Plataforma 36

Por Orlando Rodrigues | 14/01/2007 | Contos

Os enormes relógios do terminal rodoviário do Tietê, espalhados pelo saguão de acesso à área de embarque de passageiros, marcavam meia noite e trinta minutos. Algumas poucas lojas, preferencialmente as de fast-food, permaneciam abertas. Era a segunda vez que eu desembarquei naquele terminal. A maioria das viagens que fazia a São Paulo, a negócios, era de avião, porém, os constantes atrasos de vôos motivados pôr problemas envolvendo companhias aéreas e controladores de vôos, me fizeram optar pela viagem de ônibus.

Fizera uma viagem ao litoral norte de São Paulo, aproveitando uma brecha em minha agenda de negócios, de onde retornara, para prosseguir, no dia seguinte, minha viagem de volta a Goiânia. O período de férias de verão havia contribuído para o aumento no fluxo de passageiros no trecho entre a capital paulista e as cidades litorâneas. Só havia conseguido lugar em uma poltrona da última fileira, ao lado do toalete, cuja porta, defeituosa, insistia em abrir e fechar, repetidamente, durante todo o percurso. O incômodo teve de ser suportado pôr mim e outros usuários, ali próximos, já que não havia solução aparente para aquele probleminha na fechadura da porta do sanitário.

Enfim, a viagem repleta de paradas para embarque de passageiros durante o percurso chegou ao seu destino final e, eu, teria que aguardar, pacientemente, a abertura do guichê da companhia de ônibus que me levaria pra casa.

Sem ter muito o que fazer àquela hora da manhã, no terminal rodoviário, ocupei meu ocioso tempo empurrando minha mala de um ponto a outro do terminal, observando vitrines, lojas ainda abertas e as pessoas, que assim como eu, aguardavam o recomeço do expediente nas empresas de ônibus que os levariam a seus destinos. Senhores, senhoras e crianças, acostelados nas cadeiras estreitas espremiam-se tentando encontrar o melhor jeito de tirar uma soneca. Caras e bocas de pessoas cansadas, famintas ou sedentas, aguardando a hora de seguir viagem. Um casal, acompanhado de seus dois jovens filhos, me pareceu familiar. Eu havia visto aqueles rostos dentro do ônibus que me levou até São Paulo. Os filhos do casal, uma jovem de aproximadamente dezoito anos e um rapazola que aparentava uns dezesseis anos pareciam zombar de uma mulher, estranhamente vestida em uma roupa enfeitada de paetês coloridos. O casal, sonolento, apenas ria, divertindo-se com os filhos zombeteiros.

A mulher, de vestido colorido, muito estranha, parecia esquizofrênica. Acenava e fazia gestos para algumas pessoas que dela se aproximavam. Em alguns momentos parava de frente a vitrines de lojas e exibia-se, como se estivesse em uma passarela desfilando. Nem todos a percebiam ou a notavam. Em certo momento parou de frente ao enorme salão e abriu os braços como um cristo redentor. Ninguém a notava e ela apenas sorria e falava frases sem nexo.

O relógio marcava mais de duas horas da manhã e o movimento daquele enorme terminal rodoviário diminuía a cada instante. Praticamente todas as lojas haviam fechado suas portas. Os funcionários da limpeza apressavam em terminar o seu turno, enquanto, passageiros em trânsito, pestanejavam nas cadeiras estreitas. O casal e seus dois filhos revezavam-se entre cochilo e passeios pelo saguão, querendo espantar o sono ou apressar os ponteiros dos relógios que insistiam em marcar, pausadamente, cada segundo do tempo. Por fim, também senti necessidade de sentar-me em uma das cadeiras, para um breve descanso.

Um homem vestindo um paletó surrado e portando um livreto debaixo do braço aproximara-se, dizendo-se pastor e oferecendo-se para salvar-me a alma. Sentado em uma das cadeiras para descansar, apenas agradeci e sorri dispensando a insana gentileza daquele homem. Sua oferta salvadora foi ofertada a outras pessoas que ainda permaneciam acordadas naquele imenso salão, quase vazio. As pessoas, indiferentes, apenas acenaram com a cabeça a negação da oferta. Entretanto, sua oferta não foi recusada pela estranha senhora de roupa colorida.

Após um breve descanso retomei minha lenta caminhada pelas, já quase vazias, instalações do terminal rodoviário do tietê. Tive a sensação de que aquela edificação também repousava, preparando-se para o caos que passaria a reinar naquele ambiente, após o amanhecer do novo dia.

Resolvi descer a escada rolante com destino aos terminais de embarque e observar as plataformas totalmente vazias. Ouvira até poucos minutos antes, os roncos dos motores, a diesel, dos ônibus que encerravam viagem, madrugada a dentro, e desembarcavam seus derradeiros passageiros. Era tudo silêncio, só interrompido por algumas vozes do pessoal da limpeza e manutenção, que ainda executavam sua rotina de trabalho. Percorri todo o corredor empurrando minha maleta e observando o trabalho daquelas pessoas. O trabalho delas seria de fundamental importância para a retomada do expediente, ao amanhecer.

Caminhando pelo corredor em um trecho que ainda não fora limpo, notei um pedaço de papel em um dos degraus de uma escadaria, junto à plataforma 36. Senti uma sensação estranha. Uma curiosidade inexplicável me fez abaixar para pegar o pedaço de papel, na verdade um cartão de visitas. O cartão de visitas oferecia os serviços de uma vidente, uma bruxa, feiticeira. Leitura das linhas das mãos, adivinhações e trabalhos de feitiçaria eram oferecidos, sem escrúpulos, pôr uma tal senhora do véu verde. Através dessa senhora, seria possível saber até o dia da própria morte, dizia uma frase em negrito no rodapé do cartão.

Achei engraçado os dizeres do cartão. Coloquei-o no bolso, intuitivamente, para quem sabe, servir de amuleto. Nunca acreditei muito nessas estórias, mas não custaria nada guardá-lo comigo.

Senti um calafrio instantâneo, logo que coloquei-o no bolso de minha camisa. Parecia que um sopro gelado penetrara minha espinha, refestelando-se em meu rosto. Senti um certo medo ao ouvir um zunido estranho junto a minhas orelhas e ver a passagem de um vulto ligeiro à minha frente.

Meio apavorado resolvi subir novamente a escada rolante até o saguão. De longe, notei que o tal pastor fazia uma espécie de prece para aquela mulher de roupa estranhamente brilhante. Notei, à distância, o brilho dos paetês de cor verde do véu que cobria a cabeça daquela mulher de baixa estatura e pele clara. Apressei o passo na direção dos dois. Uma rápida associação de idéias rondou minha cabeça, mexendo com meus neurônios. A mulher do vestido colorido poderia ser a bruxa do véu verde.

Estava prestes a me aproximar dos dois, quando um homem gordo e de barba por fazer, sentado em uma cadeira, pediu-me fogo para acender um cigarro. Parei para servir-lhe. O homem, segurando um jornal em uma das mãos, agradeceu com um sorriso amarelado pela nicotina dos vários cigarros que já havia fumado. Em fração de segundos a estranha mulher e o tal pastor desapareceram, já não estavam mais ali.

Sentindo-me estranho e assustado, resolvi sentar junto ao cidadão que me pediu fogo. O cheiro de cigarro exalava de todo o seu corpo suado e encardido. Tragou a fumaça do cigarro e abriu o jornal que estava em uma de suas mãos. Sempre observador e curioso notei que o jornal era de um ano atrás. Com o jornal aberto à sua frente e soprando baforadas de um cigarro fedorento, lia uma reportagem policial. Minha curiosidade aguçada quase matou-me de colapso. Á foto de um cadáver, sobrepunha a chamada da reportagem de página inteira: ÔNIBUS ATROPELA E MATA, EM PLENO TERMINAL DO TIETÊ, VIDENTE DO VÉU VERDE, QUE ADVINHOU O DIA DA PRÓPRIA MORTE.