Por que não dar o dízimo?
Por Gustavo Uchôas Guimarães | 06/12/2014 | ReligiãoPor que não dar o dízimo?
Gustavo Uchôas Guimarães
Enquanto as igrejas cristãs (em especial as evangélicas pentecostais e neopentecostais) propagandeiam o valor do dízimo e até mesmo seu caráter de atrair as bênçãos divinas, é preciso levar os membros destas igrejas a refletirem sobre os motivos pelos quais eles poderiam não dar o dízimo. A princípio, uma resposta bíblica simples encerraria o assunto: “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê” (Romanos 10,4; tradução de João Ferreira de Almeida). Se Cristo é o fim da lei (no caso, a de Moisés), então já não precisaríamos praticar nada que estivesse na lei (inclusive o dízimo). Porém, vamos destrinchar um pouco mais e aprofundar nas motivações para não dar o dízimo.
Em primeiro lugar, o que é dízimo? A palavra significa “dez por cento”. Portanto, dízimo é a prática de dar 10% de todos os rendimentos para a igreja onde o fiel congrega sob a alegação de que aquele dinheiro é consagrado a Deus e que, com este gesto, Deus abençoará o fiel dizimista. A primeira referência ao dízimo na Bíblia está em Gênesis 14,20, quando Abraão dá 10% dos despojos de uma guerra ao rei Melquisedec, que invocou sobre Abraão a bênção divina. Na Lei de Moisés, a primeira referência ao dízimo encontra-se em Levítico 27,30-32, que estabelece a quantidade de 10% dos produtos do campo e dos rebanhos como coisas consagradas a Deus. A passagem de Deuteronômio 14,25 aconselha a vender os produtos que seriam dados como dízimo e dar o dinheiro, caso o fiel vivesse muito longe do Santuário[1]. Vemos, a princípio, que o dízimo estabelecido pela Lei de Moisés deveria ser dado em forma de rebanhos e produtos da terra (visto que os hebreus eram agricultores e criadores de animais), e é à luz desta determinação que se deve ler a passagem de Malaquias 3,10-11, que diz: “Trazei todos os dízimos à casa do tesouro [Templo de Jerusalém], para que haja mantimento na minha casa [“mantimento” refere-se a alimentos, portanto frutos da terra e dos rebanhos]... e por causa de vós repreenderei o devorador [gafanhoto[2]], para que não vos consuma o fruto da terra [produto dado como dízimo]” (tradução de João Ferreira de Almeida).
No Novo Testamento, a palavra “dízimo” em nenhum momento aparece como preceito deixado por Jesus ou pelos apóstolos. Todas as menções da palavra são feitas ou como repreensão aos líderes judeus (Mateus 23,23; Lucas 11,42 e 18,12) ou dentro do contexto de explanações que recordavam personagens do Antigo Testamento (Hebreus 7,2-8). Portanto, dar o dízimo não é ordem nem conselho de Jesus e dos apóstolos por ele escolhidos para pregarem o Evangelho. Se aceitarmos o dízimo como prática cristã embasados no Antigo Testamento, também deveríamos aceitar, para não sermos incoerentes, todas as práticas ordenadas pela Lei de Moisés (inclusive apedrejar mulheres adúlteras e não comer carne de porco).
No entanto, há uma prática que, tendo o aval de Jesus Cristo e dos apóstolos, é recomendada aos cristãos de todas as denominações: a oferta. Qual a diferença entre dízimo e oferta? Enquanto o primeiro é obrigatoriamente estabelecido como 10% dos rendimentos (a própria palavra “dízimo” significa isto), a oferta pode variar de acordo com a disposição do coração de quem dá (2Coríntios 9,7[3]), pois não vale a quantidade, mas a alegria e a abertura de coração. O fiel fica desobrigado de dar 10% dos rendimentos sem deixar de se sentir na responsabilidade de contribuir com a Igreja de Cristo[4] em suas necessidades temporais e espirituais. Sobre esta última questão, o Catecismo da Igreja Católica afirma que os fiéis “devem ir ao encontro das necessidades materiais da Igreja, cada um conforme as suas próprias possibilidades” (parágrafo 2043). Esta realidade é tratada à luz do episódio relatado em Lucas 21,1-4, no qual uma viúva dá duas moedas ao tesouro do Templo enquanto muitos ricos davam grandes somas, e Jesus aprova a oferta da mulher como sendo superior a dos outros, pois ela teria dado tudo o que tinha ao passo que os demais davam do que lhes sobrava.
Obviamente, nada impede que um cristão queira dar 10% de seus rendimentos à igreja, porém este cristão não precisa fazê-lo porque o Antigo Testamento manda ou como “moeda de troca” (ele dá o dízimo e Deus dá a bênção), visto que não estamos mais debaixo da Lei de Moisés e sim da soberana Lei de Cristo. A oferta dada (independente do valor ou da porcentagem dos rendimentos) está dentro da pregação da Igreja de Cristo como forma de socorrer os mais pobres (os capítulos 8 e 9 de 2Coríntios abordam esta questão), de manter os pregadores do Evangelho (1Coríntios 9,14) e ajudar a Igreja a se manter neste mundo com seus trabalhos materiais e espirituais.
Referências bibliográficas
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1994.
Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2004.
INSTITUTO CRISTÃO DE PESQUISAS. Bíblia Apologética de Estudo. Jundiaí: ICP, 2011.
SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. A Bíblia Sagrada. São Paulo: SBB, 2005. Tradução de João Ferreira de Almeida.
[1] O local onde ficava a Arca da Aliança e onde os sacerdotes serviam nos cultos a Iahweh.
[2] A palavra “gafanhoto” aparece no lugar de “devorador” na tradução da “Bíblia de Jerusalém” e o sentido de “devorador” como praga de plantações é atestado pela “Bíblia Apologética de Estudo”.
[3] “Cada um contribua segundo propôs no seu coração; não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama ao que dá com alegria” (tradução de João Ferreira de Almeida).
[4] A expressão “Igreja de Cristo” não se refere a nenhuma denominação cristã, mas a todos aqueles que se unem a Cristo e com ele formam um só Corpo (Catecismo da Igreja Católica, parágrafos 787 a 796).