Ponderações ao Instituto da Delação Premiada

Por Rosanna Miyasaki Menezes | 01/06/2015 | Direito

                                                                                                           Autora:  Rosanna Miyasaki Menezes

 

PONDERAÇÕES  AO  INSTITUTO  DA  DELAÇÃO  PREMIADA

         Rosanna Miyasaki Menezes¹

 RESUMO

O presente trabalho acadêmico traz em seu bojo, ainda que de maneira sintetizada, uma análise ao instituto da delação premiada em nosso ordenamento jurídico, notadamente quanto ao seu valor probatório e eficácia no que diz respeito ao enfrentamento do crime organizado. No trajeto de sua elaboração, buscou-se demonstrar um pouco de historicidade em relação a esse instituto; as eventuais divergências ante as normas constitucionais; o quanto a delação premiada auxilia a persecução penal; como os doutrinadores opinam sobre o assunto; a importância da legislação infraconstitucional na aplicação da delação; a atuação do Estado para atingir os crimes de alta complexidade e, principalmente, qual é o ganho real da sociedade com isso tudo.

           

PALAVRAS-CHAVE: delação premiada, princípios constitucionais, persecução penal, direito, justiça, ética, crime organizado.

INTRODUÇÃO

Este artigo não tem a pretensão de estabelecer um julgamento quanto à aplicação do instituto da delação premiada no ordenamento jurídico brasileiro. O objetivo maior deste trabalho é tecer considerações sobre essa modalidade de delação, e como isso funciona na prática.    

           Sendo a busca pela verdade real a coluna mestra do verdadeiro Direito e a conquista da Justiça, na sua forma mais genuína, como afirma a maioria dos doutrinadores, é inegável que a aplicação da delação premiada, naqueles casos em a lei permite, ainda que de maneira subsidiária, faz-se necessária para que não caia por terra a pretensa conquista de um bem maior, ou seja, a função punitiva do Estado.  Natural que existam controvérsias, que surjam opiniões divergentes, mas tudo se torna válido quando são observados os preceitos mais nobres e mais vitais, como estes tutelados pela nossa Constituição em vigor:

 Direito à vida – Para que a pessoa seja respeitada, física e moralmente, é preciso que tenha condições satisfatórias de trabalho, alimentação, saúde, educação, lazer e manutenção do meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado. Ademais, é proibido o homicídio, a omissão de socorro, a tortura física ou psicológica, as penas de morte, de confisco de banimento e cruéis. Para a efetiva prática do direito à vida é necessário também o auxílio à infância, à maternidade e à velhice.

Direito à liberdade – Permanecer informado, ter a faculdade de opinar e escolher a profissão, a crença religiosa ou política, poder ir a qualquer parte.

 Direito à igualdade – Todos são iguais. Proíbe-se qualquer forma de discriminação, seja em função do sexo, orientação sexual, idade, condições físicas e mentais, de raça, cor, origem social ou geográfica, estado civil, opções políticas, filosóficas ou religiosas.

Direito à segurança – Todo cidadão tem direito à segurança individual, como garantia de inviolabilidade de domicílio, de propriedade e de sigilo de correspondência. Existe ainda a segurança jurídica, que garante o direito de ser considerado inocente enquanto não for julgado culpado, e de ser punido de acordo com a lei que estiver em vigor quando o delito foi praticado. Quanto à segurança jurídica, ela tem como objeto a preservação da ordem pública, da integridade das pessoas e do patrimônio, devendo ser aplicada com base nas leis que definam os crimes e punições para quem os praticar.

Ninguém pode ser preso sem que seja em flagrante ou sem que haja mandado judicial de prisão, excetuando-se os casos de transgressão militar ou crime propriamente militar. Mesmo estando a prisão dentro da lei, sua realização deve respeitar a inviolabilidade do domicílio, ou seja, a casa do cidadão está legalmente acima de qualquer violação. Ao ser presa, a pessoa não é obrigada a manifestar-se, além da necessidade de que essa prisão seja comunicada à autoridade judicial e aos familiares.  A lei garante o respeito à integridade física e moral dos presos.

             Lucidez, esmero e boa vontade são requisitos essenciais para que se obtenha o resultado almejado quando se encontra em andamento uma persecução. “Aplicar a justiça de maneira plena, e não apenas formal, implica, portanto, aliar ao ordenamento jurídico positivo a interpretação evolutiva, calcada nos costumes e nas ordens normativas locais, erigidas sobre padrões culturais, morais e sociais de determinado grupo social ou que estejam ligados ao desempenho de uma atividade. Os princípios constitucionais e as garantias individuais devem atuar como balizas para a correta interpretação e a justa aplicação das normas penais[...], do Estado Democrático de Direito decorre o princípio reitor do Direito Penal, que é o da dignidade humana, adequando-o ao perfil constitucional do Brasil e erigindo-o à categoria de Direito Penal Democrático. [...]. De pouco adiantaria a construção de um sistema liberal de garantias se o legislador tivesse  condições de eleger de modo autoritário e livre de balizas quais os bens jurídicos a merecer proteção. Importa, portanto, mediante critérios precisos e nada vagos, quais são esses bens, únicos a receber a proteção da esfera mais rigorosa e invasiva do ordenamento legal, com a lembrança de que o enfoque a ser conferido não é um instrumento opressivo em defesa do aparelho estatal, mas o de um complexo de regras punitivas tendentes a limitar arbítrio e a excessiva atuação do Estado na esfera da liberdade do indivíduo.” (CAPEZ, 2014, p. 19)

 

Da persecução penal e liberdade de prova             

              Imaginemos que a persecução penal seja um barco e que o seu interior abriga a delação premiada e demais espécies de provas admissíveis. Assim, necessário se faz que abramos um parêntese para breves considerações sobre esses dois elementos.

               A persecução penal é um procedimento existente no Brasil composto de duas fases: a investigação criminal e o processo penal. A investigação criminal é um procedimento preliminar, de caráter administrativo, com o intuito de reunir provas capazes de convencer o representante do Ministério Público da existência de justa causa para a abertura da ação penal. Já o processo penal é o procedimento principal e que possui caráter jurisdicional. É por intermédio do procedimento judicial existente dentro desse processo, que no final decide-se pela condenação ou absolvição do acusado.                             

               Outro ponto de vital importância para a robustez da persecução penal é a liberdade de prova, e isso podemos observar nos ensinamento de Filho (2010, p.556/557): “Quais as provas que o nosso CPP admite? Apenas aquelas elencadas nos arts. 158 a 250? Pondere-se, por primeiro, que regra geral os Códigos fazem um enumeração dos meios probatórios, sem, contudo, exauri-los, mesmo porque seria muita pretensão do legislador não prever sua própria falibilidade. Pode-se, pois, dizer, à semelhança do que se dá no cível, que ‘todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa’ (CPC, art. 332).

                O veto às provas que atenta contra a moralidade e a dignidade da pessoa humana, de modo geral, decorre de princípios constitucionais e, por isso mesmo, não pode ser olvidado.

                E a prova maior da não taxatividade  dos meios de prova no sistema do nosso CPP pode ser aferida pela própria redação do parágrafo único do art. 155: ‘somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil’.”

               

Delação premiada: historicidade

             Tem-se notícia de que os primeiros indícios da delação premiada podem ser encontrados na Idade Média, durante o período da Inquisição, onde era costume diferenciar o valor da confissão conforme a maneira que ela ocorria. Quando o corréu confessava de maneira espontânea, brotava o entendimento de que ele estava propenso a mentir em detrimento de outra pessoa, ao contrário  do indivíduo que era submetido à tortura. Assim, aceitava-se mais facilmente a confissão obtida por meio cruel.

             Apenas a título de exemplificação, em solo italiano a delação premiada começou a ser adotada na década de 70, com a finalidade de combater o terrorismo. Todavia, tornou-se mais notória quando de sua utilização no combate aos grandes mafiosos. A partir daí, esse conteúdo passou a ser contemplado na Legislação da Itália, de forma mais abrangente.

            Ainda na Europa, no sistema alemão há previsão legal para a redução ou até mesmo não aplicação da pena para o agente que voluntariamente denuncie ou obste a prática de um delito por organizações criminosas. O Juiz possui poder discricionário, cabendo-lhe conceder a vantagem mesmo que o resultado não tenha sido concretizado devido a circunstâncias alheias a vontade do agente.

          Nos Estados Unidos, a delação premiada representa um mecanismo capaz de dar à sociedade uma resposta rápida e objetiva.  Dentro dessa sistemática, o Promotor de Justiça preside a coleta de provas no inquérito policial e faz a acusação perante o Poder Judiciário. Caso haja a possibilidade de acordo com o acusado, o Ministério Público goza de total autonomia para negociar e decidir se prossegue ou não com a acusação.

          Na América do Sul, a Colômbia possui o chamado direito processual de emergência, que surgiu com a adoção da delação premiada em sua legislação. O motivo dessa contemplação pelo direito colombiano adveio da necessidade de se adotar medidas processuais capazes de combater o tráfico de entorpecentes. 

          Os acusados que em ato espontâneo delatarem os copartícipes, e ainda apresentarem provas concretas, poderão receber o benefício de liberdade provisória; redução da pena; substituição de pena privativa de liberdade, e até  mesmo serem incluídos no programa de proteção às vítimas e testemunhas, isso tudo conforme o Código de Processo Penal colombiano.

           Observa-se que existe aí uma sutil diferença com o que ocorre no direito brasileiro. Em nosso direito, a confissão não é requisito para que o coautor seja beneficiado pelo instituto da delação premiada, existindo a possibilidade de o acusado ser beneficiado tão somente pelo fato de denunciar seu comparsa.

             A origem da delação premiada em nosso País remete-se às Ordenações Filipinas, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal. No Livro V dessas Ordenações havia não apenas a previsão do mero perdão, mas também de verdadeiro prêmio ao indivíduo que apontasse o culpado. Vale ressaltar que essas Ordenações vigoraram à época da Inconfidência Mineira, ocorrida entre 1788 e 1792. No aspecto prático, alimentado pela promessa de perdão de suas dívidas para com a Fazenda Real, Joaquim Silvério dos Reis delatou os planos de seus companheiros inconfidentes, culminando com o fim do movimento e a execução de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.  

            Em dias atuais, existe uma série de diplomas tutelando a delação premiada: Lei dos Crimes Hediondos - Lei nº 8.072/90, art. 8º, parágrafo único; Lei do Crime Organizado – Lei nº 9.034/95, art. 6º; Código Penal – art. 159, § 4º (extorsão mediante sequestro); Lei de Lavagem de Capitais – Lei nº 9.613/98, arts. 1º e 5º; Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas – Lei nº 9.807/99, arts. 13 e 14; Lei Antitóxicos, Lei nº 10.409/2002, art. 32, § 2º; Lei da Organização Criminosa – Lei nº 12.850/2013, arts. 4º, 5º e 6º.   

Conceito

Para que se configure a delação premiada, existe a necessidade de que o indiciado ou acusado admita ter cometido uma prática criminosa, além de ter contado com a participação de uma terceira pessoa para a execução de tal delito. Não basta que haja simplesmente a deleção, faz-se necessário que as informações prestadas contribuam de forma efetiva para fazer cessar a conduta criminosa.  

Segundo Aranha, a delação trata-se da “afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, e pela qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação como seu comparsa”. (ARANHA, 1999, p. 122)

“Delação é a incriminação de terceiro, realizada por um suspeito, investigado, indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório (ou em outro ato). ‘Delação premiada’ configura aquela incentivada pelo legislador, que premia o delator, concedendo-lhe benefícios (redução de pena, perdão judicial, aplicação de regime penitenciário brando etc.)” (JESUS, 2006)

Do valor probatório

Para que a delação premiada encontre força probatória, é preciso que enfrente o contraditório, dando ao advogado do delatado a oportunidade de fazer perguntas durante o interrogatório, e caso necessário, existe a possibilidade da marcação de um novo interrogatório para que haja a participação do defensor.

            A Lei da Organização Criminosa  (Lei nº 12.850/2013), preceitua em seu capítulo II, como deve ser conduzida a investigação e quais os meios para obtenção da prova. O legislador teve o cuidado de dar as diretrizes para que se obtenha o melhor resultado possível na apuração dos fatos:          

                                             CAPÍTULO II

 DA INVESTIGAÇÃO E DOS MEIOS DE OBTENÇÃO DA PROVA

Art. 3o  Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:

I - colaboração premiada;

II - captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;

III - ação controlada;

IV - acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais;

V - interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica;

VI - afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica;

VII - infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11;

VIII - cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal.

§ 1o  Havendo necessidade justificada de manter sigilo sobre a capacidade investigatória, poderá ser dispensada licitação para contratação de serviços técnicos especializados, aquisição ou locação de equipamentos destinados à polícia judiciária para o rastreamento e obtenção de provas previstas nos incisos II e V. (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)

§ 2o  No caso do § 1o, fica dispensada a publicação de que trata o parágrafo único do art. 61 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, devendo ser comunicado o órgão de controle interno da realização da contratação. (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)

Na brilhante explanação de (Jesus, 2006) fica demonstrado que a delação            premiada ou não, por si só, não é suficiente para alicerçar uma condenação:  

                                  

                                      A delação (não-premiada) de um concorrente do crime por outro, em  sede policial ou em Juízo, denominada “chamada de co-réu”  ou “confissão delatória”, embora não tenha o condão de embasar, por si só, uma condenação, adquire força probante suficiente desde que harmônica com as outras provas produzidas sob o crivo do contraditório (STF, HC n. 75.226; STJ, HC n. 11.240 e n. 17.276).  Esse entendimento, objetado por parte da doutrina, ganhou reforço após o advento da Lei n. 10.792/2003, a qual garantiu à acusação e à defesa a possibilidade de solicitar ao Juiz o esclarecimento de fatos não tratados no interrogatório, conferindo-lhe a natureza contraditória e, conseqüentemente, maior valor e credibilidade (art. 188 do CPP). O mesmo raciocínio deve ser aplicado à “delação premiada”: não se pode dar a ela valor probatório absoluto, ainda que produzida em juízo. É mister que esteja em consonância com as outras provas existentes nos autos para lastrear uma condenação, de modo a se extrair do conjunto a convicção necessária para a imposição de uma pena.   

 Da confissão (espontânea x voluntária)

            Todo ato que            surge de livre vontade há de ser considerado espontâneo. Para ser considerada como atenuante, a confissão precisa ter origem numa decisão autônoma do autor dos fatos, não importando a natureza da motivação.

            Art. 65, III, alínea ‘d’ do Código Penal: “confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime.” Eis aí um exemplo de circunstância que atenua a pena.  

            Alguns doutrinadores entendem que existe diferença entre ato espontâneo e voluntário, para essa corrente somente a confissão voluntária, praticada livre de qualquer tipo coação é válida como meio de prova. Ainda, assim, para ter força atenuante precisa também ser espontânea.

         Para Jesus (2006) “Voluntário é o ato produzido por vontade livre e  consciente do sujeito, ainda que sugerido por terceiros, mas sem qualquer espécie de coação física ou psicológica. Ato espontâneo, por sua vez, constitui aquele resultante da mesma vontade livre e consciente, cuja iniciativa foi pessoal, isto é, sem qualquer tipo de sugestão por parte de outras pessoas.”               

            Subsiste a indagação: deve ser a delação premiada decorrente de um ato voluntário ou espontâneo? Uma vez proposta pelo Ministério Público ou pela autoridade policial, mesmo assim poderá o Juiz conceder o benefício?

            O doutrinador esclarece:

                                          Depende. A legislação brasileira, lamentavelmente, não trata o assunto com uniformidade. Assim, enquanto a Lei do Crime Organizado, a Lei de Lavagem de Capitais e a Lei Antitóxicos expressamente exigem a espontaneidade, a Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (aplicável a qualquer delito), contenta-se com a voluntariedade do ato[1]. Desse modo, não faria jus ao prêmio quem, sugerido por terceiros (autoridades públicas ou não), delatasse seus comparsas em crimes praticados por organização criminosa ou lavagem de capitais. Ressalve-se, contudo, a possibilidade de aplicação subsidiária da Lei n. 9.807/99 a esses crimes, dado o seu caráter geral. Vale dizer: diante de uma colaboração voluntária, embora não espontânea, torna-se possível o perdão judicial ou a redução da pena para os delitos tratados pelas Leis n. 9.034/95 e 9.613/98 somente com base na Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas, desde que preenchidos os requisitos de seus arts. 13 e 14. (JESUS, 2006)

            Para que seja reconhecida como atenuante, a confissão deve ser  espontânea. Portanto, “a confissão espontânea é considerada um serviço à justiça, uma vez que simplifica a instrução criminal e confere ao julgador a certeza moral de uma condenação justa.” (CAPEZ, 2007, p. 455)

            Se o ato puro e simples da confissão fosse suficiente, o Diploma Legal não teria a necessidade de mencionar a espontaneidade. Diria que qualquer confissão seria passível de atenuação da pena, o que tornaria a conduta objetiva. A espontaneidade legalmente prevista auxilia a polícia na investigação e o magistrado em sua decisão. Na ocorrência de flagrante delito, mostra-se inócua a confissão, posto que o acusado ratifica voluntariamente o que já é de conhecimento geral.         

Conforme Paupério (2002, p. 53/54) “A Thomasius, vulto do iluminismo, com os desenvolvimentos posteriores de Kant, devemos a distinção entre direito e moral. Enquanto o direito é coercitivo, a moral é incoercível. A moral encontra raízes na consciência e, por isso mesmo, implica em liberdade de procedimento.” Aliás, todos os procedimentos ou ações que envolvam seres humanos teriam que ser sempre pautados pela valorização da ética e da moral mais profunda.

A delação premiada pode ser tachada de incentivadora à traição?

A resposta não é tão simples, tudo depende do ponto de vista. Inúmeras são as críticas sobre a aplicação da delação premiada, em especial sobre o aspecto ético que questão demanda. É inegável que essa modalidade de delação se apresenta como um importante mecanismo de combate ao crime organizado, ainda que seja vista como um incentivo à traição legalizada. Mas há de se convir, que o indivíduo que frequenta a criminalidade não está muito preocupado com preceitos morais e éticos. Logo, dizer que a delação fomenta a traição e postura antiética não é um argumento capaz de levar a não utilização do instituto.

             Estudiosos do Direito são quase unânimes quando afirmam que o que falta mesmo para uma melhor aplicação do instituto é um regramento mais harmônico, uma legislação mais específica, capaz de impedir divergências normativas e preencher eventuais lacunas relativas ao tema.           

É vital que questões técnicas ou políticas não impeçam a utilização, mais ainda, que o instituto da delação continue a cumprir o seu importante papel na investigação, dando efetividade à persecução penal.

Da proteção às vítimas, às testemunhas e ao delator

            Com o espírito de colher um melhor resultado na apuração e na solução de práticas criminosas diversas, surgiu a Lei nº 9.807/99 que protege as vítimas e testemunhas, garantindo a estas e a seus entes mais próximos a perspectiva de que encontrarão segurança e apoio necessários. Trata-se, assim, de um incentivo e fonte de encorajamento aos que decidem colaborar com as autoridades policiais ou judiciárias.

            A Lei 9.807/99 estabelece normas para a organização e manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados [grifo nosso] que tenham que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial ou ao processo criminal.

            Vejamos o que reza o capítulo II dessa Lei em comento:

 CAPÍTULO II - DA PROTEÇÃO AOS RÉUS COLABORADORES

Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:                              

I - a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa;

II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada;

III - a recuperação total ou parcial do produto do crime.

Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.

Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços.

Art. 15. Serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual ou efetiva.

§ 1o Estando sob prisão temporária, preventiva ou em decorrência de flagrante delito, o colaborador será custodiado em dependência separada dos demais presos.

§ 2o Durante a instrução criminal, poderá o juiz competente determinar em favor do colaborador qualquer das medidas previstas no art. 8o desta Lei.

§ 3o No caso de cumprimento da pena em regime fechado, poderá o juiz criminal determinar medidas especiais que proporcionem a segurança do colaborador em relação aos demais apenados.

           

Mesmo tendo entrado em vigor desde sua publicação ocorrida em 14/07/1999, essa Lei não recebeu por parte dos doutrinadores o agasalho que deveria, apesar de trazer em seu conteúdo questões palpitantes. Recebe, contudo, críticas em relação a impossibilidade de uma implementação material mais contundente. Alegações como falta de verba e má vontade política, por exemplo, não podem obstruir a expansão de um programa dessa magnitude, que traz uma nova realidade ao sistema jurídico brasileiro, elevando-o ao mesmo nível de outros países bem mais desenvolvidos. Todos nós sabemos que a crescente onda de criminalidade tem promovido um grande temor social, e esse mesmo temor barra o auxílio da sociedade na investigação criminal por medo de represálias.  

CONSIDERÇÕES FINAIS

            Nos dias atuais, a grande mídia tem dado um estrondoso enfoque à delação premiada, é uma das expressões mais repetidas nos noticiários policiais e políticos. Isso foi deflagrado a partir da Operação Lava Jato, quando importantes figuras do mercado financeiro, do mundo político e do meio empresarial passaram a colaborar com a Polícia Federal e com o Ministério Público Federal, nas investigações sobre esquemas de corrupção na Petrobras. Juridicamente, segundo os estudiosos do assunto, a delação premiada, nesse caso em particular foi moldada com a fusão das leis de combate à lavagem de dinheiro, de proteção a vítimas e testemunhas e do combate ao crime organizado.

            Muito se pergunta quais são os benefícios e os direitos do delator. Os benefícios basicamente são três: ele pode ter a pena reduzida em dois terços, ele pode receber o perdão judicial, mas caso condenado, pode transformar a pena em regime fechado ou semiaberto em serviços à comunidade. Em hipótese alguma o delator deve ser coagido; para que a delação tenha valor jurídico ela tem que ser espontânea e feita na presença de um advogado.       

            Outra questão importante é sobre quem pode participar do acordo da delação premiada. A delação precisa ser feita na presença do Ministério Público e das polícias civil ou federal, conforme o caso. Sendo na fase de inquérito, é obrigatória a presença do delegado, do promotor ou procurador, do réu delator e seu advogado. Prepara-se então um documento que é levado para a homologação do juiz.

            Mas surge outra indagação: o juiz é obrigado a aceitar esse acordo? A resposta é negativa. O magistrado só homologa o acordo, caso ele esteja inserido nos parâmetros da Justiça, da legalidade e da moralidade. Todavia, destaca-se que o réu dispõe de dois momentos para colaborar durante a persecução penal: na fase da investigação feita pela polícia ou no trâmite do processo judicial.

            Outro ponto que não deve ser esquecido, é se a delação por si só tem força suficiente para embasar uma condenação. Por mais inequívoca que seja a fala, o juiz carece de um conjunto probatório para um melhor julgamento.

            Quanto ao aspecto mais íntimo desse instituto, pode-se dizer que ele tem sobrevivido a uma enxurrada de críticas, principalmente quanto ao seu caráter moral e ético, alguns chegam até mesmo a tachá-lo de ilegal, pois há o entendimento de que o beneficiário da delação premiada estaria traindo seus amigos. Ora, a ética é o pilar basilar da justiça, e como é sabido, o criminoso é desprovido de ética, mas o Direito não.      

                              “O objetivo do direito é a paz, a luta é o meio de consegui-la. Enquanto o direito tiver de rechaçar o ataque causado pela injustiça – e isso durará enquanto o mundo estiver de pé -, ele não será poupado. A vida do direito é a luta, a luta de povos, de governos, de classes e indivíduos.”

                                                                       Rudolf Von Ihering

           Bom seria se não houvesse a necessidade de se lançar mão de instrumento, cuja aceitação não seja unânime. Mas o que fazer, se aquela parcela da sociedade que deveria dar exemplo não para de delinquir? Fica valendo então a velha e surrada máxima: os anéis se foram, mas os dedos ficaram; ao menos isso. E salve a pátria amada!  


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05-10-1988. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 

_____. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848/40. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

_____. Código de Processo Penal. Decreto-Lei º 3.689/41. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

_____. Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013. Dispõe sobre a Organização Criminosa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, de 05 de agosto de 2013.

_____. Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999. Dispõe sobre a Proteção a Vítimas e Testemunhas, e dá outras providências. Diário Oficial da União, de 14 de julho de 1999.

FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. 13ª ed. São Paulo, Saraiva, 2010.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 14ª ed. São Paulo, Saraiva, 2014.

_____. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 11ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

ARANHA, Adalberto José Q.T. de Camargo. Da Prova no Processo Penal. 5ª ed. São Paulo, Saraiva, 1999.

JESUS, Damásio de. Estágio atual da “delação premiada” no Direito Penal brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 152 (set. 2006).  Disponível em  http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=908. Acesso em 23 de maio de 2015.

PAUPÉRIO, A. machado. Introdução ao estudo do Direito. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Tradução J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.


1 Aluna do 5º Termo-D do curso de Direito (matutino) do CENTRO UNIVERSITÁRIO ANTÔNIO EUFRÁSIO DE TOLEDO DE PRESIDENTE PRUDENTE. Artigo científico elaborado na disciplina de Direito Processual Penal I, ministrada pelo do Professor Doutor Mário Coimbra.

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