Pisando Fora da Própria Sombra

Por Eliésio José da Rocha | 07/01/2011 | Sociedade

RESUMO
Informação Bibliográfica:
FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando Fora da Própria Sombra: A escravidão por dívida no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

As formas de aliciamento de trabalhadores envolvem a escravidão por dívida e o papel de cada um dos participantes neste cenário de pressões sociais e econômicas, violência simbólica e material, de sonhos e de estratégias individuais são a temática de PISANDO FORA DA PRÓPRIA SOMBRA, obra em que Ricardo FIGUEIRA procura
Explicar o por quê da manutenção desta forma de exploração que é a da escravidão por dívida, esta é a pergunta que atravessa o livro. Os dominados submetem-se, não por aceitar e legitimar a dominação, mas por uma tradição de subordinação que se repete de geração a geração. Em que a saída é também uma esperança de mudança, busca de jovens que saem e voltam numa sucessão continuada, repetindo um percurso que sabem ser perigoso, mas que, como numa tragédia grega, cumprem um destino. Destino imposto por aqueles que os vêem como objeto material do trabalho, usado sem atribuir-lhe qualquer atributo humano A partir de dados coligidos por meio de pesquisas de campo, em que foram entrevistados 105 pessoas e gravados 67 depoimentos, não só dos que diretamente haviam sofrido na pele o regime de escravidão por dívidas, mas também os seus familiares. Com isso o Autor procura desvendar toda a carga valorativa suscitada pela relação desses agentes sociais com o mundo bem como suas justificativas morais para agir ou deixar de agir.

Nessa tarefa FIGUEIRA se utiliza de um corpo teórico do qual fazem parte: GERRALD BERREMAN (1991), que descreve alguns desafios metodológicos do trabalho de observação e teoriza os princípios fundamentais das relações entre o pesquisador e o seu objeto de estudo: A relação entre o que chega para estudar e o estudado se realiza às vezes em conflitos, concordâncias e certo grau de imprevisibilidade. Aquele que estuda tam¬bém é estudado e, de parte a parte, a relação envolve "controle e impres¬sões". As reflexões sobre esse teatro, os bastidores e a plateia ? suscitadas por Erwing Goffman, inspiraram Berreman. No último caso citado, te¬mos que informações inesperadas se revelaram quando formalmente não havia entrevista e, de certa forma, íamos para os "bastidores".

CLIFFORD GEERTZ(1991 e 1999), para quem a função do antropólogo não seria a da mera observação as outras culturas como complexos estruturais, mas procurar compreender os membros dessas culturas em seus pontos de vistas mais peculiares.

De fato, Geertz acredita que os fenómenos culturais podem "ser tratados como sistemas significativos, capazes de propor questões expositivas" e que "a antropologia sempre teve um sentido muito aguçado de que aqui¬lo que se vê depende do lugar em que foi visto, e das outras coisas que foram vistas ao mesmo tempo".4 Ao tratar da "representação" e do "tea¬tro" em Bali, Geertz (ibidem), lembrando Weber, escreveu sobre o homem como estando "suspenso por teias de significação por ele próprio tecidas". Estas teias eram plurais ? palavras, melodias, arquitetura, ritos ? e nelas havia um "texto" a ser decifrado.

NORBERT ELIAS(1995 e 2000), que introduz conceitos como estranhamento, medo e fragmentação social, vividos pelos imigrantes, a partir de que desenvolve o significado do vocábulo de insider. Essa abordagem teórica é apropriada por FIGUEIRA como paradigma para o entendimento dos mecanismos relacionais, de resistência e de estranhamento entre os diversos grupos de trabalhadores aliciados, pertencentes a comunidades distintas.

GUIMARÃES ROSA, Autor de GRANDE SERTÃO: VEREDAS, obra em que desenvolve uma narrativa romanesca de base introspectiva, do qual FIGUEIRA tomará emprestado para analisar os medos que assolam todas as personagens que fazem parte do cenário, que vão desde os trabalhadores aliciados até os fazendeiros, donos de extensas áreas de terra, passando pelos gatos, fiscais, e chefes de equipe.

FIGUEIRA também recorre a DUMMONT (1987), utilizando-se de sua teoria que parte da análise dos coneitos do individualismo e do holismo, acentuado pelas suas reflexões sobre o indivíduo fora-do-mundo e dentro-do-mundo, que permite uma melhor apreenção das nossas categorias mentais modernas.Com isso contribuindo para uma melhor compreensão das relações entre o indivíduo e a sociedade que o cerca nas suas peculiaridades e semelhanças. FIGUEIRA recorre, sobremaneira, à concepção dummoniana do conceito de hierarquia, que em seu trabalho tem efeito capital. Deste ponto de vista, fica garantida no percurso de sua obra o suporte teórico que vai informar e explicar algumas das relações , tanto aparentemente harmônicas, quanto conflituosas que surgem no trato entre os peões escravizados e toda a máquina de aliciamento.

A partir de todo este referencial teórico, FIGUEIRA busca à explicação dos mecanismos que criam e retroalimentam as estruturas do aliciamento e da escravidão por dívida no Brasil, bem como quais seriam os elementos responsáveis pelo suporte ideológico, e social que suportam a recorrência reiterada dos trabalhadores aos locais de aliciamento, mesmo já tendo sofrido diversas agressões, tanto físicas, quanto morais. É essa tradição de submissão e de legitimação da dominação nas relações de trabalho nas fazendas por parte dos poderosos que constituem o objeto de estudo de FIGUEIRA.

O Autor , por fim , conclui, que, dentre outros fatores, que existe uma motivação não somente racional, mas também o desejo de experimentar o novo, de superar suas dificuldades financeiras e sociais, que faz com que os trabalhadores deixem, reiteradas vezes suas residência em busca de trabalho nas fazendas. Conclui também que as reações violentas fazem parte de um jogo simbólico de dominação com papéis nem sempre bem estabelecidos a exemplo da mobilidade existente nas estruturas mais humildes como peão, gatinho e pistoleiro.

Por fim, FIGUEIRA assevera a ignorância dos papeis desempenhados pelos atores sociais em ambos os lados, dos aliciadores e dos aliciados, ao discorrer sobre o que cada um acha de si mesmo.Embora boa parte dos fazendeiros saibam o que acontece em suas fazendas, enfrentam tal realidade como um fator necessário para a manutenção da ordem dos peões que não respeitam nenhuma ordem institucional afinal, "os peões não têm mãe" .Em contrapartida, os peões, algumas vezes chegam a justificar a ação dos proprietários de terra e dos gatos como necessária devido a esperteza de alguns peões. O que demonstra que os valores morais de tendência pré-moderna convergem nestes dois grupos, aliciadores e aliciados, em algum momento da sua relação.