Perfume Francês

Por Joaquim Renato de Moraes Barros Filho | 22/12/2015 | Contos

Perfume Francês

Todo ano a família se reúne para a ceia de natal em algum lugar do Brasil. Naquele ano foi em nosso sitio, em Imperatriz. Tudo corria normalmente: lista de convidados confirmada, comida e bebida providenciadas e a comunicação prévia de que haveria um ‘amigo da onça’ antes da ceia. Pra quem não sabe, amigo da onça é uma brincadeira onde as pessoas são levadas natural ou forçosamente ao desapego das coisas mundanas. Bem apropriado para o período natalino e que deveria valer para o ano inteiro.

Funciona assim: Estabelece-se uma faixa de preços para os presentes a serem comprados e levados por cada participante. Dentro dessa faixa qualquer coisa vale, desde que seja considerada um presente. Assim que todos chegam à festa cria-se uma lista numérica, com a quantidade de pessoas presentes e faz-se um sorteio, com papeis enrolados onde cada um tira o seu. A brincadeira começa e o primeiro participante, o #1, apanha um presente qualquer no monte de presente, abre, mostra a todos e fica com ele. O #2 vai ao monte de presentes, pega qualquer presente, e antes de abri-lo decide se quer ficar com o presente fechado ou pegar o presente do #1. Ai começa o desapego que, via de regra, acomete de medo os humanos. A brincadeira continua e daí se descobre que uns quantos trouxeram presentes bons, pra subir o nível da brincadeira, e uns outros resolveram ser sarcásticos e trazem uns presentes sem nenhuma utilidade, só pra apimentar, instigar e deixar a noite mais animada. É permitido e incentivado que os participantes falem, em coro, o jargão “desapega, desapega, desapega...!”, que se assemelha ao que se vê em propagandas na TV mas que, com certeza, é mais antigo.

Ao contrário que se pensa, o #1 é o felizardo da noite porque à medida que a troca de presentes evolui aumenta a quantidade de presentes expostos e o #1, por regra, pode ao final da distribuição escolher qualquer um dos presentes. A brincadeira tem pequenas variações em sua aplicação e as regras devem ser faladas a todos antes do seu inicio e isso foi feito, com bastante clareza, naquela noite.

As pessoas foram chegando e a impressão que se tinha, após mais da metade ter chegado, é que algumas tinham vindo em dois carros, porque parecia que tinha mais carros do que gente, de modo que, quando chegasse a hora de ir embora, as que chegaram primeiro teriam que esperar a saída dos atrasados.

A brincadeira teve inicio com meu sobrinho de 14 anos, que foi o #1. Aos gritos de ‘desapega’ e muita risada com a reação de desapontamento de alguns que já se achavam donos de presentes que tinham tirado de outras pessoas, todos seguiam animados e contentes. Talvez por conta da bebida, que era servida na quantidade que cada um gosta de beber ou pela falta de atenção, característica de minha natureza, não percebi que um tio, de uns 60 anos à época, havia pegado no monte um presente e não mostrou interesse em trocá-lo com qualquer presente que fora exposto até então. Era um pacote pequeno, enrolado com um papel azul escuro. Quando exposto, o foi feito apenas até a caixa, preta, e logo recolhido. Depois, fiquei sabendo, para que fosse esquecido por todos.

Dos trinta participantes meu tio era o #17 e era conhecido como um sujeito sistemático, que não gosta de ser contrariado, característica de um certo ‘pseudo Coronel George’, que confesso ter herdado da família.

Ainda por vir, tinha minha prima com o #23, cujo representante era uma criança de uns sete anos, filho de seu vaqueiro, e muito querido por todos. Acontece que essa prima, alguns ali sabiam, não se cheirava muito com meu tio – coisa que ocorre em toda família- e a criança, coincidência ou não, quis aquele presente que, de forma meio sorrateira, havia sido ocultado para retornar pra casa com a mesma criatura que o comprou. Meu tio, ao ser procurado pelo garoto pra trocar seu presente por uma coisa desconhecida que acabara de ser pega do monte, se recusou e, a galera já animada, aumentou o tom do coro de ‘desapega’ pra ver o circo pegar fogo.

Como dono do sítio, fui nomeado juiz daquela questão da qual não tinha muito conhecimento. De um lado o garoto que representava a prima e que, pra provocar celeuma ou não, estava dentro da regra. Do outro um tio que bradava que aquilo era um presente especial, um perfume francês, que havia comprado e colocado na brincadeira, mas que não estava disposto a entregar a ninguém. Foram três longos minutos de convencimento e alguns gestos malabares onde eu tentava pegar o presente e o tio o escondia. Enfim, justiça feita, regra cumprida, um desapego mor conseguido a duras penas e a distribuição de presentes recomeçou, com o tio numa zanga só, de cara amuada.

Óbvio que do #23 ao #28, que era eu, o perfume rodou na mão de uns três. Virou o troféu mais cobiçado. Deixa que a minha ideia era pegar o presente e, ao final da brincadeira, devolvê-lo ao meu tio e apaziguar a situação constrangedora e ao mesmo tempo divertida pela qual, surpreendentemente, todos nós estávamos passando.

Quando chegou sua vez, a #29, minha outra irmã (que não era a mãe do meu sobrinho #1), bagunçou de vez o que estava mais ou menos equacionado, pegando de mim o perfume, e, contrariando totalmente a regra, entregando-o ao tio, sob os protestos dos que, com o espírito natalino embebido pelo álcool, esperavam um motivo pra aumentar a liberação de adrenalina, e começaram a gritar de novo: ‘desapega, desapega, desapega!’ e ‘não vale, não vale!’.

Mas o amigo da onça não tinha acabado. O  #30 trocou presente normalmente e chegou a vez do #1 fechar a brincadeira, como reza a regra. Eu desconfiava, mas não acreditei quando meu sobrinho pegou o presente que lhe restou daquela noite (talvez o mais fuleiro de todos por conta de ter sido várias vezes obrigado o exercer o desapego) e, cheio de coragem ofereceu ao tio, pedindo o desejado perfume. Foi a gota d’água! Meu tio ficou muito puto, bradou que não dava o perfume ‘nem a pau, Juvenal!’

Eu, a essa altura já sem forças por conta da sucessiva quebra das regras, não me meti mais. Resultado: o tio botou o perfume debaixo do braço e rumou pro carro. Chegando lá, se deu conta que não tinha como ir embora, seu carro tinha ficado preso e os participantes, não sei porque, não se moveram para ajuda-lo. Só lhe restou, então, se afastar do povo mais eufórico e ficar com o perfume querido, mas também com o carinhoso apelido de ‘Tio Perfuminho’.

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