POR QUE A EMENDA 98 É TÃO NOCIVA À DEFESA DO ESTADO DE DIREITO EM NITERÓI E DEVE SER COMBATIDA: breve aprofundamento das leis, tratados e referenciais curriculares que esta emenda infligiu.

Por Josiane Nazaré Peçanha de Souza | 21/03/2017 | Educação

POR QUE A EMENDA 98 É TÃO NOCIVA À DEFESA DO ESTADO DE DIREITO EM NITERÓI E DEVE SER COMBATIDA: breve aprofundamento das leis, tratados e referenciais curriculares que esta emenda infligiu.

Josiane Nazaré Peçanha de Souza

(Especialista em Direitos Humanos, Diversidade e Relações etnico-raciais e mestranda em História pela UERJ)

Faremos neste artigo um breve aprofundamento dos principais tratados, leis, programas, planos, nacionais e internacionais, violados com a aprovação da Emenda 98, proposta pelo vereador Carlos Macedo, como sendo uma iniciativa declarada do Programa “Escola Sem Partido”¹, junto ao Plano Municipal de Educação de Niterói (com abrangência junto às unidades de Ensino municipais); para explicarmos  para os professores e demais funcionários que exercem suas funções educativas junto à estas  unidades públicas de ensino, qual é a nossa posição enquanto Sindicato dos Profissionais da Educação – SEPE-NITERÓI, baseada no que expomos a seguir:

A emenda diz:

“Fica proibida a distribuição, utilização, exposição, apresentação, recomendação, indicação e divulgação de livros, publicações, projetos, palestras. Folders, cartazes, filmes, vídeos, faixas, qualquer tipo de material lúdico, didático ou paradidático, físico ou digital, que versem sobre o termo gênero, diversidade sexual e orientação sexual, nos estabelecimentos de ensino de Rede pública municipal do Município de Niterói”

A Constituição Federal de 1988, que apesar de não ser a dos nossos sonhos, foi conquistada com a luta da sociedade e se configura como tal pela existência de leis que asseguram a sua legitimidade, pois tendo íntima ligação com os mais importantes tratados internacionais (globais e regionais) de proteção dos direitos humanos, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos, dentre outras importantes leis construídas, reconhecendo a Conferência Mundial de Veneza, o Estado de Tribunal Penal Internacional, a Organização da Nações Unidas e a Corte Interamericana de Direitos humanos, dentre outras instâncias: as quais fundam as leis pétrias, que configuram ‘status’ constitucional a nossa lei nacional, pois dispositivo legal soberano de defesa dos direitos humanos e defende/assegura o Estado Democrático de Direito. Reconhecendo entre seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana e os seus direitos ampliados da cidadania (civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais) e que orientam e fundamentam as demais leis existentes. São aspectos destas leis, os importantes artigos:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.”

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

A partir desta máxima, a União, Estados, Municípios e Distrito Federal só se configuram como Estado Democrático de Direito, se forem capazes de assegurar o respeito aos direitos civis e trabalhistas, de assegurarem o exercício da cidadania pelos brasileiros, possibilitando-os o conhecimento e o exercício de seus direitos e deveres civis e trabalhistas, a sua dignidade humana e a coexistência e respeito à pluralidade de ideias políticas em seus espaços e tempos de convívio civil e trabalhista.

A L.D.B. de 1996 está de acordo com esta máxima, quando afirma em seus princípios, no Artigo 3º, principalmente a partir do Inciso segundo, de que o ensino será ministrado tendo como premissa a “liberdade em aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”, respeitando o “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas” e perseguindo o respeito à liberdade e apreço à tolerância e continua quando afirma a necessidade de assegurar o respeito a diversidade étnico-racial”. Vemos que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação reafirma a necessidade de assegurar os direitos humanos, o respeito à pluralidade de ideias e a liberdade de pensar, de ensinar e aprender, fazendo menção a autonomia pedagógica das escolas e professores, que se desdobre nos artigos 12 a 15 e o artigo 32, o que assegura também o estabelecimento de Estado de Direito.

Retomando a C.F./88, retornamos ainda ao artigo 3º, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação., o que está correlacionado na L.D.B. no que desenvolvi acima.

Lembramos ainda que esta lei também está de acordo com o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), que foi lançado em 2003 e está de acordo com documentos internacionais e nacionais, inserindo o Estado Brasileiro na história do Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (PMEDH) e seu Plano de Ação (ONU, 1997), tendo como princípios norteadores da Educação em Direitos Humanos na Educação Básica no Brasil , destacando alguns trechos: “c) A Educação em direitos humanos, por seu caráter coletivo, democrático e participativo, deve ocorrer em espaços marcados pelo entendimento mútuo, respeito e responsabilidade. d) A Educação em direitos humanos deve estrutura-se na diversidade cultural e ambiental, garantindo cidadania, o acesso aos ensino, permanência e conclusão, a equidade (étnico-racial, religiosa, cultural, territorial, físico-individual, geracional, de gênero, de orientação sexual, de opção política, de nacionalidade, dentre outras) e a qualidade da educação (...) f) a prática escolar deve ser orientada pela educação em direitos humanos, assegurando o seu caráter transversal e a relação dialógica entre os diversos atores sociais.”

Neste P.N.E.D.H. fica estabelecida ainda a necessidade de proteger os direitos humanos na Educação e incentivar o exercício de habilidades em estabelecer convivência com as diferenças no cotidiano, assim como desenvolver nestes espaços educativos através do diálogo responsável, osvalores e o fortalecimento de atitudes e comportamentos que respeitem os direitos humanos, e desenvolver ações e atividades para a promoção, defesa e reparação quanto às violações destes direitos. A educação, portanto, deve primar pela promoção, defesa e reparação quanto a violação do respeito à diferença de gênero, de orientação sexual e da diversidade étnico-racial existe no Brasil, dentre outras defesas.

E aqui não nos aprofundaremos na análise dos parâmetros e referenciais curriculares, tanto à nível nacional, quanto municipal, destacando apenas trechos deste último:  “a) valorizar a diversidade cultural, étnica, racial, linguística, geracional, de gênero, de religião, de sexualidade e outras, reconhecendo as suas contribuições para a riqueza da sociedade local, nacional e global; b)combater preconceitos, discriminações, assédios e quaisquer formas de violência contra o outro, buscando reconhecer suas origens e denunciar suas manifestações (...) g)Participar de atividades que estimulem atitudes éticas, de cooperação e solidariedade para com o próximo”(2010/2011, p. 20 – Referencial curricular municipal do Ensino Fundamental), se percebe pelo texto, que está presente nas outras etapas e modalidades da Educação Básica da rede municipal, que é necessário potencializar o respeito às diferenças através de uma práxis educativa de discussão da diversidade cultural, étnica, de gênero e sexualidade, etc, para se combater manifestações de violência física e psicológica na sociedade, brasileira e niteroiense, pois a escola é o ‘locus’ privilegiado de encontro de toda esta diversidade que está presente na sociedade.

No entanto, esta emenda 98, dentro do Plano Municipal da Educação, veio para colocar em xeque e desafiar tudo que está referendado legalmente, como exposto ainda que brevemente acima, a nível municipal, nacional, regional e internacional.

Todo o trabalho educativo inclusivo desenvolvido na rede municipal de Niterói ao longo dos anos, que procurou versar sobre o respeito e a inclusão de todas as diferenças, alçando notoriedade à nível regional e nacional exatamente por esta característica, está sendo desconstruído com este ataque.

De um modo autoritário, silenciador, procuram limitar a autonomia pedagógica, referendada por lei, de se trabalhar em sala de aula a discussão sobre gênero e sexualidade, que potencializa os estudantes enquanto cidadãos que sejam respeitosos quanto estas diferenças, com um olhar pluralista, com atitudes anti-machista, anti-lgbttfóbico e promotores da paz.

Todos os profissionais que atuam na rede municipal da Educação sabem quão leviana e mentirosa é a acusação de que somos imputados em nossa práxis educativa cotidiana a este respeito: que estamos violando o direito de cada criança e adolescente em construir a sua identidade e orientação sexual é mentirosa! Não estamos e nunca estaremos! Ninguém de fato tem esta capacidade, esta é uma construção dialética e individual de cada ser humano.

Nosso objetivo maior é desenvolver um trabalho educativo contra as violências, que prime pelo respeito ao outro como ele é: mulher, lgbt, homem, negro, com necessidades especiais ou especial, como seres humanos que são, detentores de direitos e deveres conquistados por lei.

Perseguimos uma Educação em prol dos direitos humanos, que respeite as diferenças, que promova várias atividades e debates para o exercício e alcance da cidadania.

Para tanto, lutaremos para que seja respeitada a nossa autonomia pedagógica, a nossa liberdade em ensinar e aprender conhecimentos e saberes, num processo educativo que garanta e defenda não só o Estado de Direito, mas também a justa liberdade e a dignidade para quem aprende e educa.

É esse modelo de Educação que está sob ataque ao vermos desenvolver o mentiroso, equivocado, ilegal e ameaçador Projeto “Escola Sem Partido”, através desta emenda 98 no Plano Municipal de Educação de Niterói.

Não podemos acatar e aceitar tais mentiras e tais ataques, pois compromete a realização de uma Educação Cidadã em nossas escolas públicas municipais. Um frontal ataque na Educação que respeita a pluralidade cultural que lhe é inerente.

Nós do SEPE-NITERÓI, defendemos e continuaremos a primar por uma Educação antirracista, anti-machista e anti-lgbtfóbica, multiculturalista, que respeite, dialogue e proteja a coexistência de grupos socioculturais plurais, promotora da paz e, portanto, do exercício da cidadania entre todos os sujeitos que a articulam e se/a constroem nas unidades de ensino públicas de Niterói.

Vai ter luta, vai ter defesa, vai ter debate sobre gênero e sexualidade sim! Desobedeçamos!

 

Referenciais Bibliográficas:

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