POEMA E FUGA EM RÉ MENOR E BLUES FÚNEBRES
Por Camila da Fonsêca Aranha | 18/01/2011 | LiteraturaPOEMA E FUGA EM RÉ MENOR E BLUES FÚNEBRES:
UMA ANÁLISE COMPARATIVA
Camila da Fonsêca Aranha
Resumo: O presente trabalho fundamenta-se na apresentação de uma análise comparativa entre os poemas Poema e Fuga em Ré Menor, de Ruy Barata, e Blues Fúnebres, de Wystan Hugh Auden, de acordo com o embasamento teórico-metodológico de Massaud Moisés, visando correlacionar as temáticas entre os referidos poemas e a discussão teórica desenvolvida no decurso da disciplina Literatura Amazônica ? ministrada ao 4º ano do curso de Letras ? Licenciatura Plena em Língua Portuguesa pelo professor Msc. José Denis Bezerra.
Palavras-chave: Análise poética. Literatura comparada. Literatura amazônica.
1 ? Introdução
A recorrente problemática entre questões terminológicas e de nomenclaturas literárias perpassa tempos remotos e permanece no universo contemporâneo. A querela atual que aqui nos interessa diz respeito ao constante embate com relação à denominação mais adequada ao tipo de literatura fabricado na Amazônia e/ou no Estado do Pará, visto que o que é questionado é o ponto de partida para determinar a nomenclatura: se deve-se partir do local ou do universal.
Teóricos como Silvano Santiago (apud Fernandes, 2005 : 180) afirmam que é necessário encontrar o "entre-lugar" de nosso discurso, isto é, encontrar o ponto de equilíbrio entre o universal e o local; nas palavras de José Guilherme Fernandes, "[...] jogo fluente que parta da universalidade colonizadora e etnocêntrica para a verdade da universalidade universal" (2005 : 181). N?outros termos, o mais adequado e proporcional para se encontrar a nomenclatura mais adequada de uma literatura local, sem que a deixe excluída do mais universal, é buscar um termo que exponha a identidade regional, mas, simultaneamente, faça a correlação com o nacional.
Intentando contemplar tais aspectos, Paulo Nunes (apud Fernandes, 2005 : 181) e Pantoja (2005 : 182) manifestaram-se quanto à terminologia mais adequada relacionada aos estudos literários das obras amazônicas. Paulo Nunes, em seu ensaio intitulado Literatura paraense existe?, afirma que "a expressão literatura paraense, além de ser acanhada demais, fere a universalidade, princípio básico a qualquer manifestação que se deseja artística" e que a produção literária de autores paraenses não pode ser designada apenas como "exótica, regional, incapaz de difundir sentimentos universais". Nunes conclui postulando que, se fôssemos aplicar denominações pátrio-adjetivas a cada região, teríamos uma suprafragmentação da Literatura Brasileira, optando, então, pelo termo Literatura brasileira de expressão amazônica. Pantoja, ao seu turno, em seu ensaio Não existe uma literatura paraense?, acredita justamente no oposto de Nunes:
Não se pode, em nome do desejo de universalização, suprimir o regional. O universal não existe sem o particular, o nacional não existe sem o regional, de modo que, em nome do primeiro, não se pode ignorar o segundo.
Pantoja defende, pois, a nomenclatura Literatura Paraense em detrimento daquela cunhada por Nunes em virtude de acreditar que é necessário particularizar o universal de alguma maneira, seja ela por meio do termo cunhado por Nunes (Literatura brasileira de expressão amazônica) ou pelo próprio nome Literatura Paraense, haja vista que ambos particularizam o universal ao designar literatura brasileira (não é a francesa ou a norte-americana, por exemplo) ou literatura paraense (não é a fluminense ou a maranhense, por exemplo).
Portanto, como tentativa de sanar essa querela, José Guilherme Fernandes propõe não qual seja o termo mais adequado, mas sim o método mais apropriado para escolher qual seria o melhor termo. Ele afirma que é necessário que levemos em consideração as noções de identidade e de alteridade, pois "a identidade traz a marca de um discurso coletivo, que oblitera vozes que não se enquadrem nele, o que torna o conceito de identidade uma alteridade" (2005 : 183). Ou seja, o que importa é que tenhamos consciência de que mesmo tratando-se de uma literatura mais específica, geograficamente tratando, ela também irá tratar de temas e assuntos universais, ocorre que, em virtude de suas peculiaridades locais (valores, sentimentos e culturas específicos) o modo como irá tratá-los é que irá divergir, ser diferente de região para região.
Dessa maneira, é possível afirmar que tanto o poema de Ruy Barata quanto o de W.H. Auden possuem um discurso universal, acontece que ele se concretiza conforme aspectos regionais, isto é, de acordo com características paraenses e yorkianas, respectivamente. E é justamente esse discurso universal concretizado de maneiras diferentes que será analisado neste artigo, atentando, sempre, para o que de fato é importante para a análise de um texto poético: a sua essência.
Nos dizeres de Massaud Moisés (2002 : 41): "A análise de um texto poético deve basear-se em sua essência, não em sua forma [...]."
2 ? Análise Comparativa
Blues Fúnebres
Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.
Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto ? um laço no pescoço ?
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.
Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.
É hora de apagar estrelas ? são molestas ?
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.
Poema e Fuga em Ré Menor
Sobre o piano - rosas
entre as rosas o azul
e o azul não era azul
era vermelho.
Tocavam Bach
e era como luz que transitasse
no mistério.
Todos estavam silenciosos
e no fulgor das pupilas
envenenadas pelo medo
havia uma estranha dor de morte prematura.
Minha mãe chegou-se a mim e disse fica,
meu avô me segurava do retrato,
meus netos me acenavam do futuro.
Porém eu estava sitiado
entre a fuga e a tocata.
A nuvem carregou-me adormecido,
varei a criação,
transpus o limbo,
quando acordei,
meu pai,
já era céu.
É possível perceber que ambos os poemas possuem, como temática central, a questão da morte ? inicia-se, de pronto, o discurso universal, visto que o assunto morte é universal, isto é, encontra-se em poemas de qualquer local do mundo, o que difere, entretanto, é o modo como ele é encarado, sentido e demonstrado perante cada sociedade.
Em Blues Fúnebres, uma espécie de canto de despedida, há inúmeras conotações que nos remete ao tema morte:
1) o próprio nome do poema blues nos remete à tristeza, melancolia, e fúnebres, relativo à morte ou ao funeral, algo também triste, lutuoso, lúgubre;
2) "[...] o tambor sancione a vinda do caixão em seu cortejo atrás";
3) "[...] ele morreu.";
4) "Que os pombos guardem luto";
5). "[...] enquanto viveu [...]";
Nesse poema, é transmitida uma ideia de que com a perda da pessoa amada nada mais importa, nada mais tem sentido, vale a pena ("Que parem os relógios, cale o telefone, jogue-se ao cão um osso e ele não ladre mais [...]"; "Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto viveu, meus dias úteis, meu fim de semana, meu meio-dia, meia-noite, fala e canto [...]"; "É hora de apagar estrelas [...], guardar a lua, desmontar o sol brilhante, de despejar o mar, jogar fora as florestas, pois nada há de dar certo doravante."). Fica claro, pois, que o amado fez uma espécie de poema àquele que amava, que está morto ("[...] ele morreu."). Diferentemente do que ocorre em Poema e Fuga em Ré Menor, em que a pessoa morta é o próprio eu-lírico ("Minha mãe chegou-se a mim e disse fica, meu avô me segurava do retrato, meus netos me acenavam do futuro."; "A nuvem carregou-me adormecido, varei a criação, transpus o limbo, quando acordei, meu pai, já era céu.").
No poema de Ruy Barata, por sua vez, as conotações que expressam morte são:
1) "Sobre o piano - rosas" assim como em Blues Fúnebres, esse poema traz a figura do piano ? sabe-se que em enterros e mais comumente em velórios há geralmente a presença do piano, tocando uma música fúnebre (requiem). Percebemos, pois, que a própria figura do piano como um símbolo universal de velório, e, sendo universal, encontra-se em ambos os poemas denotando outra universalidade: a morte. As rosas (as flores em geral, entretanto são mais recorrentes as rosas), como se sabe, são levadas em velórios e em enterros (outra questão universal, apesar de a figura rosa aparecer apenas no poema de Ruy Barata), como uma forma de homenagear o falecido e em respeito por aqueles que sofrem.
2) "Tocavam Bach [...]" é comum músicas clássicas serem tocadas em velórios. Destacamos outra universalidade presente no regional de Ruy Barata: Bach, músico alemão pertencente ao cânone da música clássica.
3) "Todos estavam silenciosos [...]"
4) "[...] estranha dor de morte prematura." o que se pode depreender de prematura, é que o eu-lírico morreu ainda jovem.
5) "[...] transpus o limbo, quando acordei, meu pai, já era céu." limbo, um conceito religioso de caráter escatológico que denota o local para aonde iam as almas inocentes, puras, sem pecados. É possível associar limbo com a morte prematura, pois somente, segundo a doutrina católica, iam para o limbo as crianças e as almas sem pecado, logo, pode-se crer que o eu-lírico tenha morrido ainda criança. quando acordei, meu pai, já era céu, frase bastante clara, meu pai, simboliza Deus, esse encontro com Deus.
Percebemos, portanto, como ponto comum entre os dois poemas o tema universal morte e até mesmo certos elementos para expressá-la, como a questão da música clássica, da figura do piano e do próprio sentimento de dor das pessoas com relação a esse fato. Com relação a essa questão de enredo de poemas, Massaud Moisés (2000 : 155) tece um comentário bastante interessante:
O nexo ordenador dos verbos é de natureza psicológica, não histórica ou lógica. E a cena remonta a um presente que paira fora de qualquer limitação cronológica [...]. Efetivamente, teríamos entes descrição que narração, ou descrição em movimento.
N?outras palavras, o que busca Maussaud Moisés explanar acerca do enredo da poesia é que ela não possui uma ordenação temporal quanto aos fatos que descreve, assim como não narra acontecimentos, uma vez que muito mais preocupa-se em descrever sentimentos, objetos e fatos ante a narrá-los. É o que verificamos em Blues Fúnebres e Poema e Fuga em Ré Menor, pois não sabemos ao certo ? e nem há sugestões do gênero ? quando, como e onde cada pessoa morreu, a exceção da sugestão do poema de Ruy Barata acerca da prematuridade da morte do eu-lírico.
No que se refere ao espaço poético, Massaud Moisés (2000 : 158) assim se manifesta:
Coerentemente com a ausência de tempo e de ação, o fenômeno poético se distingue pela ageograficidade: realiza-se fora do espaço geográfico e ao contrário de qualquer referência no gênero.
Como podemos observar nos dois poemas analisados, não é exposto claramente em que local eles se desenvolvem, entretanto, expressões sugerem que se passam em velórios e/ou enterros: o piano tocando a música clássica; as rosas; as pessoas em silêncio, parentes sofrendo; a vinda do caixão e o seu cortejo atrás.
Explanados e analisados os aspectos em comum entre os dois poemas, um escrito por um autor inglês (do Estado de York) e o outro por um autor brasileiro (do Estado do Pará), isto é, ressaltando-se as mesmas universalidades abordadas, faz-se necessário, então, que destaquemos as diferenças entre ambos no que se refere às particularidades de cada um em retratar o tema universal morte.
A primeira delas diz respeito ao sentimento expresso em cada poema, ao modo como cada um sente, concebe o acontecimento morte. Massaud Moisés (2000 : 168), acerca dessa questão de emoção e pensamento na poesia, estabelece que:
Para situar adequadamente o problema, temos de analisar a emoção impressa no objeto literário, não na mente de quem o produziu ou de quem se entregou à sua fruição. Importa, não a emoção de que o poema se origina ou que desperta, mas a emoção presente no poema como um dado relativamente concreto: o fenômeno poético, expresso no poema, envolve naturalmente a emoção [...].
Dessa maneira, podemos observar que em Blues Fúnebres há uma melancolia, uma tristeza e um ambiente funesto muito mais intenso do que em Poema e Fuga em Ré Menor. Podemos perceber que no poema de Auden fica clara a quase desistência de viver do eu-lírico em virtude da perda da pessoa amada, o drama, a radicalização em virtude dessa morte ? tudo deve modificar-se, nada será igual após esse acontecimento ("Quem parem os relógios, cale o telefone, jogue-se ao cão um osso e ele não ladre mais, que emudeça o piano [...]"; "Que os pombos guardem luto [...] e os guardas usem finas luvas cor de breu."; "É hora de apagar estrelas [...], guardar a lua, desmontar o sol brilhante, de despejar o mar, jogar fora as florestas, pois nada mais há de dar certo doravante."), inclusive o próprio eu-lírico ("Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto viveu, meus dias úteis, meu fim de semana, meu meio-dia, meia-noite, fala e canto [...]").
Em Poema e Fuga em Ré Menor, em contrapartida, a melancolia não se mostra tão intensamente quanto no poema de Auden. Nesse poema, é descrita muito mais a situação em si (do velório/enterro) do que o que modificou-se ou iria modificar-se em virtude da morte do eu-lírico. Ademais, os sofrimentos das pessoas próximas não é descrito de modo extremamente melancólico, o que, talvez, seja um tanto quanto estranho e de difícil compreensão, pois se trata de parentes ("Minha mãe chegou-se a mim e disse fica, meu avô me segurava do retrato") que haviam perdido uma pessoa ainda muito jovem, provavelmente uma criança. Não que esses parentes não tenham sofrido em demasia, mas no poema esse sofrimento não foi descrito de modo tão exauriente quanto em Blues Fúnebres.
Uma possível justificativa reside justamente no fato de se tratar de escritores com realidades tão distantes. W.H. Auden, inglês, em virtude de sua formação e criação específicas, pode ter desenvolvido uma maneira diferente da de Ruy Barata, brasileiro, de lidar com o acontecimento morte ? os próprios valores de cada sociedade interferem nessa questão das diferentes maneiras de conceber os mesmos assuntos.
3 ? Considerações Finais
Foi possível perceber, pois, por meio da análise e explanação dos principais aspectos dos poemas Blues Fúnebres, de W. H. Auden, e Poema e Fuga em Ré Menor, de Ruy Barata, os seus aspectos convergentes e divergentes, sempre atentando para as questões do universal e local, nacional e regional. Ademais, a análise aqui apresentada fundamentou-se nos pressupostos teórico-metodológicos de Massaud Moisés e nas discussões realizadas no decurso dos meses de março e abril da disciplina Literatura Amazônica, ministrada aos alunos do 4º ano do curso de Letras ? Licenciatura Plena em Língua Portuguesa, da Universidade do Estado do Pará, pelo professor Msc. José Denis Bezerra.
4 ? Referências Bibliográficas
FERNANDES, José Guilherme dos Santos. Literatura brasileira de expressão amazônica, literatura amazônica ou literatura da Amazônia?. Revista MOARA, n. 23, jan/junho 2005. Belém: CLA/UFPA, 2005.
MOISÉS, MASSAUD. A criação literária: poesia. 14ª ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
________. A análise literária. 13ª ed. São Paulo: Cultrix, 2002.