Piancó

Por Ronaldo Almeida Nogueira | 01/08/2011 | Contos

PIANCÓ

No Ano de 1976, São Domingos já não era mais o mesmo povoado de outrora. Crescera com o passar do tempo, recebera mais moradores que chegaram de vários Estados, atraídos pela facilidade de arranjarem um pedaço de terra nessa região. Não era mais somente uma rua curta e constituída de palhoças, que era a maioria de suas habitações. Assumira a qualidade de distrito.
A sua primeira rua era agora a Avenida Jarbas passarinho e à medida que ia chegando mais moradores, ia se abrindo novas ruas. Já possuía mais duas ruas paralelas à primeira, de mesmo comprimento, uns quinhentos metros mais ou menos, que era a Rua Acrísio Santos, mais a baixo e a Duque de Caxias, mais a cima. Esta última originou-se da abertura de uma pista de pouso que o Exército abriu durante a guerrilha do Araguaia. A sua população já chegava quase aos mil habitantes. A Transamazônica já existia e lhe dava acesso à cidade de Marabá e Imperatriz, apesar das dificuldades no tráfego, pois no inverno tornava-se um só lamaçal, de ponta a ponta, transformando a viagem para uma dessas cidades em uma árdua aventura. Continuava ainda dependente do Município de São João do Araguaia.
Já possuía também mais cinco ruas transversais, começando todas na Acrísio Santos e morrendo na Duque de Caxias. Acima da Duque de Caxias, um pouco afastado, depois de atravessar um pequeno trecho de capoeira, chegava-se ao campo de futebol, onde os atletas de São Domingos batiam uma pelada todas as tardes, depois da labuta do dia em suas roças próximas ao povoado.
Com a chegada do Chico mineiro, que veio de Minas gerais, trazendo consigo o talento e o estímulo para os poucos torcedores que a partir de então passaram a comparecer no gramado todas as tardezinhas, para apreciarem as proezas do novo jogador que com a bola no pé fazia as moças, os rapazes, os velhos, as crianças e as raparigas do cabaré da velha Lúcia, o qual era um casarão erguido bem pertinho do campo de futebol, vibrarem durante as peladas ou jogos com os times de vilas, povoados e cidades vizinhas.
O Cordeiro era o treinador, técnico, presidente e massagista, praticamente o dono do time oficial; Já havia "pendurado as chuteiras", porém a paixão que nutria pelo futebol fazia com que ele, com grande esforço conseguisse reunir os jogadores no campo todas as tardes, depois de finalizadas as suas labutas diárias.
Chico mineiro com o seu talento fez crescer o estímulo tanto da parte dos jogadores, como da parte de Cordeiro e dos torcedores. Foi o que motivou o então Prefeito de são João do Araguaia a presentear o time com o patrocínio de um equipamento novinho em folha; Bola, camisas, calções, meias, chuteiras e até mesmo uma bomba de ar para encher a bola. A partir de então foi fundado o primeiro time de São Domingos do Araguaia; O Cruzeiro de São Domingos.
Cordeiro estimava o seu time, tratava como filhos a todos os jogadores, todavia um tratamento especial era dispensado ao Chico mineiro, que era tratado com mais carinho e respeito até mesmo pelos outros jogadores e simpatizantes do time.
Quando o Cruzeiro tinha que realizar jogos fora do povoado, Cordeiro era sempre quem encabeçava a fila de pessoas, torcedores e jogadores que viajavam a pé pelos caminhos vez por outra sombreados pela mata, rumo ao local do jogo. Uns carregavam o material do time, outros o estoque da cachaça que seria consumida de volta, na alegria da vitória ou na tristeza da derrota. Todos os jogadores e torcedores dividiam entre si os momentos de alegria e de tristeza do time. Isso quando se tratava de jogos em vilas e povoados vizinhos. Quando o joga era em cidades mais afastadas, como era o caso de Marabá, Brejo Grande, Palestina, São Geraldo, Itupiranga e outras mais, o Cordeiro sempre dava um jeito de conseguir o velho caminhão da Prefeitura, para o transporte dos jogadores e torcedores do Cruzeiro. Após a realização do jogo, retornavam em lenta e sacolejada viagem na estrada esburacada e sob uma constante poeira avermelhada. Uma garrafa de pinga corria de goela em goela em meio a uma balburdia alegre e inocente. Terminavam aquelas comemorações na venda do Lourenço, que dos comes e bebes era o patrocinador de sempre.
Tudo corria bem naquele ano, até que um dia o Chico mineiro caiu de cama, ardendo de febre, sentindo muita sede e vomitando um líquido grosso e escuro. Era num domingo e o Cruzeiro pela primeira vez em dois anos ia jogar desfalcado do seu craque. Perdeu feio para a seleção de Marabá. Seis a zero. Foi uma partida dura. Talvez aquele placar tivesse sido diferente se o Chico mineiro tivesse jogado. Foram chorar aquela derrota lá no cabaré da velha Lúcia, com bebida e tira-gosto por conta do Lourenço da venda.
Na madrugada fria daquela segunda-feira, os desportistas fartaram-se de tanto beber, dando-se por satisfeitos de tanta farra e algazarra acompanhados das raparigas de dona Lúcia.
? Foi seis a zero, tá direito, mas se o Chico tivesse jogado... ? Esse era o único comentário sobre aquele jogo, que o Cordeiro repetia em voz arrastada pelo efeito da pinga.
Soprava uma brisa suave que trazia consigo uma súbita preocupação dos amigos com o estado de saúde do Chico mineiro. Resolveram passar em frente à casa dele, para ver se ainda havia vestígios de gente acordada. Se tivesse tudo na escuridão, então seria um bom sinal; Se não...
A casa do Chico mineiro ficava bem em frente à casa do cordeiro. Somente ele caminhava silencioso em meio às vozes alegres do restante, as quais malinavam no silêncio dominador naquela hora da madrugada. De olhar fito na areia branca e fria do meio da rua, e que se tornava ainda mais alva ao contato com a luz da lua gorda prestes a se esconder no horizonte estrelado, iam se aproximando da casa do Chico mineiro.
Observaram que ainda havia luz de lamparina acesa naquela casa. A porta ainda se achava aberta. Entraram para ver como ia a saúde do companheiro, se ele já havia melhorado. Mas com aquela porta aberta e aquele rumorejar de vozes abafadas lá para dentro do quarto naquela hora da madrugada, era um forte indício de que a coisa não ia muito bem.
A luz da lamparina naquele quarto pobre transformava e deformava os rostos dos que ali assistiam aquela cena. Chico mineiro estava deitado em sua cama de varas, sobre um colchão forrado de capim seco e já bastante encardido pelo uso. Sentada ao seu lado, a sua mãe, dona Esmerinda, que soluçava com o rosto escondido entre as mãos e aqui acolá enxugava as lágrimas na barra da saia remendada e desbotada, sob a qual se escondia a encomenda da nova prole.
A um canto da parede de barro batido, o pai, seu Israel, observando a tudo, mantendo-se sempre calado, de cenho franzido, num silêncio de preocupação. Sua barba branca destacava-se no aspecto rutilante de sua pele morena escuro ao contato com a luz fosca da lamparina.
Geralda, a irmã mais velha, encontrava-se ao lado de Piancó, observando com atenção o movimento silencioso dos seus lábios e o esforço que aquele feiticeiro fazia para manter os olhos fechados enquanto rezava os seus encantamentos, apelando para a melhora do enfermo. Com a mão direita, tremulante, Piancó segurava uma vela acesa, a esquerda apoiava-se na testa pálida e febril do Chico mineiro. Mesmo com os imperceptíveis movimentos dos lábios, Piancó não conseguia esconder ou evitar a divulgação por todo o quarto, daquele hálito fétido de cachaça e fumo que consumia habitualmente. Vivia eternamente a beber e a mascar fumo de rolo.
Ao entrar naquele quarto, os companheiros permaneceram em silêncio. Percorreram com os olhos o semblante de seu Israel, de Geralda, observaram também o de dona Esmerinda que assuava o nariz já avermelhado de tanto esfregar na barra da saia, pairavam no enfermo de pálpebras cerradas, e por fim no urinol de ferro esmaltado e encardido, dentro do qual estava um líquido escuro feito fígado derretido.
? Seria o vômito do Chico ali dentro daquele urinol?
Piancó terminou a sua oração. Os bagos de suor escorriam-lhe pela testa de negrume rutilante. Levantou-se fazendo um grande esforço. Só então foi que Cordeiro saudou a todos os presentes naquele quarto:
? Boa noite, gente!
Somente Piancó devolveu um ligeiro gesto de cabeça para aquela saudação.
Como se estivesse somente esperando Piancó terminar o apelo para a cura do filho, dona Esmerinda começou a falar em voz interrompida pelos soluços e olhando para o doente deitado, de olhos fechados, resfolegando, e no rosto uma serenidade pressagiosa:
? Hô meu Deus, não leva o meu Chico agora, ele ainda é tão novinho... Ouve a oração do seu Piancó... ? Interrompia aqueles apelos para de novo enxugar as lágrimas na barra da saia.
? Calma, dona Esmerinda, ? Interrompeu Piancó ? Deus agora vai fazer o que tem de ser feito. Vamos esperar a vontade dele.
Virou-se para o Cordeiro e completou:
? Vamos tomar um arzinho lá fora? Aqui tá muito quente. Iche Maria! ? Finalizou grosando o indicador direito em arco pela testa suada.
? Vamos, Piancó.
Os dois saíram para o terreiro da casa. Ao chegarem do outro lado da rua, Cordeiro indagou ao feiticeiro:
? Aquilo dentro daquele urinol foi o Chico que vomitou?
? Foi ? Respondeu prontamente Piancó ? o coitado tá vomitando o figo. Tá com febre braba, a febre amarela afamada.
? Deus o livra, Piancó.
? Pode crer, irmão, o coitado do Chico num tem mais jeito não. Queira Deus que ele agüente vivo até amanhecer o dia. Febre braba não alisa não. Se for vacinado, aí num pega a bicha não.
? E agora, Piancó?
? Se acalme, irmão, deixa pra chorar na hora certa; Vamos entrar de novo e fazer companhia pra eles.
? Vou mandar Geralda avisar a Luza que hoje eu não chego em casa não. Se ela puder, que venha chorar junto com a gente. ? Cordeiro falava já com voz de pranto e com lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto.
Os dois amigos retornaram para a casa do Chico mineiro. Ao atravessarem a rua, soprou novamente aquela brisa fresca que pouco antes trazia consigo somente a preocupação. Agora aquela brisa trazia um ar de agouro, tristeza e a morte do Chico mineiro.
A voz do povo nada mais era que uma velha vitrola equipada com um aparelho amplificador de áudio e um microfone que juntos formavam o estúdio instalado no bar do velho Adoan. Lá para os fundos do quintal estava erguida uma torre de pau e no seu topo estavam amarradas quatro bocas-de-ferro viradas cada uma para um lado, de forma que as suas vozes se expandiam para os quatro lados. Todo aquele sistema de som era alimentado por um velho motor a diesel que roncava todos os dias, no período das seis horas da tarde às dez da noite, também estacionado e barulhando lá para os fundos do quintal do bar.
O velho Adoan cobrava uma taxa das pessoas que faziam uso da voz do povo. Geralmente Adoan atendia aos pedidos de fregueses do bar, que desejavam oferecer música a alguém, mandar algum recado, fazer declaração de amor; Atendia também a anúncios de utilidade pública, anúncios da Prefeitura, da Escola José Luis Cláudio, e por fim, o que era mais raro, uma nota fúnebre.
Aquela segunda-feira amanheceu fria e silenciosa. Não se ouvia o costumeiro trinado das pipiras festejando a fartura de mamões maduros nos mamoeiros plantados em quase todos os quintais do povoado. Os galos dos terreiros parecia ainda dormirem, atrasados na função de atalaias do amanhecer. Somente o ciciar do vento brando que bolia com as palhas dos açaizeiros no extenso açaizal que cobria o brejo de límpidas águas logo em baixo, um pouco depois da Rua Acrísio Santos, e que dava início a mata que se estendia por léguas e léguas na direção do Rio Araguaia.
Toda aquela melancolia matutina foi subitamente interrompida pelos chiados das bocas-de-ferro da voz do povo, para logo depois serem substituídos por uma melodia constituída de assovios tristes e conhecida de todos os moradores de São Domingos. A melodia terminou de soar. Todo o povoado estava na expectativa de ouvir a voz grave do velho Adoan a anunciar o nome do recém-falecido. Toda vez que a voz do povo fazia tocar aquela melodia, era que seria anunciado o falecimento de algum morador.
? Quem seria dessa vez? ? Era o que a maioria se perguntava. Quase ninguém sabia ainda da doença repentina do Chico mineiro. Até que a voz principiou aquele anúncio:
? ALÔ... SOM... TESTANDO... EXPERÊNCIAS... ALÔ... ATENÇÃO... ATENÇÃO, MUITO ATENÇÃO, POVO DE SÃO DOMINGOS DO ARAGUAIA. ESTAMOS EM EDIÇÃO EXTRAORDINÁRIA. COMUNICAMOS O FALECIMENTO DAQUELE QUE EM VIDA CHAMAVA-SE FRANCISCO ALVES DA SILVA, CONHECIDO POR CHICO MINEIRO. O MESMO FALECEU HOJE POR VOLTA DAS CINCO HORAS E TRINTA MINUTOS. SEUS RESTOS MORTAIS ESTÃO SENDO VELADOS NA RESIDÊNCIA DO Sr. ISRAEL ALVES PEREIRA E DE DONA ESMERINDA ALVES DA SILVA. O SEU SEPULTAMENTO SERÁ REALIZADO LOGO MAIS ÀS DEZESSETE HORAS NO CEMITÉRIO LOCAL. CONVIDAMOS TODA A COMUNIDADE A PARTICIPAR DESTE ATO DE FÉ E PIEDADE CRSTÃ. DE JÁ AGRADECE TODA A FAMILIA ENLUTADA.
À medida que o sol ia se levantando no céu sem nuvens, as pessoas iam chegando à casa de Israel. Todos os moradores da vila compareceram para velarem o corpo do falecido. Havia sido improvisada uma espécie de banco no terreiro da casa, que era apenas algumas tábuas compridas postas sobre alguns tamboretes, de forma que as pessoas podiam se sentar uns de frente para os outros.
Na sala estava o caixão de ripas de madeira serrada, vestido com um tecido barato e de cor branca, e dentro encontrava-se o defunto de fisionomia pálida e deformada, de olhos esbugalhados, teimosos em permanecerem abertos apesar das várias tentativas de dona Esmerinda na peleja para fechá-los, onde passeava uma mosca insistente e que era tangida por mão de Geralda.
Dona Esmerinda segurava um rosário, e era acompanhada pelo restante das mulheres que cantavam tirando o ofício do defunto.
Durante todo aquele dia a voz do povo anunciava tristemente aquela nota fúnebre acompanhada daquele fundo musical de uma tristeza capaz de partir o coração de qualquer um, até que finalmente chegou a hora do enterro.
Todos os moradores seguiam o cortejo encabeçado pelos jogadores do cruzeiro, os quais se revezavam no segurar as alças do caixão.
Já dentro da cova, antes de jogarem o primeiro punhado de terra, sobre o féretro foi depositada uma camisa do Cruzeiro, justamente a que tantas vezes encharcara-se do suor do Chico mineiro.
Caía novamente o crepúsculo sobre São Domingos. Um crepúsculo triste e ameaçador. Todos retornavam cabisbaixo e silenciosos, ouvindo o canto agourento da acoã que estava no último galho da castanheira seca que havia bem no meio do cemitério. Piancó que caminhava ao lado de cordeiro, começou a sua fala de voz fanhosa:
? Defunto que fica de olho aberto é sinal de que não morre sozinho. A desgraça ainda não passou de vez não. Deus queira que eu esteja enganado.
Reinou novamente o silêncio. Somente o arrastar dos chinelos e botas no chão piçarrento da rua. Agora um silêncio mais profundo. Talvez as palavras do feiticeiro provocassem aquele clima, pois todos davam crédito às suas previsões pressagas.
No horizonte viam-se nuvens negras que assumiam formatos de toda característica. Soprava um vento brando e calmo. Choveria naquela noite. Por detrás do cemitério, onde aquela parte do céu trajava um azul sem nuvens, o sol se escondia lentamente dentro de um horizonte rubro, deixando somente o embaçamento da mistura do dia com aquela primeira noite de inverno sem o Chico mineiro. Uma voz no meio da pequena multidão dizia:
? Hoje vai cair água, e muita.
? Dizem que quando chove no dia em que morre alguém, é que o morto vai direitinho pro céu. ? Dizia outra voz.
? Então o Chico tá salvo ? Completou uma terceira.
Naquela mesma noite o Cordeiro sonhou com o Chico lhe implorando para ser desenterrado. Dizia que não estava morto, que havia sido enterrado vivo. Estava sufocando dentro daquele caixão escuro, quente, abafado, apertado e umedecido pela água da chuva forte que caía em cima na terra. Pedia para ser desenterrado logo, antes que morresse de verdade pela falta de ar que lhe aperreava ali naquele lugar cheio de solidão.
Acordou pelo estalido ensurdecedor de um trovão que soou em meio à chuva torrencial e barulhenta que molhava toda aquela madrugada. Levantou-se da cama e abriu a janela do quarto. Ficou mirando os vultos da noite que se iluminava transformando-os em imagens nítidas das coisas, quando o céu era riscado por um relâmpago seguido do estrondo estremecedor de um trovão.
Meditou na hipótese de o Chico ter realmente sido enterrado vivo. Já ouvira muita gente falar em casos semelhantes. E aquela chuva? Quando foi dormir ao anoitecer não estava chovendo ainda. Será que o Chico veio lhe fazer aquele pedido era por ter acordado se molhando debaixo da terra, assim como ele, Cordeiro, também acordou com aquela chuva? Não tinha dormido na noite anterior. Ficara de farra até alta madrugada lá no cabaré da velha Lúcia. Amanhecera o dia na casa do Chico, velando-lhe em sua derradeira agonia. Passara o dia todo no velório, por isso tinha que dormir por aquele resto de noite. Tinha que ordenhar as suas vacas pela manhã bem cedo. Voltou para a cama.
Pela manhã acordou perturbado. Tinha novamente sonhado o mesmo sonho; O Chico lhe implorando, de olhos esbugalhados, de rosto pálido, com um ar de desespero, pedindo-lhe para ser desenterrado, dizendo que ainda estava vivo e que se não agissem logo ele morreria de verdade.
Contou para sua mulher aquele sonho, porém ela levou aquilo para o lado da fraqueza de Cordeiro, que não havia dormido e nem se alimentado direito durante o longo período da agonia e velório do Chico mineiro.
? O Chico tá morto, homem, tu tá é impressionado, viu? Com pouco isso passa, tu esquece e tudo volta ao normal.
Quinze dias depois, Cordeiro já havia definhado de forma vertiginosa. Perdera de vez o sono e o apetite, o interesse pelo trabalho, só tomava banho ou trocava de roupas à custa de muita insistência de dona Luza. Perdera o rumo das coisas; Era que ele não podia pregar os olhos, que sonhava o mesmo sonho.
Agora, já com um ar de loucura, aquela barba por fazer, o rosto pálido, o branco dos olhos de um amarelo de flor de algodão, sem o brilho da lucidez, aquele físico esquelético, falando só em desenterrar o Chico mineiro, que se não ele morreria de verdade, que ele fora enterrado vivo, andando de casa em casa, na igreja, falando com o padre Firmino, nas poucas vendas do povoado, perambulando feito uma alma penada e falando sempre a mesma coisa; Tinham que desenterrar o Chico. Ele estava vivo.
Aquela transformação repentina de cordeiro arrancava dó e compaixão dos corações dos moradores do povoado, e também o desespero da família.
? Desse jeito não demora muito para ele morrer também. ? Era o que diziam alguns.
Os moradores já se dividiam com relação às medidas que deveriam ser tomadas no sentido de livrar o cordeiro daquele penoso passar. Era de causar dó aquele estado, e por isso uma parte achava por bem levar-lhe para Marabá, para consultar um psic... psic... Psic sabe-se lá o quê...
? Psiquiatra ? Dizia Lourenço que era mais entendido.
? Não, primeiro era melhor desenterrar o Chico, quem sabe se ele não está vivo mesmo? ? Era o que achava o restante, que era a maioria.
? Depois de quinze dias debaixo da terra? Só se for um milagre. Desenterrar defunto é trazer maldição pro lugar, querem ver? Vocês vão ver. ? Dizia o feiticeiro Piancó.
Aquela indecisão girava de opinião em opinião, até que por fim, nela envolveram-se também o padre Firmino e o delegado. Depois de uma conferencia em reunião com o grupo de moradores mais influentes, decidiram por desenterrar o morto, não sem antes terem a autorização dos parentes do defunto, os quais também nutriam esperanças de vê-lo levantar-se com vida de dentro daquela cova. Somente o feiticeiro Piancó, que encabeçava o grupo da pequena minoria que era contra aquela decisão, era quem levantava a voz para alertar os inescrupulosos, sobre a maldição que certamente cairia sobre o povoado, como punição por aquele sacrilégio.
? Vocês vão ver! Tudinho vão pagar caro pelo que estão fazendo. E esse padre herege, ele é quem vai ser o primeiro a ser castigado, por ter autorizado tamanha heresia. Eu mesmo vou é picar a mula lá pra roça do meu compadre Careca. Não quero tá aqui quando a ira de Deus cair em cima desse povoado. Adeus pra quem fica. ? Dizendo isso, com a boroca nas costas, Piancó pegou o rumo da saída da rua, com pouco se sumia nos pastos e adentrava na mata, com destino à bagaço groso.
O monte de terra sobre a sepultura ainda não mostrava sinais de que havia baixado se quer um centímetro. As flores depositadas sobre a cova ainda não haviam murchado totalmente, pois a terra preta mantinha um visível sinal de umidade. Pelo menos nesse sentido, ainda havia sinais de vida no túmulo de Chico Mineiro. A não ser o canto agourento da acoã, que soava plangente todos os dias à mesma hora e no mesmo galho da mesma castanheira morta, não se ouvia outro ruído que não fosse o som abafado e surdo da pá que o coveiro manejava de encontro à terra fofa. Um pouco antes, ouviu-se a voz trêmula do padre Firmino que ordenava ao coveiro que começasse a cavar.
O coveiro deu início aquela tarefa por arrancar a cruz de madeira ainda nova, quase toda coberta por parafina derretida. Toda a multidão mantinha-se em silêncio e de olhos fitos em cada porção de terra que a pá retirava da cova, fazendo crescer gradualmente o buraco, chegando cada vez mais perto do caixão.
Cordeiro estava pálido e silencioso. O suor escorria-lhe pelo rosto. Suas mãos e suas pernas estavam trêmulas de nervosismo e de fraqueza. Estava ansioso por abraçar o amigo no momento em que ele se levantasse do caixão.
Todos os corações bateram mais apressado. Correu um frio perturbador pelas espinhas de todas as pessoas ali presentes, quando após alguns intermináveis minutos em que o coveiro havia começado aquela tarefa, seus ouvidos deixaram de ouvir aquele ruído abafado da pá cortando a terra, para ouvir o som de ferro tocando em madeira oca. Era a pá que tocava no caixão. Na medida em que a terra ia sendo jogada para fora do buraco, a multidão ia afastando para trás, para que a terra não lhes caísse sobre os pés.
Finalmente todo o caixão já estava descoberto de sob a terra. Agora só faltava abrirem-lhe a tampa e verificar se o Chico estava mesmo vivo ou morto.
? Padre, ? falou Cordeiro quebrando com a sua voz aquele silêncio pesado, repleto de mistério e medo ? deixa eu abrir o caixão!
? Pode, filho... Saia daí, coveiro, deixa que o Cordeiro abra esse caixão!
O padre tartamudeava, engolindo em seco, ordenando ao Cordeiro que entrasse na cova para abrir o caixão. Cordeiro entrou, desatou a fita de pano que prendia a tampa ao caixão e começou a movê-la. Muitos naquele momento tamparam os narizes, para evitar sentirem o mau cheiro do corpo aputrefado. Porém quão grande foi a surpresa para todos daquela pequena multidão; O corpo de Chico mineiro não havia entrado em estado de decomposição e tão pouco exalava mal cheiro algum. Continuava intacto, da mesma forma de como foi enterrado quinze dias atrás. Mesmo assim todos continuavam de nariz tampado, mas puderam sentir aquele bafejar morno que saiu de dentro do caixão e divulgou-se por entre a multidão que não pôde deixar de aspirá-lo. Aquela rajada de ar era tão morna, que Cordeiro, por está mais próximo ao caixão, chegou a merejar instantaneamente grandes bagos de suor.
Cordeiro então se convenceu de que seu amigo não fora enterrado vivo. Mirou por um instante o rosto do defunto, que demonstrava uma serenidade de quem dorme sossegado, e depois recolocou a tampa sobre o caixão, saiu de dentro da cova, ajoelhou-se e começou a soluçar baixinho, com o rosto entre as mãos. Suas lágrimas escorriam por entre os dedos. Muitos dos presentes ali não conseguiram conter a emoção e seguiram-lhe naquele pranto quase silencioso. Choravam também como Cordeiro. Choravam a desilusão de ver o Chico ainda vivo.
Passaram-se alguns minutos, até que a voz trêmula do padre Firmino rompeu o mistério e o silêncio daquele momento:
? Agora levante-se, Cordeiro, vamos rezar uma missa para encomendar a alma de Chico ao nosso Senhor.
O coveiro abriu novamente o caixão. Todos estavam impressionados com o que acabavam de testemunharem. O corpo de Chico mineiro não sofreu nenhuma transformação mesmo depois de quinze dias de sepultado. E para aumentar ainda mais aquele mistério, os olhos do morto agora estavam fechados, o rosto sereno, como se dormisse um sono inocente. Todos se perguntavam o porquê daquele fenômeno; Será um milagre? Será que o Chico foi mesmo enterrado vivo e veio a morrer sufocado dentro daquele buraco? Por que fechou os olhos somente depois de enterrado?
A missa já havia sido encerrada. Todos pegaram uma rosa colhida de uma roseira vizinha ao túmulo de Chico, e colocaram sobre o corpo dentro do caixão. O padre Firmino ordenou ao coveiro que recolocasse a tampa no seu devido lugar. Em seguida cada um jogou um punhado de terra dentro da cova. O coveiro recomeçou o enterro. Tudo como da primeira vez. Finda aquela tarefa, recolocou a cruz, acendeu uma vela e a depositou sobre um dos braços da cruz. Todos em silêncio começaram a se retirar do cemitério.
Aproximava-se o anoitecer. A acoã continuava com o seu canto. Ao longe, no horizonte, formava-se uma gigantesca nuvem azul escuro. Na mesma direção ouvia-se o longínquo reboar de trovões que anunciavam chuva grossa para aquela noite.
? Sentiu aquele bafo quente que saiu de dentro do caixão? ? Perguntou a voz de um que caminhava ao lado de Cordeiro.
? Senti. Não pude evitar respirar ele. Chegou a amornar tudo por dentro dos meus pulmões. ? Respondeu Cordeiro, que agora assumia a sua antiga serenidade, expressando novamente a sua antiga lucidez, como se aquele desenterro tivesse lhe devolvido a sua razão.
? Tomara que aquele bafo não tenha trazido a doença do Chico, Cordeiro, se tiver...
? Nada, amigo... Febre amarela não pega não!
? Eu é que não me confio.
Cordeiro tirou aquela noite de um só sono. Não teve mais aquele sonho perturbador. Restabeleceu-se a sua sanidade, assim sem mais e nem menos, convencendo aos que tomaram a decisão do desenterro, de que sua cura repentina se devia à exumação do corpo de Chico mineiro. Ao menos nisso fora benéfica aquela atitude.
Centenas de andorinhas saíam do teto da igreja, num vôo rasante e sobrevoavam o pequeno curral de arame farpado que havia do outro lado do campo de futebol. Cordeiro admirava-se com a coreografia daquelas avezinhas; As que formavam a testa da revoada, realizavam curvas no ar e retrocediam na direção da retaguarda, sem esbarrarem-se uma na outra, unidas formando figuras em uma nuvem escura e que se modificava com os movimentos de vai e vem. Quando as ultimas terminavam de fazer aquela curva, já as primeiras estavam retornando pelo mesmo caminho. Toda a revoada chilreava alegremente dando as boas vindas ao sol que se erguia bem por detrás do açaizal próximo ao povoado, naquela manhã, uma semana depois do desenterro de Chico mineiro.
Cordeiro atravessava o gramado do campo. Ia ordenhar as poucas vacas que ele criava soltas pelas poucas ruas do povoado. Respirava com satisfação o ar puro daquela fresca hora da manhã. Sentia-se completamente curado do mal que lhe atormentou por quinze dias até uma semana atrás. Depois do desenterro, nunca mais teve aquele sonho. Dormia a sono solto, feito uma pedra, comia com grande apetite, sentia-se completamente restaurado apesar de ainda condoer-se muito pela morte do amigo, porém aos poucos ia se habituando àquela realidade.
Agora, já de todo recuperado, achava um absurdo aquele desenterro. Não conseguia entender como as pessoas daquele povoado, o padre, o delegado e os outros o haviam atendido em semelhante pedido. Lembrava-se daquele desenterro com um amargo remorso. Era como se fosse ele o único culpado e responsável pela morte do padre Firmino e de Eneas coveiro, os quais faleceram com sintomas idênticos ao da morte de Chico. Ambos adoeceram num mesmo dia, ardendo de febre e vomitando um líquido grosso e escuro, dois dias depois do desenterro. Com certeza também contraíram a febre amarela.
Se não fosse pela sua insistência, não teria acontecido a exumação do corpo de Chico mineiro. Mas, fazer o que? Sentia-se com se tivesse acabado de acordar de um horrível pesadelo. Aqueles dias de angústia, em que sonhava todas as noites com o Chico lhe implorando para ser desenterrado, aquele sofrimento todo, aquelas perturbações acometeram-lhe por uma razão qualquer que ele jamais poderia entender. Só sabia que tudo aquilo não fora por fingimento. Se aquele mal durasse por mais tempo, certamente ele também já haveria de ter morrido. Era como se um espírito do outro mundo tivesse se encarnado em seu corpo, fazendo-o agir daquela maneira, por todos aqueles dias.
Por outro lado, lembrava-se também da maldição do além, como havia advertido o feiticeiro Piancó. Será se a morte do padre Firmino e a do Eneas coveiro já não era o prenúncio de tal punição? Cordeiro achava-se dividido entre a certeza e a dúvida, e em meio àquela ambivalência, enquanto caminhava rumo ao curral, foi quando subitamente sentiu um frio medonho percorrer-lhe por todo o corpo. Um repentino arrepio lhe eriçou todos os pêlos. Uma forte martelada na nuca principiou a latejante dor de cabeça e uma súbita náusea lhe fez imediatamente provocar vômitos.
Sentou-se à beira do caminho ensombrado pela capoeira que havia entre o campo de futebol e o curral, e vomitou tudo o que havia ingerido no café da manhã, em meio a um líquido em princípio de escurecimento e de um gosto amargo de fel.
De repente doíam-lhe todas as juntas do corpo. O frio súbito lhe fazia tremer e lhe abria um rombo por onde se esvaia o ânimo de retornar para sua casa. Tudo o que desejou naquele momento era estar sobre a sua cama e envolvido em grossos lençóis, para aquecer aquele frio capaz de lhe fazer bater as mandíbulas. Com muito esforço levantou-se e fez o percurso de volta pra casa. Chegou ardendo de febre. Ao anoitecer agravou-se ainda mais o seu estado e na manhã seguinte a voz do povo anunciava o falecimento do Cordeiro.
Durante aquele mês era difícil um dia em que não havia um ou dois enterros de vítimas da mesma doença. Morria gente tanto no povoado como nas roças pelos arredores. Um surto de febre amarela arraigou-se sobre são Domingos.
? É a maldição do além, como bem profetizou aquele negro cachaceiro, ? Diziam os que davam crédito às feitiçarias de Piancó? bem feito, quem mandou irem desenterrar um morto, mexer em quem tá quieto?
? Foi aquele bafo quente que saiu do caixão do Chico ? Diziam outros ? e passou a doença dele pros que estavam lá no cemitério naquele dia.
? E agora? ? indagava o Lourenço aos que comentavam o assunto, reunidos em sua venda naquela tarde, depois de enterradas mais duas vítimas ? o que é que se vai fazer?
? Eu bem que avisei, ? Disse Piancó, o qual se encontrava também lá na venda ? o jeito agora é um ir lá no São João e falar com o prefeito, para ele ir pedir ajuda lá no quartel do Exército. Aqui por perto só eles têm vacina. E tem que ser logo, se não, com pouco se acaba o povoado, viu?
No dia seguinte o Lourenço e Piancó foram até São João e falaram com o Prefeito, o qual imediatamente prontificou-se em atender-lhes, convidando os dois para acompanharem-no até ao quartel. Na velha rural da prefeitura, único automóvel capaz de romper as barreiras da esburacada e lamacenta Transamazônica da época, rumaram para o 52º BIS, situado na beira da estrada, a oito quilômetros de marabá.
No dia seguinte o pátio da Escola José Luis Cláudio amanheceu repleto de viaturas e barracas do Exército. A saúde batia nas portas do povoado. A fila era extensa em frente à barraca de vacinação. A barraca de odontologia atendia aos que já tinham sido vacinados, e fazia serviços de extração e obturação nos que padeciam de dores de dente. A barraca de enfermaria atendia aos que padeciam de leiximaniose, aplicando-lhes medicamento e distribuindo doses de glucantin, atendendo grávidas, velhos e crianças.
? Quem estiver sentindo febre, não pode ser vacinado. Por favor, dirija-se à enfermaria. ? Dizia em voz alta um militar que trajava por cima da farda um jaleco branco e com uma cruz vermelha gravada na altura do peito direito.
Somente um de toda a população do povoado, não quis ser vacinado; o feiticeiro Piancó.
? Não preciso disso não. Quem me garante é a fé em Deus e a raiz e casca de pau dessa matona aí que Deus deixou pra nós, viu?
Ainda houve mais uma morte durante a vacinação. A vítima não poderia ser vacinada, pois já se encontrava em estado avançado de contaminação da febre amarela. Faleceu mesmo no leito da enfermaria do exército.
A epidemia desarraigou-se e o povoado reassumiu a sua fisionomia monótona e de mesmice pacata e tranqüila de antes.
? Aquele feiticeiro não tomou a vacina, com pouco ele morre de febre braba, aí vamos ver se suas burundangas funcionam mesmo ? Era o que comentavam alguns críticos da feitiçaria de Piancó.
? Qual nada, ? Discordavam outros ? O Piancó já nasceu vacinado pelos santos que protegem ele...
Por comentários e falatórios, uns de bem, outros de mau, pela vida foi passando Piancó sem ser percebido pela morte, até ao ano de 2006, quando finalmente ela o enxergou, ele já com os seus 97 anos de vida que assistiu o germinar, o crescimento lento e as transformações na fisionomia de São domingos, até à sua adolescência, quando veio a falecer no leito do Hospital Municipal, assistido por médicos e enfermeiras, todos naturais do já independente Município.
Por toda a sua vida, nunca adoeceu, a não ser de bebedeira da cachaça que consumia habitualmente. Seu único embaraço talvez ainda esteja por vir, quando tiver que argüir o todo poderoso, na tentativa de com as suas palavras justificar as suas feitiçarias.