "a política do industrialismo" (que lhe é própria se destacou e) "se destaca, sobretudo por não ter ela mesma conseguido inicialmente entender sua própria modernidade ? motivo por que por muito tempo fez perdurar" (e ainda o faz) "as categorias políticas da era agrária (e política) nas épocas pós-agrária, transclássica e hiperpolítica", daí certas transposições históricas poderem ainda ocorrer, podemos concluir, favorecendo um certo irracionalismo e o imperialismo. E sem dúvida, diante do fato histórico de "a cidade grega" ter funcionado à custa de exclusões (já que o demos era uma pequena minoria que excluía as mulheres, os estrangeiros e os membros dos Estados sujeitados no Império ateniense do século V, por exemplos), e, além disso, a liberdade dos cidadãos só se ter tornado estruturalmente possível por meio da escravidão é que, inegavelmente, Cassin-Loreaux não deixam de ter razão: "é da cidade grega que retiramos as exigências constituídas de toda política moderna" e talvez aí esteja "o modelo por excelência, a origem e o paradigma" de todos os atrasos malignos da sociedade Ocidental, quem sabe? É certo que não é o fato das exclusões que nos diferenciam (o que é o trabalhador assalariado senão um escravo do capital?), mas também não nos permite resolver antigas questões, (por exemplo: o que permite e autoriza a persistência da validade na sociedade humana atual da antiga relação dialética entre o Senhor e o Escravo?), e nem condena historicamente a cidade grega. A própria Nicole Loraux, em sua defesa, é que nos obriga a lembrar de uma página de Moses Finley, ao citá-la, que diz:

É fácil mostrar os pontos negativos em uma sociedade morta; é mais difícil e mais enriquecedor procurar compreender o que ela tentou fazer, como se empenhou nisso, até que ponto foi bem-sucedida ou fracassou, e por quê. Não se podem misturar as duas abordagens sem correr o risco, e mesmo mais do que o risco, de falhar tanto em uma quanto na outra. Em Atenas, assim como em Roma, o corpo cívico era uma minoria que explorava uma grande quantidade de homens, livres ou escravos. Mas não é por isso menos necessário que se explique por que as duas cidades tiveram sucesso no plano prático, e foram politicamente estáveis durante longos períodos; por que houve, nos dois casos, uma tensão constante entre os dirigentes da elite e o povo, especialmente o campesinato; por que, apesar dessas seme-lhanças, uma das duas mantém uma forte participação popular e mesmo a amplia ao passo que a outra restringe constantemente essa participação a limites estreitos. É permitido condenar do fundo do coração uma dessas ci-dades, ou as duas; isso não faz desaparecer o problema da explicação.

Com efeito, talvez Cassin-Loraux não deixam de ter razão ao reconhecer a cidade grega como "modelo por excelência, origem e paradigma, da democracia", porque, inversamente, também é fácil apontar os pontos positivos de uma cidade morta cuja morte não se está disposto a aceitar (o que não deixa de ser uma forma de propagar o "fim da história" ou o "eterno retorno"). Mesmo porque, não vemos como tanto os dilemas encontrados, quanto as respostas (fundamentadas nos padrões encontrados) oferecidas pelo conhecimento cultural dos elementos dinâmicos constitutivos da cidade grega, poderiam servir de experiências para os dilemas ou padrões da atual cidade capitalista.

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Se quisermos, no entanto, compreender a cidade grega, uma indicação do rumo a tomar é dada por Aristóteles, que a experimentou, e talvez seja útil. Nos capítu-los XI e XII, do livro VII, da "Política", Aristóteles observa, entre outras coisas, que sendo a lei uma certa ordem e a "boa legislação necessariamente uma boa ordem", uma população que atinge uma cifra por demais elevada não se pode prestar a uma ordem. E assim concluía que "a cidade principal" cuja população não deve crescer indefinidamente, sob pena de tornar-se ingovernável, deve ser localizada em "situação favorável", quer em relação ao mar, quer em relação à terra. Considerando o pensar e a experiência de Aristóteles, portanto, temos que considerarmos que a cidade grega era pensada como "um Estado bem pequeno" tanto como "coexistência de um pequeno número de habitantes". Neste sentido, informa-nos Glotz que Esparta, quando à Lacônia acrescentou a Messênia, foi a primeira potência da Grécia, uma vez que passou a comandar uma região de 8.400 km², dois quinto do Peloponeso. Atenas, essa cidade que ocupa lugar de destaque na história da civilização, não possuía, na época da sua maior expansão, vale dizer, no período em que contava com a ilha de Salamina e o distrito de Oropes, senão um domínio de 2.650 km². Outros números: depois da anexação de Gela, Acras, Casmenas e Camerino, o território de Siracusa alcançou 4.700 km²; Argos, senhora de Cleonas, dispunha ao todo de 1.400 km²; Corinto, 880; Sícion, de 360; Flionte, de 180. Informa-nos ainda Glotz:

"No século V, a confederação dos beócios estende-se por 2.580 km², mil dos quais pertencem a Tebas, enquanto o resto se distribui entre 12 cidades, à razão de, em média, 130 km². Nos 1. 615 km² da Fócida, abrigam-se 22 soberanias. Na Ásia Menor, onde entretanto não falta espaço, as cidades jônias têm entre 200 e 1.500 km²; as cidades eólias, tão-somente uma cen-tena".

Em resumo, evitando mais números e citações, a cidade-grega é um Estado terri-torialmente bem pequeno. Quanto ao número de seus habitantes, -- seguimos com as informações colhidas em Glotz, para Hipódamo de Mileto a cidade ideal devia ter 10 mil cidadãos. Platão quer que o número de cidadãos seja bastante grande para dar à cidade meios de defender-se contra os seus vizinhos ou de socorrê-los sempre que necessário, mas bastante restrito para que possam conhecer-se uns aos outros e escolher os magistrados com conhecimento de causa: esse número necessário e suficiente, fixa-o, seguindo o método pitagórico, em 1x 2x 3x 4x 5x 6x 7 = 5040. Aristóteles vê no número de cidadãos e na extensão do território as matérias-primas de que o estadista e o legislador necessitam para os seus trabalhos: elas devem ter as qualidades necessárias e estar prontas para que a cidade possa cumprir a tarefa que lhe é atribuída. Daí por que não se deve confundir a grande cidade com a cidade populosa. A experiência grega prova que é difícil, e talvez impossível, organizar bem um Estado com excesso de população: como nele aplicar leis justas e criar o império da ordem? Existe, de fato, uma medida de grandeza tanto para a cidade como para qualquer coisa. Se a cidade não se mantiver dentro dessa medida, não alcançará o fim que lhe é próprio. Uma sociedade de cem mil habitantes já não é uma cidade: sobra-lhe o que falta a uma outra sociedade de apenas 10 membros; portanto, para se pensar a cidade grega como "modelo por excelência, origem e paradigma, da democracia" devemos nos perguntar, cada um a si mesmo, como coexisto, ou seja, parafraseando Sloterdijk,

"Como coexisto com um bilhão e 200 milhões de chineses? A essa pergunta toda resposta é permitida, mas não mais a antiga máxima do pequeno mun-do: "Esqueça os chineses, esqueça todos aqueles que são demais". A frase grandiosa de Stephan George: "O vosso número já é um delito" expressa a tentação, a partir de cuja superação surgem os pan-atletas políticos de a-manhã".

E podemos, ainda com Sloterdijk, concluir:

"É evidente que, numa época em que a forma do Grande é mudada, patolo-gias de filiação de todo tipo tornam-se epidêmicas".

Só podemos conceber a cidade grega como "modelo por excelência, origem e paradigma, da democracia", portanto, se a pensarmos fundamentalmente como vingança do local e do individual sobre a atual hiperpolítica, como quando "grandes regiões se protegerão com greves latentes e manifestas do jugo universal do capitalismo globalizado". Ora, se o homem sempre esteve e está condenado a viver em abrigos abstratos, é inegável que, diz-nos Sloterdijk,

"A abstração do Grande torna graves os traços do Estado; já os gregos dizi-am que Péricles, depois de ter tomado o poder, nunca mais riu. Mas se a política (ou a justiça) sempre significou um sistema de distribuição das cru-eldades a partir de um centro de abstração (governo),então devemos temer coisas graves para os compradores finais das cruéis distribuições. Não falo aqui de pobreza, estreiteza local e humores senhoris, de exploração, violação e semelhantes, embora a literatura das grandes civilizações tenha transmitido de todas as regiões do mundo ladainhas realistas sobre isso. O que no momento desejo apontar é a catástrofe antropológica da grande civilização, que cinde a evolução do homo sapiens numa linha de altas chances e noutra de empobrecimento. A "humanidade" se rompe aqui em grupos que se intensificam através de tensões, e grupos que ficam estagnados no so-frimento; a dor, na grande civilização, adquire um terrível rosto duplo; ela age em alguns como estimuladora, em outros como obstruidora; para a minoria, a carência tem efeito educador; para a maioria, age como destruidora de almas".

E somente assim no "mundo sem forma e na sociedade sem identidade são maciçamente tramados retomadas, renascimentos e reconscientizações de valo-res antigos". Então, POR QUE PAIDÉIA ?. Paidéia, diz-nos Jaeger na "Introdu-ção" de seu livro, "como outros conceitos de grande amplitude (por exemplo, os de filosofia ou cultura), resiste a deixar-se encerrar numa fórmula abstrata", é um nome grego para exprimir uma coisa grega, mas, segundo Jaeger,

"Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por paidéia".

E observa:

"Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de em-pregá-los todos de uma só vez".

Por essa razão pareceu-nos que POR QUE PAIDÉIA? é o título ideal para deno-minar um trabalho que se propõe, justamente, a ter como escopo todos os campos do saber abrangidos pelo conceito global de paidéia ao colocar a questão de pensar a cidade. Sendo Paidéia, portanto, o conceito que põe em evidência o processo histórico objetivo e subjetivo, ou seja, material e espiritual de evolução da Grécia ? o desenvolvimento do Estado, da sociedade, da literatura, da religião, da cultura, da filosofia, da pedagogia e do direito gregos ?, torna-se evidente e incontestável, dizem, que "o conhecimento essencial da formação grega constitui um fundamento indispensável para todo conhecimento ou intento educacional básico" para que Auschewitz não se repita. Acreditamos nisso! Tornam-se evidente e incontestável demais, porém, que todo esse conhecimento só foi possível desenvolver-se a partir da cidade grega. Com efeito, um dos primeiros esclarecimentos que se impõe é: o que é a cidade grega?

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De uma forma geral, segundo Gustave Glotz, em seu belo livro A Cidade Grega, "as condições geográficas contribuíram fortemente para dar-lhe a sua feição histórica". Nesse sentido, explica Glotz:

"Recortada pelo contínuo embate entre o mar e a montanha, a Grécia apre-senta em cada palmo do seu território estreitas depressões cercadas de montanhas cujo acesso só é possível pelo litoral. Formam-se assim inúmeros cantões, cada um dos quais é o receptáculo natural de uma pequena sociedade. A fragmentação física determina, ou pelo menos facilita a frag-mentação política. Para cada compartimento existe uma nacionalidade dis-tinta. Imaginem-se, num vale fechado, pastagens banhadas por riachos, bosques sobre as colinas, pradarias, vinhedos e olivais que dêem para ali-mentar algumas dezenas de milhares de habitantes, raramente mais de cem mil, e, mais adiante, um outeiro que pode servir de refúgio em caso de ata-que e um porto para o contato com o exterior, e ter-se-á uma idéia do que é para o grego um Estado autônomo e soberano".

Era, portanto, nesse ambiente que a cidade grega se configurava materialmente em função de seus mitos, crenças e valores religiosos. Na cidade grega, a circula-ção da riqueza poética dos mitos, das lendas, dos heróis, das filosofias se fazia paralela à circulação da riqueza material, das mercadorias, e por isso a cidade historicamente sempre existiu em função de uma circulação de entradas e saídas cuja incumbência era fazer passar fluxos que a transformavam em uma caixa de ressonância, que fazia ressoar todos os seus elementos (em vez de fazê-los fugir), por mais heterogêneos que sejam, históricos, geográficos, étnicos, lingüisticos, morais, econômicos, tecnológicos, culturais. É por essa razão que, olhando para a cidade grega, surpreende-nos a riqueza de sua mitologia, arquitetura, literatura, filosofia, a fertilidade de sua sociedade... Em todos os seus aspectos, ela se apresenta como um reservatório inesgotável de temas, detalhes, movimentos, devires, associações, surpresas, personagens, um vasto campo de deambulação e errância, de estômago e fantasia. Nesse sentido, quando pomos os olhos em sua História e nela tomamos pé, deslumbramo-nos, nossos sentimentos como nossa razão são seduzidos mesmo à revelia, e tanto, que o que Freud disse sobre Paris vem-nos à mente primeiro em relação à cidade grega e, só depois a Paris ou a outra cidade qualquer. Ou seja, a seguinte frase de Freud:

"Também Paris, por muitos anos, fora objeto de meus desejos; e o senti-mento de felicidade com que pus o pé, pela primeira vez, nas ruas, parecia uma garantia de que outros desejos seriam realizados".

A cidade grega, portanto, se apresenta assim, como "modelo por excelência, ori-gem e paradigma", não como uma imagem do pensamento, mas como uma ima-gem do inconsciente, do desejo, com suas camadas superpostas, com seus ras-tros e ruínas, seus esqueletos e fantasmas. Ou seja, em sua estrutura material, a cidade (a grega, mas também a nossa) não deveria ser um aglomerado caótico de casas e de edifícios, de ruas e praças, mas um conjunto idealmente ordenado, cujas ruas confluiriam para as praças principais, onde se ergueriam os grandes edifícios destinados ao culto religioso e ao exercício do poder político. A cidade grega é, portanto, o "modelo por excelência, a origem e o paradigma, da democra-cia", por isso nossas utopias são velhas e rotas, nossas esperanças são vãs e a-bortadas e a Grécia é a miragem e a fantasmagoria de nossa cidade subjetiva moderna e líquida. Mesmo porque, conforme a bela análise de Walter Benjamin, se o homem habita uma cidade real, ele é, ao mesmo tempo, habitado por uma cidade de sonho, ou seja, como observa Peter Pál Pelbart,

"A realidade onírica remete aqui ao sonho coletivo, ao sonho do coletivo, ao desejo do corpo coletivo, suas utopias e esperanças abortadas, as miragens e fantasmagorias que o assediam. Os trajetos reais dos personagens na ci-dade remetem aos trajetos do sonho e do coletivo, como se houvesse duas cidades superpostas, uma real, outra imaginária, e a apologia de um trânsito metódico entre elas".

Por isso nosso trabalho, atendendo a um imperativo provocativo de servir de texto reflexivo sobre a Cidade, se denomina POR QUE PAIDÉIA? Porque paidéia, co-mo um processo dialético de formação cultural não deixa originalmente de ser isso: um sonho coletivo, um sonho do coletivo, o desejo do corpo coletivo, suas utopias, suas esperanças, mas, também, suas miragens, suas fantasmagorias... Mesmo porque, como diz-nos Sloterdijk,

"A invenção universal dos cultos dos antepassados abre caminho para um pensamento proto-metafísico ? como se por toda parte antepassados mortos fossem aqueles que a princípio chamam a pensar ? pois, como ensinou Heidegger, pensar significa agradecer (aos mortos, embora não o tenha ex-pressado claramente). Mas dão ainda mais a pensar, desde o início, as vidas humanas que estão por vir, nas quais perdura a horda essencial ? o que acarreta que pensar "no fundo" acaba sendo um mecenato em prol da vida futura".

Afinal, lembra-nos Lewis Mumford, as primeiras cidades de que se tem registro foram lugares de encontro para reverenciar os mortos, de modo que (numa metá-fora perfeita) as cidades dos mortos antecedem a cidade dos vivos. Mesmo por-que, como diria Derrida, "nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível, pensável e justa, sem reconhecer em seu princípio o respei-to por esses outros que não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí, presentemente vivos, quer já estejam mortos, quer ainda não tenham nasci-do" . Com efeito, é na cidade que aprendemos a viver, e paidéia é justamente isso, um mecenato em prol da vida e da cidade onde a vida torna-se humanidade. Portanto, por tudo isso, POR QUE PAIDÉIA? E mais, Fustel de Coulanges, em A Cidade Antiga, ensina-nos que a fundação da cidade era um ato religioso e que a religião presidia toda a vida da cidade, as cerimônias de paz e as solenidades de guerra. Essa era a razão pela qual se diz que a cidade era religiosa e a religião cívica. Vemos, então, Atenas dominada pela Acrópole e Roma pelos templos de Vesta e Juno etc., e isso quer dizer que, em primeiro lugar, os deuses não eram entidades remotas e distantes, invisíveis e problemáticas, mas entidades próximas e familiares, concebidas à imagem e semelhança dos homens, de cuja vida participavam e na qual interferiam constantemente (O mal que tal concepção cosmológica e antropológica irá causar no desenvolver de toda sociedade humana ainda está para ser investigado e narrado com coragem). Se considerarmos ainda que a estrutura da cidade, a sua causa formal, em linguagem aristotélica, estava em função de sua razão de ser, de sua causa final, ou seja, o telos da cidade, ou da comunidade política, era a felicidade humana, a eudaimonia, que se alcança pelo exercício da virtude. Basta ver que, em Demócrito, a eudaimonia não consistia nos bens externos; em Platão, só o homem justo é feliz e a melhor vida é a vida feliz; em Aristóteles, a eudaimonia é o supremo bem prático para os homens, como con-seqüência, a cidade existe para tornar possível o exercício da virtude e a realiza-ção da felicidade. Em sua estrutura material, portanto, a cidade não poderia ser um aglomerado caótico de casas e de edifícios, de ruas e de praças, mas um con-junto ordenado, cujas ruas confluíam para as praças principais, onde se erguiam os grandes edifícios destinados ao culto religioso e ao exercício do poder político. E mais, para Aristóteles, a cidade se corromperia, tornando-se incapaz de realizar o fim em vista do qual existia, se a Praça da Liberdade, ou a ágora política, se convertesse na Praça do Comércio, ou na ágora das mercadorias, ou, com outras palavras, se, no governo da cidade, os mercadores substituíssem os políticos e os magistrados. "Revela-se", portanto, que as cidades gregas não eram construídas por mercadores e comerciantes, banqueiros e agiotas, preocupados apenas com o negócio e o lucro, mas por representantes do poder espiritual e temporal, empe-nhados em edificar a cidade como obra de arte, como instância cultural e pedago-gicamente suprema, capaz de contribuir para a segurança, a formação e a educa-ção de seus habitantes.

Nesse sentido, sendo o político a arte do possível, Peter Pál Pelbart nos lembra de um belo livro sobre a cidade, o de Ítalo Calvino, "A Cidade invisível", que "perce-beu nitidamente essa relação entre a cidade e o possível". Ficamos então saben-do que "Marco Polo descreve ao imperador tártaro Kublai Khan a sensação que teve ao visitar Dorotéia, uma das inúmeras cidades que conheceu ao longo de suas viagens: ?Aquela manhã em Dorotéia senti que não havia bem que não pu-desse esperar da vida?." Tal sentimento, talvez, seja sentido ainda, mas (apenas porque bem tem a conotação de riqueza material ou porque o poder espiritual sempre contrabandeou "estados de ânimo, estados de graça, elegias".), quando nos situamos diante de uma obra da cidade medieval pelo que podemos observar nos resíduos de sua existência nos seus prédios, que ainda dominam por suas proporções gigantescas. São as praças dominadas por igrejas, catedrais, basíli-cas, ou os palácios residenciais dos reis e imperadores ou sede do poder político. Por isso uma certa, indefinível e indefectível nostalgia nos faz ficar perplexos, em Londres, diante da exuberante beleza da catedral de Westminster ou do palácio de Buckingham; em Paris, diante da catedral de Notre Dame ou do palácio do Louvre; em Roma, diante da basílica de São Pedro ou do palácio do Quirinal. Po-demos citar ainda milhares de cidades como Reims, Rouen, Chartres, Colônia em que vemos se erguerem acima dos casarios circundantes, as catedrais góticas, que assinalam o apogeu da arquitetura gótica, marco da cidade me-dieval. Mas o fato é que raramente hoje, uma cidade como Nova York ou São Paulo pode nos transmitir a sensação reconfortante experimentada por Marco Polo ao visitar Dorotéia. Assim, observa Pelbart:

Raramente uma cidade hoje nos dá essa sensação, que às vezes buscamos em uma mulher, num livro, numa festa, embora isso se revele a cada dia mais raro: que ela evoque um mundo possível e ainda desconhecido. Não é a toa que todas as cidades descritas por Marco Polo levam nomes de mu-lheres, Zoé, Zemrude, Olívia, etc.. Kublai Khan acaba descobrindo, ao longo do tempo, o que Marco Polo vai buscar nessas cidades invisíveis, o que ele traz delas: ..."confesse o que você contrabandeia: estados de ânimo, estados de graça, elegias". Talvez é o que, no mais íntimo, busquemos sempre numa cidade, estados de ânimo, estados de graça, elegias. Mas o Imperador também quer saber qual cidade nos espera no futuro, Utopia ou Babilônia, a Cidade do Sol ou aquela do Admirável Mundo Novo, e lamenta que no final de tudo se insinua "a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos surge num vórtice cada vez mais estreito". Ao que Marco Polo lhe responde: "O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos juntos". Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção aprendizagens contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

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Paradoxalmente, porém, aquilo que não é inferno, Deus, por exemplo, é o que mais nos faz sofrer por suas exigências superiores e quantas vezes por sua ce-gueira absoluta (não seria por essa razão que Cristo se apresentou como o guia e a salvação?). Mais fácil, portanto, é o primeiro caminho, que tem o poder de con-solar e cegar. Ora, a Cidade, se é, não deveria ser um inferno, pois o fato insofis-mável é que, sendo a cidade suprema instância pedagógica e cultural, os Gregos tinham razão: como seria possível educar os seres humanos, nos estreitos limites do ginásio, da academia ou do liceu, se a cidade, desordenada e caótica, em que vivem os educandos, deseducá-los-ia, oferendo-lhes o espetáculo constante da falta de unidade, de harmonia, de proporção, de medida, de equilíbrio, o espetáculo constante da negação da beleza e da ética? Se a educação consiste em formar, em imprimir na matéria humanizável a forma do humano, como pretender formar o ser humano fazendo-o habitar não o cosmo, mas o caos? Segundo Corbisier, os gregos ensinaram, entre outras coisas, e de uma vez por todas, que se educar não é conviver com a família e freqüentar o ginásio, a academia e o liceu, mas viver na cidade. A cidade é, pois, a principal, a suprema instância pedagógica, e se a cidade, em lugar de ser unidade, ordem, harmonia, proporção e equilíbrio, etc., for caos e não cosmo, ela se converterá na negação da cultura e da pedagogia, contribuindo não para formar, quer dizer, para humanizar o homem, mas, ao contrário, para deformá-lo ou desumanizá-lo. Mas o fato de que, alerta-nos Sloterdijk, "os políticos em exercício estejam tão raramente preparados para os desafios da nova situação ? intelectualmente quase nunca, moralmente às vezes, pragmaticamente menos do que mais --, constitui uma parte do mal-estar maciço, cada vez mais agudo em relação à classe política", constantemente flagrada em meio a fraudes, abusos de poder e irregularidades, e raramente revelam-se à altura dos desafios globais que urge enfrentar, e que devemos enfrentar e vencer e isso vale ainda mais para os não políticos. ? Desesperador é que vencer ou perecer revela-se cada dia mais e mais como as únicas alternativas finais da história de uma cidade em nossa contemporaneidade. ? E o que é pior: não sabemos (o povo, enquanto eleitores) escolher o tipo humano que seria necessário para preencher os espaços vazios e que treinamentos devem ser desenvolvidos para que seja reduzida a enorme lacuna entre a forma mundial global e as psiques locais. Como ensinar isso? Tudo isso nos instala no caos e não no cosmo. E assim é que cidades como Londres, Paris, Roma etc., nos parecem humanas, e Nova York, São Paulo etc., nos parecem desumanas. E por quê? Psicologia à parte, com a Revolução Francesa, como é sabido, a burguesia tomou o poder, instaurando a democracia liberal e o capitalismo econômico. Assim, diz-nos Corbisier:

"A vitória da burguesia significa a ascensão ao poder de mercadores e co-merciantes, agiotas e banqueiros, representantes, não do poder espiritual e político, mas do poder econômico e financeiro. E esta é a razão pela qual o poder espiritual e político são então substituídos pelo poder do dinheiro. E essa é a substância de toda nossa história moderna. É verdade, o capi-talismo também construiu cidades, não mais em função de valores religio-sos, estéticos e políticos, mas em função de valores econômicos. E, como o capitalismo é essencialmente individualista, anti-comunitário, construiu cidades à sua imagem e semelhança, em função dos interesses dos em-presários privados, do lucro e do dinheiro, como valores supremos. A grande cidade capitalista, construída sob o signo do lucro e do dinheiro, nada mais tem a ver com a cidade tal como a imaginaram os grandes sá-bios da Antigüidade, pois não existe para permitir aos seus habitantes o exercício da virtude, a conquista da felicidade, e não passa do cenário em que se trava a luta implacável pela sobrevivência, em que todos são inimi-gos de todos, em que o homem se torna o lobo do homem, como dizia Hobbes, em que a prostituição, a violência, o vício e o crime alcançam ín-dices mais elevados. E por significativa coincidência, nessas cidades, os maiores edifícios, mais imponentes e luxuosos, não são as igrejas e as se-des do poder político, mas os bancos, onde se abriga, nos cofres subterrâ-neos, o deus do sistema, o dinheiro. Verificamos, assim, que a cidade é i-numana, ou desumana, porque é capitalista, porque o seu deus é o dinhei-ro, não passando de ingenuidade pretender humanizá-la conservando o sistema que é a causa da sua desumanização".

A experiência da cidade grega morreu, é verdade. E o atletismo de estado da glo-balidade, parafraseando Sloterdijk, ainda não foi inscrito. E o que é mais grave, não há preparativos para o mesmo. Se os há, diz-nos Sloterdijk, há-os então so-mente na forma de treinamentos selvagens e autodidatas. E arremata:

"Aqui são exigidas consciências que se estabelecem firmemente no abismo do paradoxo sobre a espécie. Profissão: político. Residência principal: opa-cidade. Programa: pertencer-se com aqueles com os quais é difícil perten-cer-se. Moral: pequenos trabalhos de desafios. Paixão: ter uma relação com a ausência de relação. Evolução: auto-recrutamento a partir de conhecimen-tos, que se transforma em iniciativa".

Eis, portanto, em resumo perfeito, a descrição de como podemos viver bem em um inferno. A cidade grega morreu, é verdade. Deixou-nos, no entanto, o gesto desesperado, junto com seu corpo embalsamado, como último e derradeiro episódio pedagógico da cidade grega que a pesquisa histórica resgatou e a memória fixou para sempre, como conhecimento, a participação de certo Dióge-nes, -- de que nos fala José Américo Motta Pessanha -- do século II d.C., que perpetuou no muro de sua cidade, Enoanda, na Capadócia (Turquia Central) uma mensagem filosófica constituída por teses fundamentais da ética de Epicuro, filósofo grego que viveu cerca de quinhentos anos antes (século III a.C.), evidenciando, assim, qual era o verdadeiro papel e o próprio sentido da cidade grega. E foi assim, movido pelo Amor aos homens, que Diógenes, esse cidadão de Enoanda e professor em Rodes, procurou partilhar indiscriminadamente os ensinamentos do mestre com qualquer um que passasse diante da muralha de Enoanda. E lá estavam os ensinamentos dormindo através dos séculos, em Enoanda, naquelas pedras contendo curiosas inscrições, até que foram descobertas, no final do século XIX, por arqueólogos franceses. Só que no muro de Enoanda, esclarece-nos Motta Pessanha, as teses fundamentais de Epicuro aparecem nas inscrições sob a forma de tetraphármakon, quádruplo remédio composto por ingredientes das Doutrinas principais de Epicuro. Ei-lo:

Não há o que temer quanto aos deuses.
Não há nada a temer quanto à morte.
Pode-se alcançar a felicidade.
Pode-se suportar a dor.

Assim, entretanto, justifica-se Diógenes, face a realidade da miséria e da dor hu-manas, na parte inicial da inscrição:

"Se uma pessoa, ou duas, ou três, ou quatro, ou o número que queiram, es-tiver em aflição, e se eu fosse chamado a ajudá-la, faria tudo que estivesse em meu poder para oferecer meu melhor conselho. Hoje, a maioria dos ho-mens está doente, como que de uma epidemia, em função das falsas cren-ças a respeito do mundo, e o mal se agrava porque, por imitação, transmitem o mal uns aos outros, como carneiros. Além disso, é justo levar socorro àqueles que nos sucederão. Eles também são nossos, embora ainda não tenham nascido. O amor aos homens nos leva a ajudar os estrangeiros que venham a passar por aqui. Como a boa homenagem do livro já foi difundida, resolvi utilizar esta muralha para expor em público o remédio da humanida-de".

Quer dizer, doente, a humanidade transformada em rebanho precisa de tratamento. E parafraseando Motta Pesanha, a fonte do mal, que se alastra pelo contágio do mimetismo, está detectada: as falsas crenças. As falsas crenças i-mobilizam, recolhem as antenas da inteligência. Sim, somos todos nós como um caracol, e o símbolo da inteligência, como nos propõe Adorno/Horkheimer, é a antena do caracol "com a visão tateante", graças à qual, a acreditar em Mefistófeles (personagem de "O Fausto", de Goethe), ele é também capaz de cheirar. Diante de um obstáculo, a antena é imediatamente retirada para o abrigo protetor do corpo; ele se identifica novamente com o todo e só muito hesitantemente ousará sair de novo como um órgão independente. Se o perigo ainda estiver presente, ela desaparecerá de novo, e a distância até a repetição da tentativa aumentará. Com isso, queremos dizer que, em seus começos a vida intelectual é infinitamente delicada. O sentido do caracol depende dos músculos, e os músculos ficam frouxos quando se prejudica seu funcionamento. O corpo é paralisado pelo sofrimento físico ou pela atrofia muscular; o espírito, pelo medo, pelo desespero, pela dor, pela angústia. Quantas coisas podemos apreender simplesmente observando o caracol? Quantas? Vejamos! Em primeiro lugar, que não nos podemos esquecer de que devemos o que somos a nossa maior ou menor liberdade; a história da existência humana mostra que, outrora, nossas antenas foram dirigidas a novas e inéditas direções e não foram retiradas. Assim, toda burrice parcial de um povo ou de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar. A conclusão inevitável é que a burrice é uma cicatriz. Uma cicatriz profunda aberta na alma de um povo ou de uma pessoa. Ela pode-se referir a um tipo de desempenho entre outros, ou a todos, práticos, esportivos ou intelectuais. Com efeito, qualquer violência sofrida por um povo ou por uma pessoa transforma a boa vontade em má. E não apenas a pergunta proibida, como também a resposta preterida, mas também a imitação do outro, a brincadeira arriscada, a humilhação etc. podem provocar essas cicatrizes. Felizmente, uma vez ferido o homem, o que move a ação curativa é o generoso sentimento de philia (amizade) que, além de sustentar intrinsecamente a filosofia, transborda ? enquanto amor à sabedoria ? em amor à humanidade. E se falta o amor estamos todos perdidos porque a ação do médico-filósofo ou do filósofo-médico ? ressaltada desde Empédocles e Sócrates/Platão ? se faz por amor à sabedoria e por isso não conhece, na linhagem epicurista, qualquer tipo de restrição quanto à escolha do paciente-discípulo: todos têm direito à cura, sem limitações sociais, econômicas, étnicas. Afinal, observa-nos Sloterdijk:

"Política é a arte de organizar laços ou forças de ligação que abrangem grandes grupos de até milhões de membros, e para além disso numa esfera de elementos comuns ? seja o elemento comum nefasto do sofrimento sob a tirania ou o elemento comum saudável de uma cooperação entre pessoas competentes na democracia".

Por isso, diz-nos Motta Pessanha, a mais ampla publicidade deve ser dada ao tratamento: e eis aí a necessidade da democracia, da liberdade, da igualdade, já que o remédio deve ser oferecido a qualquer um, a qualquer passante, mesmo aos estrangeiros, pois seu valor e benefício são universais, acima das contingên-cias de espaço e tempo. E sua preservação em pedra é justamente para que os pósteros ? que também são nossos ? dele possam usufruir. Essa é a função de toda Pedagogia, de toda Cultura: a preservação em pedra do que de melhor pode servir-se a humanidade. Entendemos, portanto, que é preciso fazer com que dentro dos muros da cidade contemporânea se desenvolvam outras medidas, talhadas na dimensão e na grandeza das transformações, e que devem ser implementadas para tornar possível uma nova estação da vida. Por referência a esse projeto aristotélico e grego, que também é o nosso, a felicidade humana deve ser a grande obra de uma cidade. E porque podemos terminar citando Sloterdijk:

a filosofia grega é, entre todas as das grandes civilizações, o "instituto" mais claramente motivado pelo espírito do Grande ? seus co-participantes estão convencidos de que a melhor vida, sobretudo para homens, consiste em tro-car com amigos todos os dias algumas palavras sobre as grandes coisas ? ta megala.

Parafraseando Pelbart podemos dizer, portanto, que com a colaboração de todos os Professores e Intelectuais objetivamos com POR QUE PAIDÉIA? irrigar, primei-ro com conversas e debates a nossa cidade com territórios potenciais, instaurar campos que favoreçam processos abertos, que estimulem as hibridações, as intensificações e diversificações, as redistribuições, a liberdade de todas as antenas, apostar na reinvenção do espaço pedagógico da cidade e, para que essa reinvenção tenha um suporte ideológico, urge repensar a questão da Cidade, de um Direito da Cidade na sociedade contemporânea...

Walter Aguiar Valadão