Personagente: Ao Espelho Da Consciência E Autoconsciência Duas Vozes Que Se Auto-revelam
Por Vicente alves batista | 20/12/2007 | LiteraturaPersonagente: ao espelho da consciência e autoconsciência duas vozes que se auto-revelam.
1. A priori, a personagente como voz
“O que deve ser revelado e caracterizado não é o ser
determinado da personagem, não é a sua imagem rígida mas o resultado
definitivo de sua consciência e autoconsciência, em suma, a última palavra
sobre si mesma e seu mundo.”
Bakhtin (1981:40)
Ao pensar sobre os entes da narrativa, ou da ficção, sempre ressoam na memória vozes, características ímpares: olhos de ressaca de uma Capitu, o intermédio entre a razão e a loucura de um Dom Quixote, os ciúmes de um Bentinho e Otelo, um Ser ou não Ser de um Hamlet. A densidade psicológica os fazem inconclusos, pensativos; espelha em suas consciências o giro do pensamento refletindo a si mesmo e o mundo, cuja substância dá-se, sobretudo, em suas vozes e discursos. A guisa de exemplo, perceba a voz de Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa (1956), seu discurso mostra uma consciência acerca do homem e sua inconclusibilidade: “Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas- mas que elas vão sempre mudando”.
Convém considerar que esses homo fictus são personagentes 1 (persona- gente), pois trazem à baila todo um comportamento humano no qual se evidencia a dúvida, a reflexão, a complexidade existencial prolixa e, principalmente, por possuírem voz, erigem discursos, não ficam atrelados apenas ao discurso do narrador-autor. No que tange a esse matiz, cita-se Joana, personagem de Perto do Coração Selvagem (1944) de Clarice Lispector, ela tem liberdade de voz; aliás como as outras personagens do romance- Lídia e Otávio:
“Eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidades, não o passado de corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante, não instante por instante: sempre fundindo, porque então viverei.” 2
É lícito dizer que os aspectos exteriores e sociais desses personagens não interessam de modo proeminente: o ponto nodal configura-se em seus caracteres interiores e a maneira pela qual se expressam; de fato, pode se dizer, que a mimese orienta-se à concepção da personalidade múltipla do homem. Segundo Antonio Candido, em Personagem de ficção(1968), a personagem moderna é complexa e múltipla porque autor pode combinar com perícia os elementos de caracterização com os modos-de-ser das pessoas. Nuança importante de ressaltar dessa afirmação é que não há aquela pergunta “quem essa personagem é ?”, visto que os modos-de-ser das pessoas também não têm explicação. Para lembrar, cita-se, de passagem, um Brás Cubas ou um Macunaíma; sobretudo, por não existir uma palavra que os defina, uma conclusão a fim de mostrar como exatamente são. Com efeito, tornam-se livres, com direito à ambigüidade e a indefinição à moda humana.
Destarte, este trabalho procura compreender a personagem enquanto voz e discurso, sob o prisma da personagem dialógica de Bakhtin, cujos princípios teóricos quebram com a concepção tradicional e linear desse ser; situa-se na imanência no pensamento independente da personagem: sua capacidade de consciência e autoconsciência, sua inconclusibilidade, e, sobretudo, pelo fato de possuir a última palavra sobre si mesma e o mundo.
Vale dizer que a percepção não se centraliza numa função-não há limites entre vilão e herói - ou numa classificação rígida. A personagem dialógica figura-se à luz de um discurso que se interpreta e que procura interpretar o pensamento dos outros sobre si. Sua liberdade de voz e discurso é o cerne de sua construção e, a partir desse princípio, a personagem ganha força ativa, por refletir através de suas próprias palavras. Dessa maneira, a tessitura das obras não se concentra nas ações, todavia, no pensamento das personagens, no seu discurso e voz..
O ponto salutar desse escrito engendra-se em torno da simbiose entre a teoria da personagem dialógica e a sua visibilidade no conto O Espelho de Guimarães Rosa (1962) e no conto O Espelho- Esboço de uma nova teoria da alma humana de Machado de Assis. Em ambos, o tema centra-se na questão entre essência e Aparência, as palavras da personagem Jacobina do conto de Machado explicitam bem essa tensão: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”. Aliás, nesse discurso, a personagem confecciona sua autoconsciência e sua consciência perante a vida: define as partes que integram o ser humano e chega á conclusão que o homem vive de uma máscara social.
1.2- A personagem dialógica: a voz que interpreta a voz do “outro”sobre si
No conto de Guimarães, o narrador-personagem, que não se identifica, na primeira pessoa, dialoga com um interlocutor, a que chama “senhor”, discute a questão da aparência e essência: conta as suas sucessivas experiências diante do espelho à procura de sua alma interior.O interlocutor não dialoga, mas o narrador-personagem, em seu monólogo, tem consciência das palavras do “outro” sobre o seu discurso; tem consciência da consciência do “outro”: “Vejo que começa a descontar um pouco de sua inicial desconfiança, quanto ao meu são juízo”.
Entretanto, no conto de Machado, um narrador dá voz à personagem, ou seja, ele abre-alas para outro narrador-personagem, pois Jacobina tem a palavra no seu domínio: define-se com um discurso “vivo”. Conta um caso de sua vida a outros personagens, o qual o levou à perda da sua essência e a uma teoria sobre as duas almas que se insere no homem: alma interior e a alma exterior. Narra, que ao ser nomeado Alferes, começa a viver dessa figura a ponto de ir perdendo a sua alma interior. Evidencia o ápice ao olhar a sua imagem desfigurada diante do espelho; só alma exterior se reflete ao colocar a farda de alferes:
“O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram‑se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou‑me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava ao posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou‑se no ar e no passado. Custa‑lhes acreditar, não?”.
Por isso, tem-se aí duas formas de interlocutor: um implícito e outro explícito. As palavras das personagens dos dois contos são bivocais: nelas soam, em clarividência, a voz de um outro; o que torna os textos polifônicos.
Todavia o que importa é o fato das personagens articularem seus próprios discursos. Os autores situam suas idéias nas vozes dessas personagens; conforme Bakhtin, o discurso sobre o discurso: não se pode se transformar um “homem vivo”, ao se referir à personagem, em objeto mudo.
2. A personagem Dialógica no Espelho
“Não é na categoria do “eu” mas na
categoria do “outro” que posso vivenciar meu aspecto físico como valor que me engloba
e me acaba.”
Bakhtin
Em símile à perspectiva da personagem dialógica, a personagem do conto O Espelho arquiteta-se de modo autônomo, sua voz e discurso não se confundem com a voz do autor: configura-se tal qual um discurso pleno, uma voz pura que se auto-revela. Trata-se do “homem no homem” consoante Bakhtin, a personagem abre sua consciência para a palavra de um“tu”, mas só ele com sua voz produz a semântica de si: o questionamento, sua sensibilidade, seu ímpeto em buscar a essência emanam do plano da sua consciência. Percebe-se isso, claramente, no momento em que se olha no espelho e não vê mais sua imagem refletida ou sua alma; a dúvida e angústia emergem na água de sua consciência : “(...) Não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um des-almado?”( O Espelho, p.126)
Ao passo que vai relatando suas experiências diante do espelho, mostra-se, também, consciente de suas palavras no “outro”, visualiza o sentido e o efeito que seu discurso provoca, ou seja, tem consciência de seu discurso. Como se nota no trecho a seguir em que o narrador personagem se antecipa a uma possível dúvida do interlocutor: “Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles não de mim.”(O Espelho, p.121)
Desse ponto de vista, a personagem no seu microdiálogo posiciona-se no lugar do seu interlocutor, toma consciência do que “outro” pode falar; como diz Bakhtin, conhece as possíveis refrações de sua imagem nas outras consciências. “Estará pensando que, do que eu disse, nada se acerta, nada prova.”(O Espelho, p. 121)
O fundamental na arquitetura dessa tipicidade de personagem é a sua acepção enquanto ponto de vista específico sobre o mundo e si mesmo (...) o que o mundo é para personagem é e o que ela é para si mesma.(Bakhtin, 1971:39). A personagem de Guimarães situa-se no plano dialógico, justamente pelo fato de ter dimensão da realidade e de si mesma; elucida, embora com dúvidas, que a vida incorpora uma intersecção de planos que acabam de formar as almas, fazendo com que as pessoas percam a essência. “Será este nosso desengonço e mundo o plano – intersecção de planos – onde se completam de fazer as almas?” (O Espelho, p.128)
3- Abre parênteses: o contraste entre a Personagem Dialógica e Monológica - “a voz x grunhido”
Os procedimentos artísticos, os quais servem de alicerce para a constituição das personagens, tanto dialógica como monológica , variam quanto à concepção de homem que queira se representar; entende-se, logo, tratar-se de um tom antropológico na criação literária. Deduz-se, por essa via, que a personagem do ponto de vista dialógico perfila bem o aspecto “integral do homem”, e assim o é, pelo princípio da voz e discurso e o pensamento inacabado: não há só uma palavra que o resuma. Machado, no conto o Espelho- Esboço de uma Nova Teoria da Alma humana, mostra bem isso ao dar voz à personagem Jacobina, cujas idéias ouvem-se da própria personagem: “ O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade”. Se o autor deixasse no plano apenas do narrador, não haveria uma personagem dialógica, mas uma personagem monológica, muda e sem consciência. Seria, ao tom de Bakhtin, uma coisa que se pode analisar, antagônica ao perfil do ser humano pensativo e com voz. Ademais, a voz é a maneira pela qual se distingue o ser: é a sua capacidade de produzir discurso e de se conhecer.
No veio do dialogismo, a personagem não é algo estático, mudo, ou erige apenas grunhidos como a personagem tradicional monológica, porém constrói uma sintaxe que procura se autodefinir. Enquanto a outra não dialoga consigo mesmo, é definida , conclusa e o autor fala por ela: um quadro em que se conhece os lados; a personagem dialógica fala, constrói seu discurso e tem uma forma circular, isto é, não possui começo nem fim. Com intuito de estabelecer uma analogia com essas diferenças, pode-se trazer à baila uma Capitu de Machado e uma Luísa de Eça de Queiroz: a primeira é inconclusa dissimulada, a ponto de não se saber “quem ela é”; a respeito segunda personagem, por outro lado, se conhece tudo: existe uma conclusão.
- Discurso pleno
- Liberdade de voz
- Autor fala com a personagem
- Inconclusa
- Possui consciência e autoconsciência
Personagem Dialógica
- Imagem objetiva pelo discurso do autor
- A palavra da personagem depende das palavras do autor sobre ela
- Conclusa.
Personagem Monológica
A palavra é o cerne diferencial- a “substância da vida”- para usar uma expressão de Brás Cubas, da personagem dialógica. A capacidade de articular a “palavra” difere a personagem dialógica da monológica. No herói dialógico, o seu discurso é vida que transparece: seus medos, suas angústias e suas dúvidas. A personagem monológica, porém, pode até utilizar palavras, mas dessas palavras não surge a substância independente; permanecem à margem da autoconsciência e não imergem no pensar de maneira a produzir um discurso independente do autor.
4- O criador dialógico e o livre arbítrio da voz da Personagem
“Não se pode transformar um homem vivo em objeto mudo.”
Bakhtin (1981:49)
O autor, nos “media expressivos” do dialogismo, incorpora tudo no campo de visão da personagem; ele introduz tudo no cadinho da autoconsciência.(Bakhtin, 1981:42).Por conseguinte, trata-se de uma mudança de representação artística da personagem; não importa como o autor a descreve, porém a proeminência da representação acha-se, de fato, na percepção da realidade pela própria personagem: o que ela é para si. Ouça, a guisa de exemplo, a voz da personagem Jacobina: a sua autoconsciência (em negrito) diante da situação vivenciada no passado.
“Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia‑me de alferes, e sentava‑me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia‑me outra vez. Com este regímen pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir...”
O conceito de autoconsciência é definido assim por Bakhtin:
O que é que eu entendo por “eu”, ao falar e ao viver: “eu vivo”, “eu morrerei”, “eu sou”, “eu não serei”, eu não tenho sido”. Eu-para-mim e eu-para-o-outro, outro-para mim. O homem frente ao espelho. O não-eu em mim, algo que é maior do que em mim, o ser em mim .(Bakhtin, 1979;369)
Portanto, com a autoconsciência a personagem tem um horizonte maior: orienta-se na vertical do seu “eu” e na horizontal do “tu”. No seu pensamento se compreende um entroncamento de vozes do qual surge a linha da verdade para si, nada é dito pelo autor no que diz respeito a sua definição : a palavra cabe a personagem.
A criatura fala com o criador, o discurso do autor dilui-se no discurso da personagem: o discurso sobre o discurso.Veja isso no conto O Espelho de Guimarães no qual todo discurso do autor se insere na percepção do narrador-personagem. Observa-se que, ao proceder assim, o autor dá autonomia para a personagem pensar, equivocar-se e procurar seu próprio rosto: para interpelar “quem ele é”. Desse modo, se a palavra ficasse somente no âmbito do autor, a definição não seria a mesma, ganharia outro sentido: a personagem seria um objeto descritivo e destituído de vida. Em concernência a essa idéia, Bakhtin(1981:50) diz que a verdade sobre o homem, na boca dos outros, não-dirigida a ele por diálogo, transforma-se em mentira que o humilha e mortifica.
Compreende-se, portanto, um “Grande diálogo” no qual não existe a anulação de nenhuma das vozes. Verifica-se isso no conto de Machado, posto que a personagem Jacobina tem a liberdade discursiva; o narrador tem sua voz ao lado da voz da personagem.
A personagem enquanto voz e discurso caracteriza-se, essencialmente, em face de sua subjetividade: nuança que o incorpora e o ratifica como indivíduo na ótica da dialogia. Nesse ponto, a personagem revela-se e responde por si mesma. Assim, nos contos de Machado de Assis e Guimarães Rosa, as personagens são verdadeiros indivíduos, cujas vozes organizam um discurso que se auto-revelam ao espelho da consciência e autoconsciência.
Na verdade, a liberdade de voz dessas personagens é um momento da idéia dos autores, criada por eles de tal forma que se pode se desenvolver como voz do “outro”: a voz autônoma das personagens.
5- Uma conclusão da inconclusão
De tudo exposto, fica evidente que enveredar a leitura à luz da personagem dialógica nos contos de Machado e Guimarães, apesar da diferença entre ambos no âmbito da narrativa, traz a percepção, de modo profícuo, da personagem moderna. O feixe de características tem como ponto nuclear a voz, ou seja, a liberdade da personagem engendrar seu próprio discurso diante da realidade e, do qual, em sintonia, surge a inconclusão: não se pode definir essas personagens, pois a representação artística tange um modelo de personalidade à moda humana. Para usar as palavras do narrador-personagem de Guimarães: “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério.”
Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, M. “A personagem e seu enfoque pelo autor na obra de Dostoiévski”, in Problemas da Poética de Dostoiésvski, Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
__________.(1979). Estética de la creacion verbal. (comp. de Trábalos inéditos escritos entre 1919 e 1974. 1ªed. em russo em 1979) Trad. Tatiana BuBnova. México: Siglo XXI, 1982,p.145.
Bakhtin, dialogismo e construção do sentido/ Beth Brait (org.) Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, p.320.
CANDIDO, Antonio. A personagem de Ficção. São Paulo, Perspectiva, 1968, p. 29.
LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem, 2ª ed., São Paulo, Francisco Alves, 1963, p.12.
ROSA, João Guimarães. “O Espelho” , in Primeiras Estórias. 15ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, pp. 119-128.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. “O Espelho”, in Contos. Porto Alegre: L&PM,1999, pp.28-42.
1 Neologismo de Guimarães Rosa .
2 LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem, 2ª ed., São Paulo, Francisco Alves, 1963, p.12.