POR QUE É IMPOSSÍVEL NÃO DISCUTIR SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA.

Por Josiane Nazaré Peçanha de Souza | 21/03/2017 | Educação

POR QUE É IMPOSSÍVEL NÃO DISCUTIR SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA.

Josiane Peçanha de Souza

(Especialista em Direitos Humanos, Diversidade e Relações etnico-raciais ou sociais e Mestranda em História pela UERJ)

Quem está no chão da escola, nas unidades de ensino de Niterói, sabem como é impossível acatar esta proibição. Apresentamos abaixo exemplos práticos reais, em todas as etapas, níveis e modalidades da Educação Básica, que expressam, através de vários trabalhos educativos que ocorrem comumente acerca do tema Gênero e Sexualidade, com a exemplificação de várias situações didáticas, que mostram como esta discussão é tão necessária e urgente, fazendo nula e equivocada a proibição da Emenda 98, que foi inserida em nosso Plano Municipal de Educação, como uma iniciativa, em Niterói, do Programa “Escola Sem Partido”¹ , que diz:

A emenda diz:

“Fica proibida a distribuição, utilização, exposição, apresentação, recomendação, indicação e divulgação de livros, publicações, projetos, palestras. Folders, cartazes, filmes, vídeos, faixas, qualquer tipo de material lúdico, didático ou paradidático, físico ou digital, que versem sobre o termo gênero, diversidade sexual e orientação sexual, nos estabelecimentos de ensino de Rede pública municipal do Município de Niterói”

A Discussão na Educação Infantil:

Na Educação Infantil, inúmeros teóricos como Gisela Watskop (2009), Kishimoto (1996),  Luciana Ostetto (2012), Sônia Krammer (2013), Tânia Vasconcellos (2008), Vygotsky (1991) e Wallon (2007), afirmam de modo direto ou indireto, ser a brincadeira um momento educacional primordial  e espaço legítimo, de desenvolvimento global das crianças.

E uma das brincadeiras, mais comuns no cotidiano das escolas é a brincadeira de faz-de-conta ou jogo simbólico, que se distingue, grosso modo, pela interpretação lúdica de papéis sociais pelas crianças. Neste espaço imprescindível de compreensão/reflexão prática, pela criança, de como é organizada a sociedade em que interage, é muito comum que a mesma represente os papéis feminino e masculino, o que é ser mulher e homem, ou o que é ser ‘mãe e pai’, de acordo com a experiência e aprendizado acumulado com suas famílias e em outros espaços de convivência.

Neste momento, como movimento sociocultural de desenvolvimento biopsicossocial da criança, muitas vezes observamos e participamos (quando a criança convida o professor), de brincadeiras de faz-de-conta como a ‘Casinha’: a menina finge que é a ‘mãe’ de uma família em que cria seus filhos sozinha (como a sua) e outra ‘menina’ interpreta a vó, que ajuda a ‘mãe’ a cuidar dos filhos enquanto ela trabalha. Em outra brincadeira vemos uma menina, fazendo o papel de uma mulher solteira, que estuda e trabalha, vive falando ao telefone com o namorado/marido, saindo depois do trabalho com as amigas, para comer uma pizza. Vemos um menino fazendo o papel de ‘pai’, como uma menina, que é a ‘mãe’ e que tem dois ‘filhos’ (bonecos) e que esta trabalha, enquanto o ‘pai’ fica com as crianças, se mostrando um ‘pai ‘amoroso e cuidadoso para com seus ‘filhos’, zeloso com os afazeres da casa e depois saindo para trabalhar, enquanto a ‘mãe’, retorna para cuidar dos filhos também. Vemos uma menina, interpretando o papel de ‘moto-taxista’ e pegando ‘passageiros’ com sua motocicleta (que na verdade, é uma cadeira invertida).

 

1- Programa político-partidário de extrema direita, iniciado em 2003/2004, idealizado por Miguel Nagib, cujo principal defensor no Senado é o pastor evangélico Magno Malta (PR), que procura tornar a discussão unilateral dentro da escola, à partir de apenas uma perspectiva política, retirando da escola a capacidade de potencializar o debate saudável e necessário, pois das várias formas de pensar e ver o mundo. Proibindo a pluralidade de ideias e concepções pedagógicas e a articulação de conhecimentos escolares com as realidades e vivências trazidas pelos alunos, articulação esta fundamental para que os mesmos consigam (re)construir e aprender conhecimentos. Este programa: SILENCIA, INVISIBILIZA E DISCRIMINA, as diferenças existentes em nossa sociedade brasileira e que estão presentes na escola.


 

Nestes espaços lúdicos acima exemplificados, as crianças estão discutindo os papéis femininos e masculinos múltiplos existentes em nossas sociedades, logo refletindo sobre identidades de gênero, experimentados por elas no dia-a-dia de convívio com seus familiares e outros grupos sociais, e ainda estão expressando, construindo e desconstruindo conhecimentos acerca de profissões que são atribuídas à homens e/ou mulheres e ainda, reflete, exterioriza ou representa, tipos de famílias em que os mesmos são criados.

Como proibir perguntas, questionamentos e conflitos que devem ser debatidos com rodas de diálogos sobre respeito as identidades de gênero quando, por exemplo, dentro de uma brincadeira, o menino que é o ‘pai’ bate na menina, que interpreta o papel de ‘mãe’? Quem é professora sabe que, muitas vezes, temos que parar a brincadeira e discutir: que homem não bate em mulher, que devem respeitar as meninas! E ainda mediar diálogos com as famílias sobre o que as crianças andam presenciando ou vendo em seus espaços de formação geral e ajudando com este movimento, a estabelecer laços familiares mais saudáveis para as crianças, dentre outras ações pedagógicas. Agora estamos proibidos de fazer este tipo de intervenção?

A Diversidade da família

Como fazer uma festa apenas para o Dia dos Pais, num grupo de referência, com 95% de crianças que não possuem a figura paterna, que nem mesmo conhecem ou que foram mortos, assassinados em conflitos com o Tráfico de Drogas? Esta realidade é muito comum em escolas com Educação Infantil localizadas em áreas de risco. O que fazer/dizer para a criança que chora, em nosso colo, porque não tem pai, em uma festa assim? Seremos proibidos de fazer o conhecido e corrente “Dia das Famílias na Escola”, para acolher todas as diferenças, todos os tipos de famílias?

Preconceito mata e expulsa da escola

Outro exemplo que comumente ocorre no Ensino Fundamental, 1º a 4º ciclos, são os conflitos ocorridos entre meninos e meninas, homens e mulheres e lgbtts (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais), que muitas vezes se expressam em violências físicas e psicológicas. Muitas vezes são revestidas de ‘Bullying’, que seriam implicâncias das mais variadas formas (zoar, ameaçar, perseguir, humilhar, bater, isolar, usurpar materiais da vítima, difundir fofocas, inclusive com uso das redes sociais – ‘Ciberbullyng’- etc.), que tanto ocorrem entre os meninos ou entre as meninas. Quando é direcionado a LGBTTs se configuram como LGBTTfobia. Esse tipo de violência faz com que, por exemplo, 99% das pessoas trans deixem a escola e acabem recorrendo à prostituição como meio de sobrevivência.

Como o professor ou professora não poderá agir ou se colocar, toda vez que presenciar tais violências? Ele está proibido em discutir com os alunos sobre respeito às diferenças, respeito às mulheres, respeito as LGBTTs (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros)?  Não poderá organizar uma roda de debate para promover o respeito à orientação sexual e a identidade de gênero com a projeção de um filme e/ou com a discussão sobre a Lei Maria da Penha, por exemplo?  Pois é exatamente isto que está na Emenda 98!

Violência contra a mulher também se combate na escola

Os referencias curriculares, tanto à nível nacional, quanto municipal, que orientam a discutir, na abordagem de gênero e sexualidade o combate à violência contra a mulher.

Sabemos que há dados alarmantes em nosso país sobre feminicídio (assassinato de mulheres) acompanhados quase sempre por estupros, morte de LGBTTs e a não discussão sobre estas temáticas, propulsiona o aumento da violência, da evasão escolar e potencializa casos de assassinatos e até de suicídio (pela diferença ser rejeitada, silenciada, invisibilizadas e expulsa  do seio das escolas). Devemos, nós profissionais da Educação, sermos omissos e negligentes a este tipo de desrespeito/violências?  Somos proibidos de garantir à paz? Veja alguns dados divulgados este ano e no ano de 2015:

 

“ONU: Taxa de feminicídios no Brasil é quinta maior do mundo; diretrizes nacionais buscam solução...”

  

“O relatório anual sobre o assassinato de homossexuais, divulgado nesta quinta-feira, 28, pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) - mais antiga entidade do gênero do Brasil - indica que 318 gays foram mortos em 2015 em todo o País. Desse total de vítimas, o GGB diz que 52% são gays, 37% travestis, 16% lésbicas, 10% bissexuais. O número é levemente menor que em 2014 quando, conforme o grupo, foram anotados 326 assassinatos.”

  

“Brasil amarga o preço da intolerância e lidera ranking de violência contra homossexuais.

O país registra uma morte a cada 28 horas.”

 

 

Para tal o professor deverá sem dúvida, lançar mão de inúmeras metodologias e ferramentas pedagógicas para desconstruir a naturalização desta violência em nossa sociedade. Não poderemos mais ter esse tipo de prática pedagógica? Seremos obrigadas a privar a criança de um desenvolvimento biopsicossocial? Não poderemos mais potencializar a construção de uma Educação Cidadâ, que respeita a Diversidade?

Como prevenir Gravidez na Adolescência ?

Outra questão relacionada à sexualidade e ao gênero, que é responsável por parte da evasão escolar é a Gravidez na Adolescência. Estamos proibidos em discutir este assunto? Mesmo quando a situação acontecer entre nossos alunos? Não poderemos ensiná-los a respeitar cada etapa biológica de sua vida, ao fazê-los perceber que o seu corpo e sua mente só está plenamente desenvolvida, a partir dos dezoito anos? Está proibido de ensinar sobre os Órgãos do Aparelho Reprodutor, Masculino e Feminino e como é imprescindível preservar a sua saúde com contraceptivos e outros, inclusive para se proteger em relação às infecções sexualmente transmissíveis? Está proibido discutir que o ato sexual de forma forçosa é estupro ou abuso sexual e deve ser denunciado?  Está proibido o combate à pedofilia que, em alguns casos, os alunos recorrem ajuda aos professores? Como os professores de maneira geral, principalmente os de Ciências, irão discutir sobre isto com os alunos mais velhos do 3º e 4º ciclos e da Educação de Jovens e Adultos, se não pode conversar, discutir nada sobre gênero e sexualidade? Então estamos autorizados a ‘fechar os olhos e cruzar os braços’ para os estímulos à sexualidade precoce, largamente difundidos pela Mídia, principalmente nas novelas? Não poderemos?  Veja alguns dados que mostram como é importante a discussão sobre Gravidez na Adolescência nas Escolas

 

G1, 31/03/2015 07h27 - Atualizado em 31/03/2015 14h39

No Brasil, 75% das adolescentes que têm filhos estão fora da escola

Brasil tinha 309 mil meninas de 15 a 17 anos nessa situação em 2013.
Mais de 257 mil delas não estudam nem trabalham, segundo levantamento


O esforço deste artigo foi demostrar como é impossível não discutir sobre gênero e sexualidade nas unidades de ensino pública municipal de Niterói, com exemplos práticos. De como não é possível “vendar os olhos e cruzar os braços”, sobre a realidade em que estamos imersos, sobre esta necessidade, que se tece de forma dialética, dialógica e democrática com os alunos, principalmente à partir da necessidade e o interesse que eles mesmos apresentam para nós, professoras e professores, frente os desafios e as realidades que enfrentam em suas vidas, frente seus aprendizados tecidos, não apenas dentro das escolas, mas principalmente no convívio com os familiares, com amigos, ao presenciar conhecimentos e saberes fornecidos também pelos meios mediáticos, construindo sócio-histórica e culturalmente, nesta ampla rede de interações, as suas múltiplas identidades que os constituem enquanto sujeitos, com suas diferenças e interseccionalidades étnicas, sexuais, de classe, de gênero, etc, que devem ser respeitadas, principalmente nos tempos e espaços escolares, com o desenvolvimento de uma Educação que emancipa, Cidadã, libertadora, pela Diversidade, Multiculturalista, pois promotora do respeito às diferenças: anti-machista, antirracista e anti-lgbttfóbica. Desobedeçamos!

 

Referenciais bibliográficas:

 

BUSQUETS, M.D. et all. Temas Transversais em educação: bases para uma formação integral. Série Fundamentos. São Paulo: Ática, 1999.

COLL, C. et all. O construtivismo na Sala de Aula. Série Fundamentos. São Paulo: Ática. 1999.

MEC – PARÂMETROS CURRICULARES NA SALA DE AULA. Série Fundamentos. São Paulo: Ática, 1999.

FERRARI, A. e LAUREANO. I. D. Instrumentos Bullying – o desafio do combate à discriminação na escola. Juiz de Fora, n.7 e n. 8, p.1 – 144, 2005/2006.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós- estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

VIGOTSKY, Lev Semenovich, 1896-1934. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores/ L.S. Vigotsky ; organizadores Michael Cole.. {et al.}; tradução José Cipolla Neto, Luis Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. 7ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007.

VIGOTSKY, Lev Semenovich, 1896-1934. Pensamento e Linguagem/ L.S. Vigotsky: tradução Jéferson Luis Camargo. 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2005.

VIGOSTKY, Lev Semenovich, 1896-1934. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem – São Paulo – Ícone – Ed. Universidade de São Paulo – 1998.

WALLON, Henry. Psicologia e educação da infância, Estampa, Lisboa, 1975 (coletânea).

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS: Acesso em 09/09/2016: https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/

UOL.  Acesso em 10/09/2016: http://atarde.uol.com.br/brasil/noticias/1742381-318-homossexuais-foram-mortos-no-brasil-em-2015

EM.COM. Acesso em  12/09/2016: http://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2014/09/22/interna_nacional,571621/brasil-amarga-o-preco-da-intolerancia-e-lidera-ranking-de-violencia-contra-homossexuais.shtml

G1-GLOBO. Acesso em 12/09/2016: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/03/no-brasil-75-das-adolescentes-que-tem-filhos-estao-fora-da-escola.html