Percursos possíveis pelo legado crítico da obra "Amor de Perdição" de Camilo Castelo Branco

Por Nayara Martins Leal | 13/03/2012 | Literatura

UNIVERSIDADE ESTADUAL VALE DO ACARAÚ-UVA

CENTRO DE FILOSOFIA, LETRAS E EDUCAÇÃO - CENFLE

CURSO DE LETRAS – HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA

 

 

 

 

NAYARA MARTINS LEAL

 

PERCURSOS POSSÍVEIS PELO LEGADO CRÍTICO DA OBRA AMOR DE PERDIÇÃO DE CAMILO CASTELO BRANCO

 

 

 

 

 

 

 

SOBRAL – 2011

 

NAYARA MARTINS LEAL

 

 

 

 

PERCURSOS POSSÍVEIS PELO LEGADO CRÍTICO DA OBRA AMOR DE PERDIÇÃO DE CAMILO CASTELO BRANCO

 

Monografia apresentada à Universidade Estadual Vale do Acaraú como requisito parcial para obtenção do título de graduada em Letras- Língua Portuguesa.

                                            Orientadora: Profª. Esp. Maria Vânia Abreu Pontes

 

 

 

 

 

 

SOBRAL – 2011

PERCURSOS POSSÍVEIS PELO LEGADO CRÍTICO DA OBRA AMOR DE PERDIÇÃO DE CAMILO CASTELO BRANCO

 

Monografia apresentada à Universidade Estadual Vale do Acaraú como requisito parcial para obtenção do título de graduada em Letras- Língua Portuguesa.

___________________________

Nayara Martins Leal

 

Monografia aprovada em:______/______/______

Orientadora:____________________________________________________________

                      Profª. Maria Vânia Abreu Pontes, Esp (UVA)

 

1º Examinador:__________________________________________________________

                         Profª. Maria Elisalene Alves dos Santos, MSc (UVA)

2º Examinador:__________________________________________________________

                        Profª. Francisca Licyane Rodrigues, MSc (UVA)

 

 

Coordenador do Curso:

___________________________________

Maria Lúcia Pontes Parente, MSc (UVA)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dedico esse trabalho a minha família, que tanto me encorajou, e em especial, a Francisco Leal Neto e Maria Ivonilde Lopes Martins, meus pais. A quem tanto amo, pelo exemplo, sabedoria e intenso amor com que me educaram.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Agradeço primeiramente a Deus pela força que me deu, iluminando meus caminhos e escolhas durante esse tempo, o qual não me permitiu desistir. À minha família, que sempre confiou em mim, amparando-me e encorajando-me na realização de meus sonhos, em especial, aos meus pais, pelo amor incondicional. À Universidade Estadual Vale do Acaraú e ao Curso de Letras. A todos os colegas de sala, em especial, á Alessandra Harumi, Fernanda dos Santos, Priscila Xavier , Simone de Lima e Alexciene Bastos, pela cumplicidade, amizade e carinho que nasceu nesse processo, mas se estendeu além dele. A todos os meus professores que tanto me ensinaram, em especial, á Vânia Pontes, minha orientadora, a quem aprendi a admirar. A ela o meu incomensurável agradecimento pelo apoio, paciência e, principalmente, o incentivo,  fator que me ajudou a ir adiante nas pesquisas. E a todos os demais que de uma forma ou de outra se fizeram presentes nesse período.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“A minha fala nada mais é do que um convite para outros também entrar nesse vale de sombras. E com prazer descobrir a genialidade desse autor que não merece ser lembrado apenas como um anacrônico mago da religião do amor”.

                                                                      Paulo Motta

RESUMO

 

 

Neste presente trabalho monográfico de natureza teórico – bibliográfica, analisaremos o legado crítico da obra Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco com intuito de desconstruir a imagem do romance “biográfico-passional. Para tanto, procuramos questionar a imagem cristalizada de Camilo como autor de novelas passionais e legítimo representante do ultrarromantismo português. Assim, contrapomos estudos críticos acerca das classificações simplistas e reducionistas que acometem a estética literária da produção camiliana. Para melhor desenvolvermos esse trabalho, dividimo-lo em dois capítulos. O primeiro diz respeito a visão panorâmica do Romantismo à ficção camiliana sob os olhares conservadores da crítica tradicional. O segundo capítulo visa contestar as classificações tradicionais desnudando a crítica e as reflexões metaficcionais  que subjazem a obra em estudo. Dessa forma, tomamos como escore os estudos de Bakhtin (1997), Coelho(2001), Ferraz (1987), José Régio (1964), Moisés (2006), Paulo Franchetti(2003), Saraiva e Lopes (2001), entre outros que subsidiaram teoricamente esse trabalho.

Palavras - chave: Amor de perdição. Camilo Castelo Branco. Paradigma “biográfico-passional”. Legado crítico.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SUMMARY


In this monograph theoretical - literature, we analyze the critical legacy of the work Doomed Love, by Camilo Castelo Branco in order to deconstruct the image of the novel "biographical-passionate. To do so, we question the image crystallized Camille as the author of novels and passionate ultrarromantismo legitimate representative of the Portuguese. Thus, counterpose critical studies about the simplistic and reductionist classifications that affect the aesthetics of literary production Camilo. To better develop this work, divided it into two chapters. The first concerns the panoramic view of Romanticism Camillian the fiction under the eyes of conservative traditional criticism. The second chapter seeks to challenge traditional classifications baring criticism and reflections metaficcionais that underlie the work under study. Thus, we took as score the studies of Paul Franchetti (2003), Joseph, Regal (1964), Hail and Lopes (2001), Rabbit (2001), Moses (2006), Bakhtin (1997), Ferraz (1987), among other theory that supported this work.
Keywords - Keywords: Love of perdition. Camilo Castelo Branco.Paradigma "biographical-passionate." Legacy critical.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

 

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................09

 

2  ORIGENS E DESDOBRAMENTOS.......................................................................12

2.1  Visão panorâmica do Romantismo à ficção camiliana........................................13

 

3    AMOR DE PERDIÇÃO: UMA OBRA COMPROMETIDA COM O FAZER LITERÁRIO E O MUNDO SOCIAL.............................................................................23

3.1  A ficção camiliana para além do romance biográfico-passional..........................23

3.2  Sociedade oitocentista: instituição familiar e costumes......................................28

3.3  Moral cristã: vícios e virtudes..............................................................................33

3.4  Do sério ao cômico: a imagem das personagens...............................................36

3.5  Texto camiliano: o romance nas mãos do leitor..................................................40

 

5 CONCLUSÃO..........................................................................................................47

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................49

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1  INTRODUÇÃO

 

Os estudos especializados[1]da literatura portuguesa do século XX registram, ao longo de seu desenvolvimento, o escritor Camilo Castelo Branco como sendo referência para compreensão da literatura de transição entre o Romantismo e o Realismo, na qualidade de “homem entre dois mundos” (LOURENÇO, 1994, p.219). Nasceu em 1825, deu início ao seu oficio duas décadas depois, encerrando-o com a sua morte em 1890, chegando a publicar 137 títulos, organizados em 180 volumes escritos durante quatro décadas. Entretanto, mesmo tendo assumido a condição de poeta, teatrólogo, crítico literário, editor e tradutor, foi como autor da obra Amor de Perdição (1862) que Camilo Castelo Branco se consagrou no meio literário por excelência.

Por meio do romance Amor de Perdição (1862), interessa-nos problematizar neste trabalho monográfico, a imagem cristalizada da ficção de Camilo Castelo Branco, procurando mostrar o legado crítico[2] da sua produção ficcional. Nessa perspectiva, algumas questões se impõem: será Camilo um escritor fundamentalmente ultrarromântico, autor, em especial, de novelas passionais? Será um homem incompreendido por boa parte da crítica literária? Quais as contribuições dos novos estudos no âmbito literário para desconstrução da imagem cristalizada do autor de Amor de Perdição? Tais perguntas são algumas das quais nortearão as reflexões desenvolvidas ao longo desse trabalho.

A discussão em torno das inquietações suscitadas no curso dessa pesquisa tomará por base a relação entre a obra Amor de Perdição e o vigoroso juízo da crítica literária, fortemente enraizada nos períodos que antecedem e sucede a atuação de Camilo Castelo Branco como escritor.

Com essa proposta de pesquisa, objetivamos analisar a crítica conservadora da obra camiliana, tentando nos desvincular de qualquer modelo paradigmático imposto durante tanto tempo e que ainda sobrevive por meio de estudos superficiais. Assim, procuramos compreender a obra Amor de Perdição, sob novos olhares críticos. Buscando nela, não somente as características habituais que a enquadram na estética romântica, mas as suas peculiaridades e detalhes que fizeram com que a mesma transcendesse o seu tempo, apresentado até hoje as vozes circulantes de um rico legado crítico.

No primeiro capítulo, mapeamos linhas interpretativas que versam sobre as origens e os desdobramentos do Romantismo no fulcro da produção camiliana, tomando por base a dessacralização do signo puramente romântico que persegue a obra em estudo. Considerar Camilo como um escritor marcado univocamente pelo ultrarromantismo ou autor de novelas passionais, parece-nos ser de fato, uma espécie de limitação dos estudos literários, de que sua obra foi vítima.

De fato, o viés investigativo destacado acima põe em debate elementos macroestruturais do texto ficcional, que se diferencia dos habituais estudos despendidos ao autor de Amor de Perdição. Os julgamentos calcados nos lugares-comuns românticos da vinculação da obra camiliana, servem para apresentar uma imagem fixa da produção do autor, formando um ciclo vicioso, só interrompido a partir do século XX pela crítica mais especializada, que vem considerar Camilo: um escritor comprometido com a sua obra.

O segundo capítulo discute as recorrentes críticas elucidadas pelo autor na obra Amor de Perdição, isto é, os recursos encontrados na narrativa, que visam atender os anseios do público leitor e da sua condição de escritor frente à estética romântica, às motivações psicológicas e às adversidades do meio sócio-cultural em que vive a sociedade portuguesa oitocentista. Nesse sentido, a ideia do romance “biográfico-passional” sucumbe-se a partir das análises feitas por estudiosos que postulam o reconhecimento da fortuna crítica da produção camiliana. Vale a pena salientar que a marca de excelência de Camilo reside em ele saber ser escritor das suas circunstâncias: saber assumir o seu tempo, criticamente naquilo que ele tem de emergente e futurista. É esta assunção das circunstâncias, o saber lê-las e tirar delas a visão futura, que requer o reconhecimento do grande legado crítico deixado por Camilo em Amor de Perdição. Legado que não reside tanto no seu “ultrarromantismo”, mas no modo como, através da sua escrita, aprendemos a ler criticamente. “Eu desejo escrever o romance de modo que o meu leitor – se Deus me deparar um com experiência do mundo [...] – possa dizer: ‘a vida é isto’...” (CASTELO BRANCO, 1984, p.20).

            Trazendo consigo as insígnias do contexto em que foi produzida a obra Amor de Perdição, procuramos refletir sobre as representações do legado crítico de Camilo Castelo Branco para além do enredo amoroso. Assim, desvinculamos a nossa postura metodológica da análise puramente romântica ou passional de caráter totalizador, na tentativa de superar explicações simplistas e dicotômicas existentes acerca da referida obra.

Esta pesquisa insere-se nos estudos literários ligados a análise crítica, mas sempre recorrendo às áreas afins com intuito de melhor compreender o objeto de estudo proposto. Se quisermos entender Amor de Perdição, precisamos libertá-la das tradicionais classificações que a reduzem e a tomam como uma obra sem complexidade, como literatura de consumo e entretenimento. Por isso, partiremos para um estudo particular, buscando evidências que irão contrastar com as visões simplistas.  Para tanto, nos servirão como escore os estudos de Bakhtin (1997), Coelho (2001), Ferraz (1987), José Régio (1964), Moisés (2006), Paulo Franchetti (2003), Saraiva e Lopes (2001), entre outros que subsidiaram teoricamente esse trabalho.

Nesse momento, a literatura é entendida não somente como objeto, mas também como fonte de pesquisa, afinal a literatura comporta um amplo conjunto semântico que, conjuga o manancial das forças sociais e simbólicas, instigando múltiplos olhares, sentidos e sentimentos, artifícios e armadilhas do dizer e do narrar, condensando quimera, fantasia, ilusão e realidade.

Acreditamos também que como texto privilegiado, a literatura pode conter outros textos, como o histórico, o cientifico, o religioso, etc. Daí, a importância exponencial dos olhares desta pesquisa, que possibilitam identificar a consistência e o peso da obra Amor de perdição.

Cientes de que as palavras nos aproximam da fortuna crítica de Camilo Castelo Branco, esperamos com essas reflexões poder contribuir futuramente com o reconhecimento do legado crítico da obra em estudo, bem como à incitação de novos estudos no âmbito da Literatura Portuguesa.

Nesta perspectiva, anunciamos o oficio instigante do pesquisador, tentando “perseguir” o legado crítico de Camilo Castelo Branco em Amor de Perdição, que requer uma constante reavaliação da sua tessitura literária, tomando o texto como reflexo subjetivo de um mundo objetivo. Operando a análise das fontes textuais que utilizaremos vislumbrando, quando, por que e por quem foram produzidas, atentando para o que se denominou de estatuto social do documento. Com destaque para as conjunturas dos processos pelos quais as representações literárias constroem sentidos, críticas e visões de mundo. A partir de uma leitura que procura estudar essa obra em seus aspectos particulares, livre das classificações que a reduzem e a tomam como uma obra sem complexidade, como literatura de consumo.

 

2 - ORIGENS E DESDOBRAMENTOS

 

            Por sobreviver da Literatura, alguns críticos concebem a obra de Camilo como uma obra improvisada, submetida ao processo de mercantilização , onde contém uma linguagem acessível, paixões proibidas e que conduzem os apaixonados ao desenlace trágico, temas considerados comuns e que possuem  o intuito precípuo de agradar o público oitocentista. Em um período em que o público leitor não tinha a devida instrução literária, por esse motivo o escritor deveria se valer de seus artifícios, para garantir a venda de seu produto. Por isso, Camilo teve que escrever muito, ás vezes, até por encomenda.  Tendo em vista que no período romântico o exercício literário deixou de ser financiado pelo mecenato da aristocracia. Porém, essas causas têm servido como argumentos para ocultar o labor literário desse grande escritor.

 

 

2.1. Visão panorâmica do Romantismo à ficção camiliana

 

O Romantismo foi um movimento literário marcado por dois grandes acontecimentos: a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Ao mesmo tempo em que a burguesia se ascendia o absolutismo declinava. Dessa forma, sob influências políticas e sociais o Romantismo sofreu os efeitos de “[...] uma profunda metamorfose, uma verdadeira revolução histórico cultural, que abrange a filosofia, as artes, as ciências, as religiões, a moral, a política, os costumes, as relações sociais e familiares, etc ”(MOISÉS, 2008, p.169). Assim, os pressupostos teóricos e estéticos do estilo romântico foram alimentados por esse caudal de transformações.

Dá-se início a uma nova forma de viver, com novos hábitos e costumes, “é a compreensão global do complexo romântico que alcança entender esses vários níveis de abordagem que a análise horizontal dos ‘assuntos’ aterra no mesmo plano” (BOSI, 2006, p.91). E isso vai refletir diretamente na literatura, seja no conteúdo dos escritos, com novos temas, que possuem uma visão individualista do “eu”, onde predomina a realização dos sonhos, da fantasia (em oposição à razão clássica), a valorização do nacionalismo, da natureza e do lado religioso, grande insatisfação e o desejo de reformas sociais; a mistura dos gêneros e a recusa às regras impostas pelos clássicos. Portanto, essa estética “expressa os sentimentos dos descontentes ”(BOSI, 2006, p.91) com velhas estruturas clássicas. O escritor passa a ter liberdade criadora, não há nada que o impeça de criar, possuindo livre arbítrio e com o desaparecimento do mecenatismo, ele agora viverá do que produz, deixando-se levar pelos seus sentimentos e marcas individuais.

A fixação cronológica do Romantismo em Portugal é marcada pela publicação em 1825 do poema narrativo Camões de Garrett. Ciente das novidades contidas em sua obra ele diz: “A índole deste poema é absolutamente nova: e assim não tive exemplar a que me arrimasse, nem norte que seguisse Por mares nunca dantes navegados” (MOISÉS, 2008, p.164). Ou seja, um poema culminado de inovações estéticas, responsáveis por lhe atribuir o título de introdutor do Romantismo português.

  A inserção do Romantismo em Portugal, não ocorreu de forma imediata, “o impedimento devia-se à força da inércia, representada pela reação conservadora de homens de letras educados segundo moldes clássicos e absolutistas” (MOISÉS, 2008, p.183). Tendo em vista a difícil missão de digerir o que é novo, de desvincular-se dos moldes até então vigentes e aderir à nova estética que estava emergindo. Nesse contexto, diferem entre si duas tradições românticas em Portugal, a primeira é representada por: Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Antônio Feliciano de Castilho. E a segunda, representada por: Camilo Castelo Branco, João de Lemos e Soares de Passos.           

 Segundo Massaud Moisés (2008, p.211):

 

[...] ainda se localiza um tardio florescimento literário, que corresponde ao terceiro momento do Romantismo, em fusão com remanescentes do Ultra – Romantismo bruxuleante. Desenrolando-se grosso modo durante os anos seguintes a 1860, esse período é assinalado pela presença de poetas, como João de Deus, Tomás Ribeiro, Bulhão Pato, Xavier de Novais e Pinheiro Chagas, e de um prosador, Júlio Dinis. Situados no final do processo romântico, já extemporâneos ou retardários, depuram até o extremo as características românticas [...].

 

             Os primeiros românticos contribuíram para afirmação inicial da nova escola literária. Eles eram aspiradores dos novos ideais românticos, mas ainda conservadores em muitos aspectos, tendo em vista a educação clássica recebida, e por isso jamais conseguiram libertar-se dela por completo. 

            O segundo momento romântico acontece entre 1838 e 1860, e nessa época os enlaces arcádicos que ainda envolviam os escritores da época são desfeitos. É perceptível nas obras desses autores o pleno domínio da estética e ideologia romântica, tomando atitudes extremas e tornando-se românticos descabelados, caindo fatalmente nas armadilhas do exagero. Sendo denominados de ultrarromânticos, nesse período, a produção literária é assinalada pelo predomínio da emoção, da exaltação do espírito, da melancolia que leva ao tédio da vida e, consequentemente, ao desejo da morte.

            O terceiro momento foi considerado um período de transição, pois já anunciava o Realismo. Era, entretanto, mais regenerado, mais equilibrado e tem como principal característica a diluição dos caracteres românticos.

            Dentre os principais representantes da segunda fase do Romantismo português está Camilo Castelo Branco. Autor de uma vasta produção literária. Apesar do imenso acervo de livros escritos, a imagem de Camilo está associada ao grande sucesso do clássico Amor de Perdição (1862). Os estudos literários tradicionais têm caracterizado a referida obra como um dos maiores dramas passionais, centrado na temática amorosa. 

Segundo Figueiredo (1941, p.283), em Literatura PortuguesaAmor de Perdição é a sua obra prima nesta maneira sentimental [...]. O romance camiliano é a quinta essência do lirismo passional, servido pelo maravilhoso do enredo”. Essa é a visão canônica da obra camiliana, que ganha também sustentáculo nas palavras de Coelho (2001, p. 239), “a novela amorosa era, pois, o seu domínio” e Amor de Perdição seria “uma obra-prima do gênero [...], com alguma coisa do sublime de Romeu e Julieta e do trágico de Manon Lescaut” (Opc. cit, p. 260). Para a maioria dos críticos literários, “a novela camiliana é, pois, uma novela de aventuras, para recrear a imaginação, e de conflitos dramáticos, para fazer vibrar a sensibilidade” (Idem, p.393). O cerne dessa abordagem tradicional toma por base a origem do gênero literário novela que está relacionada às canções de gesta, cultivadas na Idade Média e que sempre teve como função o entretenimento.  

Segundo Moisés (2003, p.103):

 

A palavra “novela” remonta ao italiano “novella”, por sua vez originário da Provença (“novas”, “novelas”), onde significava “relato, comunicação, noticia, novidade”. A raiz etimológica estaria no latim “novella”, de “novellus, a um”, adjetivo diminutivo derivado de “novus, a, um”. Do sentido primordial de “jovem”, “novo”, “recente”, o vocábulo substantivou-se, adquirindo varia significação, desde “chistes”, “gracejo” até “enredo”, “narrativa enovelada.

 

 

             Inicialmente era cantada por trovadores, narrando feitos bélicos, confundindo o fantástico com o verídico. Estendia-se à medida que o trovador a repetia, dessa forma, foi preciso transcrevê-las em pergaminhos, a fim de que elas fossem conservadas. Já que com a extensão adquirida, a imaginação seria incapaz de retê-la. Caiu no gosto do público e passou a ser lida nos saraus cortesanescos com acompanhamento musical. “E o alargamento desmesurado do texto levou a pôr em prosa o conteúdo já de si narrativo dos versos. Daí para a prosificação foi um passo” (MOISÉS, 2003, p.106). O primeiro exemplo que merece destaque é a Demanda do santo Graal. 

            Ainda segundo Moisés (2003), podemos organizar as novelas em: novelas de cavalaria, novelas sentimentais e bucólicas, novelas picarescas, novelas históricas, novelas policiais e de mistério. Embora, seja “[...] infrutífera e estéril a sistemática que se presuma definitiva, pela simples razão de não haver novelas puras [...]” (MOISÉS, 2003, p.134). Ou seja, elas são agrupadas pelo prevalecimento de certas características, porém apresentam composições diversas, o que torna difícil a classificação, embora seja agrupada de acordo com a característica que mais prevalece.

            Dos tipos acima mencionados, a novela sentimental é que se destacará no cenário então vigente do século XIX, conseguindo atingir o seu apogeu com o Romantismo, pois a “[...] estética Romântica com sua demofilia, transforma a novela num dos seus meios prediletos para atingir os leitores” (MOISÉS, 2003, p.108). Ela, portanto, adquire feição própria e é nesse contexto que surgem as novelas de folhetins.

            Em Portugal, muitos prosadores dedicaram-se a essa modalidade narrativa, destacando-se entre eles como já foi mencionado Camilo Castelo Branco. A crítica tradicional tem classificado os escritos desse autor em duas categorias estáveis e impenetráveis: a novela passional/sentimental e a novela satírica. Da primeira, a sua obra prima é Amor de Perdição[3], a qual está sendo aqui objeto do nosso estudo. Da satírica, tem se destacado Coração, cabeça e estômago (1862) e A queda dum anjo (1866).

 Dessa forma, a novela sentimental caiu no gosto burguês, principalmente no gosto feminino. E o próprio escritor Camilo conhecia o seu público, por isso não se exime em conversar com uma parte especial dos seus leitores: “[...] a leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha a história daqueles dezoito anos, choraria!” (AP, 1862, p.03).  Nessa passagem, o jogo de linguagem do autor ilude o leitor ingênuo e cria armadilhas para àqueles que acreditam na:

 

figuração romanesca [camiliana] de uma dada concepção de vida que fez correr imensas lágrimas às nossas avós ou trisavós. O leitor mais sofisticado de hoje sente-se, pelo contrário, inibido porque se apercebe muito melhor de certos cordelinhos de organização romanesca ou de linguagem enraizados na sensibilidade de outra época (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 791).

 

 

A ênfase dada a esse sentimentalismo e à tragédia passional tende a ser fruto da sacralização da imagem forjada da obra como mero folhetim romântico, que incorporou esse procedimento estético, em consequência do tipo especial de exercício literário que era o de escrever (às vezes por encomenda) para um público cujos interesses e expectativas deviam ser respeitados. No entanto, ressaltarmos aqui, que a obra em estudo está longe de ser apenas essa literatura produzida exclusivamente para o deleite do público, sem complexidade que envolveria a leitura dos autores mais canonizados pela crítica de afirmação dos clássicos.

Com efeito, “O romance que não se estribar em outras recomendações mais sólidas, deve ter uma voga mui pouco duradoura” (AP,1984, p. 378). Em suma, esse enfoque às “recomendações mais sólidas” da obra literária demonstra o quanto o autor se preocupa em alertar o leitor com relação ao todo que compõe o seu romance. De fato, a análise desse pequeno trecho, permite-nos compreender a gama de interesses da escrita camiliana que aspira ampliar a dimensão do gênero romance.

Franchetti (2003) acentua o poder da crítica literária, em seus estudos, quando esclarece que sustentar velhas categorizações seria perpetuar a simplificação da obra de Camilo, uma vez que essa polarização mais encobre do que traz à luz elementos textuais característicos à tessitura de seus romances, elementos estes, que são responsáveis até hoje pelo interesse de leitura e estudo da obra de Camilo. A imagem simplista da produção desse escritor deve ser desconstruída pelos novos estudos literários, porque “Camilo não tem romances puramente satíricos, puramente históricos ou puramente passionais” (CARVALHO, 2003, p.376). Assim sendo, “o poder da crítica – que se apodera do texto do outro – é o de tentar desvelar o sentido que pretensamente o original encerra, sem que se possa atingir em definitivo sua verdade” (ROSA, 2006, p. 214).

 Podemos acreditar, como aponta a crítica mais especializada, que o seu romance está para além do que aparenta: mesmo ao fazer uso das técnicas do folhetim melodramático, sua obra não se resume a isso.

Na verdade, os estudos tradicionais apontam frágeis argumentos, principalmente quando se apóiam na Literatura como ofício, onde Camilo escreveria com o objetivo precípuo de agradar o público oitocentista, e que por isso a sua obra teria uma linguagem acessível, paixões proibidas e que conduzem os apaixonados ao desenlace trágico, culminada de elementos simplistas tipicamente românticos.

 Para Moisés (1999, p.11):

 

Tomada a decisão de viver da literatura, a obra de Camilo passou a percorrer caminhos demasiadamente acidentados, apresentando visíveis altos e baixos. Seu trabalho era quase sempre improvisado, no dia-a- dia, em ritmo acelerado, e raramente passava por uma revisão.

 

 

            Porém, vale salientar que a obra camiliana não se limita ao servil sentimentalismo romântico, pois certamente o seu interesse teria desaparecido no terceiro quarteto do século XIX, quando a estética romântica se encerrou ou com a morte do autor em 1890. Assim, vale admitir que a ficção camiliana tenha burlado o esquecimento e atraído o interesse do leitor até os dias atuais.

Na ficção camiliana “as palavras não existem pelo sentido que parecem transportar, mas pelo fascínio que despertam, pelo jogo e pelo logro que instalam. Pela confusão que lançam e pelo vazio que deixam em seu rastro” (ROSA, 2006, p.208). O que parece seduzir o leitor, quando descobre, por exemplo, no início da obra que o herói “Amou, perdeu-se, e morreu amando” (AP,1862, p. 03). Aparentemente, poderíamos acreditar que esse herói seria um instrumento de veiculação e defesa dos ideais românticos. Entretanto, essa tese cai por terra, quando mais adiante encontramos em Simão a figura do [...] “herói romântico como um rebelde que se ergue, altivo e desdenhoso, contra as leis e os limites que o oprimem, que desafia a sociedade” (SILVA, 1968, p.479). Ou seja, o narrador não esconde que “Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra convicções de sua valentia” (AP, 1862, p. 11).

Conforme o exposto, a ficção camiliana transcende a veiculação romântica ao deixar rastros de uma escrita que reluz, ofusca, provoca e seduz. Esse fenômeno  é reconhecido pelos estudiosos Reis e Pires na História Crítica da Literatura Portuguesa (1999, p. 217), quando afirmam que:

 

Quase unanimamente, toda a crìtica atual considera que Camilo, se pelo enredo de suas novelas deve um grande tributo ao romantismo, pela maneira como analisa os sentimentos e ações das personagens, pelas justificações e explicações dos acontecimentos, pela critica a determinado tipo de educação e leitura, pelo pormenor e espírito observador, não pode, de maneira nenhuma, ser encarado simplesmente como um romântico.

 

 

            Portanto, a partir dos pontos discutidos, podemos prosseguir no reconhecimento do legado camiliano, bem como estender a sua interpretação para além do determinismo literário romântico, a começar pela quebra de paradigmas e vínculos classificatórios. Pois, “[...] a verdadeira atividade literária não pode ter a pretensão de desenrolar-se dentro de molduras literárias” (KONDER, 1999, p. 48). Embora a obra de Camilo  seja alimentada pela seiva sentimental, que traga uma trama passional, ela não pode ser vista apenas como literatura passageira destinada unicamente ao deleite da burguesia oitocentista, que se detinha apenas ao enredo. 

            Ao distanciarmos a obra das visões simplistas, o legado camiliano assume plenamente sua fisionomia literária, sem deixar de incorporar os problemas universais, permitindo que qualquer ser humano nele se reconheça. Camilo cria uma obra onde se constroem e se validam representações do mundo social. Entretanto, esse rico legado crítico, tem sido na maioria das vezes camuflado pelo pretenso olhar romântico dos críticos tradicionais.

            A peculiar simultaneidade com que o autor constrói o enredo romântico e insere comentários irônicos de cunho meta-literário também marca a narrativa. Se por um lado narra a tragédia passional do amor entre Simão e Teresa, que usa de artifícios para comover e convencer o leitor: “não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há-de fazer dó” (AP,1862, p.02), por outro critica o Romantismo “Os poetas cansam-nos a paciência a falar do amor da mulher aos quinze anos, como paixão perigosa, única, inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos” (AP, 1862,p.13).

            Esse discurso meta-literário também vem à baila na passagem em que Domingos Botelho envia a açoriana, amante de seu filho Manuel Botelho, de volta aos Açores: “[...] poupou-se à morte da vergonha, que é uma morte inventada pelo visconde de A. Garrett no Fr. Luís de Sousa [...]” (AP, 1862, p.38). Percebemos nesse trecho, que a crítica feita pelo narrador atinge os principais poetas e prosadores Românticos, bem como os temas do Romantismo. Diante de tais excertos meta-literários, não convém caracterizar Camilo como um escritor exclusivamente ultrarromântico.

             Na realidade, a obra trata o amor como redenção, mas cortando os males da estética do exagero, como no exemplo em que Simão é apresentado inicialmente como “um demagogo acadêmico” (AP,1862, p.12), em seguida sofre modificações comportamentais em razão do amor. “A mudança do estudante maravilhou a academia” (AP,1862, p.15). Porém, o maravilhoso comportamento do jovem durou pouco tempo. Segundo Chorão (1990, p.17), “Simão não é movido pelo amor, mas pelo ódio como se esta fosse à meta apetecida. Destruir e destruir-se parecem ser o escopo do herói romântico, numa fúria de viver que não é senão desgosto da vida”. O que podemos perceber numa carta escrita por ele: “Poderia viver com a paixão infeliz; mas este rancor sem vingança é um inferno” (AP, 1862, p.41). Por conta desse sentimento de vingança, mata o pretendente de Tereza, afastando a possibilidade de viver com sua amada. Esses fragmentos esclarecem que Camilo também dialogou com a escola subsequente, o Realismo. Pois, “Simão não é um personagem simpático” (BESSA-LUÍS, 1980, p.7). Trata-se de um protagonista romântico com sentimentos duvidosos, que não é exaltado, mas sim criticado por conta do seu comportamento distante da realidade.

            Outro elemento da estética realista presente na obra é a variante linguística. No eixo social em que se encontram as personagens pertencentes às classes sociais mais favorecidas como Simão e Teresa, percebemos o predomínio da variante padrão. Já nas classes desfavorecidas que tem como principal representante o ferreiro João da Cruz, observamos que ele usa a variante popular, devido a pouca instrução recebida: “[...] a rapariga já conhece quando a pinga me sobe ao capacete do alambique; puxa-me pela jaqueta, e por bons modos põe-me fora do arraial. Se alguém me chama para beber mais um quartilho, ela não me deixa ir [...]” (AP, 1862, p.56).

            A partir da leitura atenta dos referidos fragmentos, desprezamos a crítica que cristaliza a obra e o escritor como ultrarromânticos, passamos a ver a obra por outra ótica, mais plurissignificativa.

            No segundo prefácio de Amor de Perdição, o autor se opõe ao Realismo, dizendo: “[...] quero escrever romances para as pessoas lerem na sala, não nos quartos de banho. Quero escrever romances para que todas as pessoas da família possam ler: as moças mais jovens, as senhoras [...]” (AP,1984, p.56). Mesmo criticando o Realismo é impossível negarmos a presença do mesmo em sua obra como já foi destacado anteriormente. Pois, a dualidade estética perpassa a escrita camiliana. O escritor teria sido exposto a atmosfera romântica e simultaneamente sofrido influências das  tendências Realistas e Naturalistas. Entretanto, a obra cai no bojo da estética romântica, sob o signo da crítica cristalizada. A nosso ver, isso pode “esconder ou desvelar o olhar crítico na mesma medida que o concentra em características textuais que só fazem sentido dentro de uma construção tipológica opositiva e simplificada” (FRANCHETTI, 2003, p.19).

Curiosamente, no princípio dos estudos camilianos, encontramos Camilo Castelo Branco como um legítimo representante do ultrarromantismo. Com a evolução das pesquisas literárias descobrimos que este escritor trabalha com a beleza fugitiva das  palavras, entre o já dito e aquilo que, em outro momento se rediz. Ou seja, a palavra é a sua fortuna crítica. Portanto, o jogo de linguagem concebe vida à sua obra. E, quando identificado em sua profundidade semântica, denota por si só o engenho da arte literária. Ainda que a crítica esteja oculta, sua presença é sentida pelo leitor atento. É, pois, um crítico à sua maneira.

Camilo, por sua vez, encontra terreno fértil para fazer suas críticas principalmente nos habituais prefácios e nas passagens em que atuam seus narradores. A intenção não é moralizante, ele não procura instruir, nem propõe soluções para os problemas sociais, mas se preocupa em mostrar a sociedade a qual vive sob a ótica da arte literária. “Camilo tem esse segredo de, nos lances mais dramáticos, introduzir uma situação ou observação caricatural, uma digressão inesperada no contexto, que servem a atenuar a tensão, a dar ânimo ao leitor, quando menos espera ser sacudido por frouxos de riso” (CHORÃO, 1990, p. 44).

Por mais que o texto seja aparentemente claro, ele é marcado pelas críticas que só serão percebidas pelo leitor atento e perspicaz. Para o crítico literário Adolfo Casais Monteiro (1964), o processo de construção da narrativa camiliana segue seu curso entre agradar, criticar e manipular o gosto do público. Entretanto, o faz pela via discreta da fina oposição.

 

Camilo serve-se da sua época como teria servido de qualquer outra: para marcar a sua diferença. Mas não era livre de o fazer arbitrariamente; é assim que enquanto escreve romances francamente destinado a agradar(pois são eles que o alimentam?) quando a adular o seu público, com as intrigas tantas vezes folhetinescas interferem rasgos de violência e de profunda veracidade, admiráveis golpes de sonda nas profundezas do coração, explosões de autêntica poesia, páginas de dramas e tragédias inigualáveis, ou então de um sarcasmo tão exacerbado que, sem dúvida, não podia agradar à amável leitora a qual frequentemente  se desculpa (MONTEIRO, 1964, p. 278).

 

 

 

Essa abordagem crítica feita por Adolfo Casais Monteiro (1964) pode ser identificada na seguinte passagem da obra:

 

Essa minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissesem que o pobre moço perdera a honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?! (AP,1862, p.21).

            Tudo se passa nas entrelinhas da narrativa, repletas de ironia e paródia que possuem reflexos dos procedimentos folhetinescos. Para tanto, recorremos ao que é deixado implícito, tentando deixar “[...] que a linguagem primeira da obra (desenvolva) outras palavras [...] um certo para-além do texto”(BARTHES, 2007, p.213). Assim, agradava a todos e garantia, desse modo, o sucesso comercial de seus livros, sem deixar de lado o seu legado crítico[4]. Camilo nos propõe um percurso, mas não deixa claros os pontos nucleares de via dupla e de mão única da sua escrita.

 

3 AMOR DE PERDIÇÃO: UMA OBRA COMPROMETIDA COM O FAZER LITERÁRIO E O MUNDO SOCIAL

 

            A partir da discussão feita no capítulo anterior, nos parece relevante continuar revelando o legado crítico de Camilo Castelo Branco, por meio de fragmentos da obra Amor de Perdição e de apontamentos da crítica especializada, que denotam um olhar atento ao fazer literário e à sociedade portuguesa. Afinal, a obra estética e crítica de Camilo sempre despertaram grande interesse no meio literário, e isso não apenas pelo fato de ser ampla e variada, mas em razão, sobretudo, do tratamento dispensado por sua fortuna crítica: em geral repetitivo, superficial e equivocado. Isso não quer dizer que daremos preferência absoluta a “nova” dimensão crítica, de modo a calar outras que seriam “inadequadas” e “ultrapassadas”; pelo contrário, foi com base na crítica tradicional firmada por alguns estudiosos, que surgiram outras perceptivas interpretativas para Amor de Perdição, apoiadas em novidades trazidas pelos estudos mais especializados e até pela teoria literária.

 

3.1. A ficção camiliana para além do romance biográfico-passional

 

Este estudo presa por uma nova postura crítica em relação à obra Amor de Perdição, fazendo, desse modo, a contraposição necessária àqueles estudos alimentados pela superficialidade, os quais se pautam ainda, em boa parte, pelos mesmos apontamentos tradicionais. Notamos que, em tempos de vida de Camilo, como após sua morte, os juízos críticos se sucederam, na maioria das vezes, entre as caracterizações românticas das circunstâncias históricas e as censuras injustas de cunho biográfico, algumas até maldosas e instáveis. Como revela Feliciano Ramos, “Camilo não tinha firmeza de vontade, nem uma direção segura. Deixava-se escravizar demasiadamente pelos imprevistos e acasos da vida” (RAMOS, 1950, p.495). Essa postura volúvel denotada à personalidade do escritor chega a refletir amplamente em sua obra, que passa a ser lida sob o signo da tendência biografia-passional. Contudo, acabam resumindo a vida do autor a um agitado romance passional. O império dessa abordagem biográfica

 

é pois lógico que, em matéria de literatura, tenha sido o positivismo, resumo e desfecho da ideologia capitalista, a conceder maior importância à pessoa do autor. O autor reina nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas das revistas, e na própria consciência  dos literatos, preocupados em juntar, graças ao seu diário intimo, a sua pessoa e a sua obra; a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa, na sua história, nos seus gostos, nas suas paixões( BARTHES, 2004, p.02).

 

 

Com o império da crítica em torno do sintagma vida-obra, surge a consciência de que é preciso estudar a produção ficcional de Camilo à luz de outros paradigmas. A colisão de novos estudos literários apresenta outra postura crítica em relação à obra Amor de Perdição. A extensão dessa nova abordagem prima pela valorização da fortuna crítica de Camilo. Para tanto, temos procurado afastar as explicações da obra de quem a produziu, principalmente quando uma boa parte da crítica insiste ainda, em dizer que o maior legado camiliano teria sido “uma doentia sensibilidade nervosa, achava-se entregue aos seus instintos” (BRAGA, 1892, p.246). Como se, “através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a sua confidência” (BARTHES, 2004, p.02).

Com efeito, muitos estudiosos da obra em análise tendem a enquadrá-la a uma estética específica, consolidada em uma “[...] atividade reduplicadora de fórmulas, sem um mínimo propósito de criticá-las” (ALVES, 1990 p.46). Certamente, é mais conveniente falar de Camilo como um dos maiores escritores de um determinado período estético do que estudar as peculiaridades de sua obra como propõe o presente estudo. Que procura adentrar as profundezas da narrativa e identificar o seu legado crítico a partir de outras perspectivas fornecidas pelo próprio texto, no qual os fragmentos indicam pontos nucleares dispensados pelos estudos tradicionais.

Mesmo com a evolução dos estudos camilianos, em pleno século XX surgem estudiosos que continuam a reduzir o legado crítico da obra Amor de Perdição, quando afirma que:

 

a vida aparece nela severamente selecionada, reduzida aos elementos dramáticos, aos instantes de crise (...). A rapidez das peripécias, a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo caracterizam, dum modo geral, a novela camiliana (COELHO, 2001, 228).

 

 

 Face aos apontamentos feitos ao longo desse trabalho, seria não apenas enfadonho, mas perigoso reduzir a obra Amor de Perdição ao superficialismo do enredo ou ao romance de “biografia-passional,” porque poderia parecer um convite a olhar a obra de maneira meio mecânica, como se a vida do autor fosse determinantemente reproduzida em seus textos, ou como se o significado e a razão-de-ser da literatura camiliana fossem devidos à sua correspondência com a acidentada vida passional de Camilo Castelo Branco que seria a mais importante fonte da própria novela camiliana.

Segundo as pesquisas de Pavanelo (2008, p.39),

 

[...] os romances camilianos compartilham o fato de apesar de aparentemente reproduzirem a literatura em voga, não aderirem plenamente a ela, sendo antes veículo de critica a essa mesma literatura. Com isso, ao focar na realidade social, Camilo nos mostra a sua mundivalência arguta e cética, distante da alienação e do idealismo que se esperaria encontrar num escritor romântico.

 

 

            Camilo, porém, não migra de um estilo para outro a fim de garantir a venda de seus livros, pois se assim fosse, a sua atividade literária não teria ido além das imposições mercadológicas ou atribulações pessoais. Até porque, Camilo foi o primeiro escritor português a viver apenas do oficio. Numa sociedade que não dispunha de um número expressivo de leitores, num tempo em que os direitos autorais estavam começando a ser reconhecidos. Ele sobrevive do seu ofício, mas procura ser fiel aos valores artísticos, conforme testemunha o trecho a seguir: “Estou quase convencido de que o romance, tendo a apelar a iníqua sentença que o condena a fulgir e apagar-se, tem de firmar sua duração em alguma espécie de utilidade, tal como o estudo da alma, ou a pureza do dizer”(AP, 1984, p.18). Mesmo de forma indireta, Camilo impõe um novo lugar de enunciação e uma nova figura do escritor, mostrando que tem legitimidade e capacidade para viver desse estranho oficio, que é a arte de escrever.

            Tendo em vista os acontecimentos históricos como a Revolução Francesa, por exemplo, bem como as teorias filosóficas que dela emanaram, percebemos que o legado crítico de Amor de Perdição é herdeiro de um período marcado por grandes agitações: “as doutrinas da regeneração social pela guilhotina tinham alguns tímidos secretários em Portugal, e esses de ver é que deviam pertencer à geração nova” (AP, 1862, p.26).

 A obra também faz referência à corte de D. Maria I e aos ideais da revolução francesa. Entretanto, não queremos com isso atribuir à obra de Camilo um registro oficial da história portuguesa oitocentista. Mas reconhecer a importância desse material para compreendermos a organização social do país sob a égide do referido período histórico.

            Para evitar possíveis incoerências, o autor destaca enfaticamente a importância do seu romance a partir de “alguma espécie de utilidade, tal como o estudo da alma, ou a pureza do dizer” (AP, 1984, p.18). Camilo julga que essa utilidade do romance está associada ao complexo da alma humana, do dizer e do narrar. A obra, desse modo, não está subordinada às questões biográficas e temporais. Pois, se por um lado, o autor de Amor de Perdição surge numa época em que o romance se propõe a representar o indivíduo “[...] de maneira a provocar a sugestão do real” (ADORNO, 2003, p.55), por outro lado, a concepção de romance vai evoluindo na obra camiliana sob novas formas, onde “[...] o escritor, como narrador de fatos objetivos, desaparece quase que completamente; quase tudo que é dito aparece como reflexo na consciência das personagens (AUERBACH, 2007, p.481).

            Ao longo do texto o autor usa de documentos e datas para incutir no leitor uma marca de verdade sobre os fatos que estão sendo narrados.  Segundo Aristóteles (2005, p.2), “[...] a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais que podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade”. Dessa forma, ao mesmo tempo em que  o autor insere elementos em sua narrativa a fim de que seu texto se torne verossímil, ele pressupõe que o leitor faça uma análise mais profunda, que consiga perceber o texto em sua microestrutura e isso comprova-se quando ele diz: “ Um romance que se estriba na verdade o seu merecimento, é frio, é impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos [...] somos, uns a subir, outros a descer movidos pela manivela do egoísmo”(AP, 1862, p.130).

            Como nos diz Aristóteles (2005, p.21) “imitar é natural ao homem”, e a imitação também é transposta na literatura. E essa mimese não é a transposição fiel dos fatos, mas a garantia de tornar a narrativa condizente com a realidade e assim envolver o leitor, pois “a razão é que o possível é crível” (ARISTÓTELES, 2005, p.29). De acordo com Teixeira (2001, p.53): “Literatura é imaginário: constelação hipotética de imagens. Suas imagens tanto podem se originar do mundo extra textual quanto podem resultar de apropriação de estruturas textuais pré – existentes à ficção que se constrói em dado momento”.

            Essa aproximação com a realidade apóia-se num novo lugar para enunciação, onde o autor procura prender e exercer certo fascínio sobre o público leitor. Entretanto, ele ironiza uma parte desse público, aspirando à presença de outro, que lhe sirva de elo de continuidade da narrativa. Na realidade, essa postura afasta a tendência incoerente do romance “biográfico-passional” e ultrapassa as imposições mercadológicas.

            No prefácio da segunda edição da obra, encontramos um fragmento tomado pela crítica tradicional como referência do caráter biográfico: “Desde menino , ouvia eu contar a triste história de meu tio paterno Simão Antônio Botelho”(AP, 1984,p.17). Camilo não desvendaria de forma tão clara os meandros de sua narrativa. De acordo com Cabral (1993, p.53), “[...] um dos consentimentos deste escritor é ir iluminando o pobre mortal que o lê [...]. Neste sentido, encontramos no texto um hipotético apelo verossímil que o aproxima da realidade dos fatos. Ou seja, é forma do autor assegurar ao seu interlocutor que as verdades que vai contar existiram verdadeiramente, e que sua história é verdadeira nos seus principais acontecimentos. Entretanto, isso não significa que a vida do autor seria a fonte principal da obra como elucida boa parte da crítica tradicional. No final do livro o autor recorre novamente ao aspecto verossímil: “A última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi Manuel Botelho, pai do autor desse livro” (AP,1862, p.147). O pretenso parentesco com as personagens da história além de ser mais um recurso que visa dar veracidade aos acontecimentos narrados, é também uma tentativa de enfocar os fatos da vida que estão presentes na ficção. Identificamos nesse momento uma das maiores armadilhas do narrar e do dizer camiliano, que é o fato de brincar com as expectativas dos leitores.

            Sob este prisma, desconstruimos o império do romance de “biografia-passional,” que se alimenta das seguintes considerações:

 

 

Isto que vai ler-se é o drama de uma alma superior, em grande parte extraído dos seus próprios livros. A vida de Camilo abunda pitorescamente em lances variadíssimos de boa e má fortuna. O mesmo é ler este escritor que coordenar mentalmente o romance de sua existência. O que eu fiz apenas foi dar à emoção produzida pela sua obra a fixação cronológica de uma Biografia. Algumas investigações que me pertencem, derivaram naturalmente de desejo de substituir as reticências e preencher as lacunas que seus livros, escritos sem a preocupação de autobiografia, opunham à justa curiosidade do leitor.

O perfil histórico de Camilo avulta na grandeza romântica os seus dias felizes e infelizes tanto quanto na culminância da sua indiscutível glória literária. Depois das lutas da sua acidentada mocidade, veio o infortúnio martirizá-lo, nivelando a proeminência do talento com a ecomicidade do martírio. Nada tem faltado a este homem eminente para glorificar, - nem mesmo a majestade da desgraça em que o espírito luminoso triunfa das trevas da cegueira (PIMENTEL, 1890, p. 05-06).

 

 

 Aberto Pimentel (1890) revela um dos pontos centrais dos seus estudos, no qual a maioria da crítica tradicional se filia, é a concentração na figura do autor. Contudo, esse tipo de análise crítica ver a obra como uma figurinha lá do fundo da cena literária, subordinada eternamente ao caráter biográfico do autor. Eis aqui a necessidade “de corrigir certos lugares-comuns injustos” (SANTOS, 1991, p.72) atribuídos à obra ficcional camilina. Para tanto, precisamos fomentar uma experiência de leitura moderna da obra de Camilo.

 

 

 

3.2.  Sociedade oitocentista: instituição familiar e costumes

 

 

            Ao lançarmos um olhar mais reflexivo sobre Amor de Perdição, notamos que o estudo da mesma dispensa valorações biográficas. Isto porque, como vimos em apontamentos precedentes, o legado camiliano sofre uma diminuição qualitativa quando visto pelo viés biográfico. Pois, a fronteira entre o texto literário e seu genitor deve estender as suas dimensões interpretativas gerais para além da tendência biográfica.

             Neste sentido, passamos a desconstruir visões reducionistas da obra em estudo, quando encontramos em sua tessitura profundas críticas aos tipos humanos e ao contexto social que perfazem a sociedade oitocentista.  Vale ressaltar que não diagnosticamos na obra de Camilo sinais de aprovação ou reprovação da ordem estabelecida. “Camilo não tem ilusões sobre o homem e a sociedade, e não cura, pois de reformar nem um nem outra” (CHORÃO, 1993, p.14). Isto é, ele denuncia as mazelas sociais, sem procurar solucioná-las ou ser um juiz conservador diante dos fatos. A obra em si é um tecido de signo que convida o leitor a múltiplas reflexões. Pois, em momento algum o autor toma partido no sentido teológico (que seria a mensagem do “Autor-Deus”). Na verdade, encontramos um novo valor na produção camiliana: a crítica social.

            Em Portugal, “a civilização burguesa processou-se a ritmo lento [...] o fraco desenvolvimento industrial, as sobrevivências aristocráticas e persistência de valores tradicionais definem os limites impostos à instauração social da nova ordem” (VAQUINHAS; CASÇÃO, 1993, p.442).           Sob este prisma, o trecho a seguir evidencia uma crítica ao atraso da vida rural portuguesa.

 

 

_Ó Meneses, aquilo que é?

_São nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.

_Em que século?

_O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.

_Ah! Sim? Cuidei que o tempo passara aqui no século doze [...] (AP, 1862, p.6)

 

 

            O trecho supracitado mostra de modo irônico o atraso rural português, que segundo a personagem não conseguiu evoluir durante os séculos. De maneira irônica e superior, esta focaliza a aparência de seus parentes e amigos de forma a afirmar que estavam isolados, esquecidos no tempo. Paulo Motta Oliveira (2005, p.6) salienta que “existe na ficção camiliana, uma interpretação de Portugal, que, também nela, e talvez de forma ainda mais viva e clara que em outros escritores, o país está presente.”

            Uma vez que o texto camiliano não tem a pretensão de ser moralizante. Consequentemente, não edifica nem rebaixa as posturas que ali estão postas. No episódio em que Manuel Botelho rapta uma açoriana, que é mandada de volta aos Açores por Domingos Botelho, por exemplo. Esse acontecimento não é visto de maneira negativa pelo autor, mas de forma a confrontar com o romance de Simão e Teresa que teve como consequência a morte de ambos. Diferentemente de Simão, Manuel manteve os pés no chão e viveu de acordo com a sociedade de forma que tudo acabou bem. Tal fato evidencia que “[...] a ficção camiliana demonstra-se cética, não pretendendo desempenhar qualquer função moralizante ou educativa na vida social” (GARCEZ, 1992, p.23). Esse ponto de vista enfraquece a ideia de que os seus ideais de escritor oscilam entre a adoção de idealismo  e realismo moralizante. Ainda no referido episódio que envolve Manuel, surge uma nota de rodapé na obra, explicando que o esposo não lamenta o rapto da esposa, mas a perda de seu dinheiro.  Ao invés de tecer uma trama própria do ideário romântico, Camilo faz uso da crítica e da sátira para denunciar uma sociedade regida pelo materialismo.

 

"Hoje então!..." Vou-lhes contar um lance memorando dum filósofo da atualidade, lance único pelo qual eu fiquei conhecendo a pessoa. Hoje (21 de setembro de 1861) estava eu no escritório do ilustre advogado Joaquim Marcelino de Matos, e um cliente entrou, contando o seguinte: - "Senhor doutor, eu sou um lojista da rua de...: e fui roubado em oitocentos mil réis por minha mulher, que fugiu com um amante para Viena. Venho saber se posso querelar, e receber o meu dinheiro." Pode querelar, respondeu o advogado, se tiver testemunhas. O senhor quer querelar por adultério? - Responde o queixoso: "O que eu quero é o meu dinheiro." - Mas, redargüiu o consultor, o senhor pode querelar de ambos, dela como adultera, e dele como receptador do furto. - "E receberei o meu dinheiro?" - Conforme. Eu sei cá se ele tem o seu dinheiro?! O que é que não pode pronunciá-la a ela como ladra. - "Mas os meus oitocentos mil réis?!" - Ah! o senhor não se lhe dá que sua mulher fuja e não volte? - "Não, senhor doutor, que a leve o diabo; o que eu quero é o meu dinheiro." - Pois querele de ambos, e veremos depois. "Mas não é certo receber eu O meu dinheiro!?" - Certo não é; veremos se, depois de pronunciado, as autoridades administrativas capturam o ladrão com o seu dinheiro. - "E se ele o não tiver já" - redargüi o marido consternado. - Se o não tiver já, o senhor vinga-se na querela por adultério. - "E gasta-se alguma coisa?" - Gasta, sim; mas vinga-se. - "O que eu queria era o meu dinheiro, senhor doutor; a mulher deixá-la ir, que tem cinqüenta anos". - Cinqüenta anos! - acudiu o doutor. - O senhor está vingado do amante. Vá para casa, deixe-se de querelas, que o mais desgraçado é ele" (AP,1862, p.118).

 

 

 

            Episódio este, que pode ser considerado irônico e cômico ao mesmo tempo, o que seria uma característica desse escritor como afirma Franchetti (2003, p.49) “ a prosa de Camilo se compraz em ser o ácido que dissolve as certezas e a respeitabilidade dos comportamentos, sem nada apresentar como contrapartida ou ponto de afirmação”. Então a comicidade desse excerto serve para quebrar a tensão e mostrar uma perspectiva mais realista da vida na sociedade oitocentista, o que seria mais uma de suas ironias à literatura romântica que nunca prima pelo real. A narrativa fornecida por Camilo conduz à reflexão social e desconstrói os discursos literários vigentes.

            Apesar de não ter tido um desenlace trágico, o referido episódio que envolve Manuel vem demonstrar também que a vontade patriarcal teve grande predominância na sociedade oitocentista. Pois, não concordando com a atitude do filho, Domingos Botelho (pai de Manuel) interveio na situação, resolveu a seu modo. Diferentemente de Simão, Manuel aceitou a intromissão do pai e por isso o desencadear do episódio não foi trágico. A exemplo de Domingos Botelho, Tadeu de Albuquerque também intervém na escolha amorosa de sua filha. Isso pode ser identificado na seguinte passagem: “[...] a tua felicidade é daquelas que precisa ser imposta pela violência. Mas repara minha filha que a violência de um pai é sempre o amor. Amor tem sido a minha condescendência e brandura contigo.” (AP, 1862, p.23).

            Em termos menos idealísticos, a obra faz uma crítica ao patriarcalismo português, a partir do retrato de um quadro social no qual a vida estaria dirigida pela ganância patrimonial, pela ânsia de prestígio e ascensão social. O pai de Teresa ambicionava que esta casasse com o seu primo fidalgo de Castro Daire, pois ambos “[...] eram igualmente nobres da mesma prosápia” (AP, 1862, p.19). Assim, a família patriarcal servia como mantedora da ideologia burguesa, onde a figura paterna poderia ser comparada a do rei, ou seja, “o pai é chefe natural da família, tal como o monarca é o chefe da nação. Da mesma forma que aquela está submetida à sua autoridade, também o país deve obediência ao seu chefe, no caso, o rei ” (VAQUINHAS; CASÇÃO, 1993, p.449).

            Como representante do patriarcalismo Tadeu de Albuquerque insiste em encerrar Tereza no convento, a fim de afastá-la de Simão. Diante disso, Teresa resolve fingir amor e respeito filiais ao pai: “[...] Teresa respondeu, chorando, que estaria num convento, se era a vontade de seu pai: porém que se não privasse ele de a ter em sua companhia, nem a privasse  ela dos seus afetos [...]. Prometeu-lhe julgar-se morta para todos os homens, menos para seu pai” (AP, 1862,p.21). Nesse trecho, encontramos o realismo de Tereza que o afasta dos ideais de uma típica heroína romântica. Para tanto, a hipocrisia dos sentimentos da personagem se estende à sociedade portuguesa. Em outro momento, o narrador nos mostra que Tereza deseja a morte de seu pai: “Ela esperava que seu pai falecesse para, senhora sua, lhe dar com o coração, o seu grande patrimônio [...] (AP,1862, p.41). Assim, a heroína de Camilo conhece a realidade, não estando encarcerada aos idéias românticos.

            Ainda no que concerne a referida figura paterna, Perrot (2003, p.121) destaca que com relação a

 

[...] figura da proa da família e da sociedade civil, o pai domina com toda a sua estrutura a história da vida privada oitocentista. O direito a filosofia, a política, tudo contribui para assentar e justificar sua autoridade. De Hegel a Proudhon – do teórico do Estado ao pai do anarquismo – a maioria corrobora seu poderio. É o pai quem dá o sobrenome, isto é, quem realmente dá à luz, pois segundo Kant, “ o nascimento jurídico é o único nascimento verdadeiro”. Sem rei, os tradicionalistas querem restaurar o pai. Mas, sob este aspecto, os revolucionários não ficam atrás [...] “A diferença que existe no ser dos cônjuges vem proposta em seus respectivos direitos e deveres”, escreve Portalis. Em nome da Natureza. O Código Civil estabelece a superioridade absoluta do marido no lar e do pai de família, e a incapacidade da mulher e da mãe.

 

 

            Nessa perspectiva, em Amor de Perdição as relações amorosas irrompem sob a coerção dos poderes econômicos e sociais. Aliás,

 

[...] as ficções de Camilo dizem-nos que, em si mesmo, e apesar da sua complexidade, o amor é bem pouca coisa na sociedade burguesa [...] se a relação amorosa e o casamento interessam tanto, Camilo e os outros romancistas do século XIX e os levaram deliberadamente a serem “romancistas sociais,” foi precisamente porque o amor não podia aparecer-lhes como inseparável das outras relações sociais nem das formas de estruturação do poder familiar e social, cujas bases econômicas eram flagrantemente evidentes e poderosas. Ao “estudar” o amor, Camilo denuncia os mecanismos de funcionamento das relações pessoais em sociedade; e explica a lógica a que tem de submeter-se as relações particularmente intensas que são as relações amorosas. O matrimônio e o patrimônio confundem-se, interferem constantemente um com o outro.  Mesmo antes de se falar de casamento, já o amor se apresenta como uma forma institucionalizada de aliança, não apenas entre dois indivíduos, como poderiam esperar-se e talvez fosse desejável, mas entre duas famílias, como não pode nunca deixar de ser no tipo de sociedade onde estes acontecimentos têm lugar (SANTOS, 1991, p.62 -63).

 

 

            Vejamos, como se deu as críticas aos privilégios da nobreza, a partir do episódio em que Simão é condenado à forca:

           

– Quando vai ele a padecer?

– É bem feito! Vai pagar pelos inocentes que o pai mandou enforcar.

– Queria apanhar a morgada à força de balas!

– Não que estes fidalgos cuidam que não é mais senão matar!...

– Matasse ele um pobre, e tu verias como ele estava em casa!

– Também é verdade!

– E como ele vai de cara no ar!

– Deixa ir, que não tarda quem lha faça cair ao chão!...

– Dizem que o carrasco já vem pelo caminho.

– Já chegou de noite, e trazia dous cutelos numa coifa.

– Tu viste-o?

– Não; mas disse a minha comadre que lho dissera a vizinha do cunhado da irmã, que o carrasco está escondido numa enxovia (AP,1862 p. 92-93).

 

 

            Na visão dos populares, se Simão tivesse matado uma pessoa de classe social inferior, não estaria sendo punido. Essa crítica está marcada pelo humor camiliano, onde diante de uma situação trágica o narrador intervém e consegue quebrar a tensão dramática. Segundo Duarte (2006, p.232), Shopenhauer já dizia que “[...] quando a brincadeira se esconde atrás da seriedade, surge a ironia, e quando a seriedade se esconde atrás da brincadeira, surge o humorismo.”

            Em suma, Camilo nos fornece os indícios de como se estruturava a sociedade no país ibérico. Tal análise denota elementos constitutivos da obra em questão a partir da ironia e da crítica social. Ou seja, Camilo transcende o rótulo de especialista em trágicas e idealizadas histórias de amor, habitualmente atribuído pela crítica “biográfica-passional”.

 

 

3.3. Moral cristã: vícios e virtudes

 

            A presença de elementos e sujeitos religiosos, tais como igrejas, oratórios, padres e freiras estão dispostos em Amor de Perdição com o intuito de construir uma crítica ao sistema eclesiástico. Concorre para esse apontamento, a igreja enquanto instituição e aqueles que a utilizam a fim de atingir seus objetivos individuais.

            Nessa perspectiva, “o indivíduo virtuoso, seria aquele que pode agir por puro respeito do dever, que “é o reconhecimento de uma pressão que se impõe independente de qualquer outra solicitação e anteriormente às preferências das inclinações, ou seja, de maneira à priori” (GIANNOTTI, 2003, p.06). Assim, a moral é vista como intrínseca a consciência, a natureza humana. A consciência será o veículo que conduzirá as suas atitudes, estando estes cientes dos seus deveres, do seu compromisso perante os demais indivíduos. Pois viver em sociedade compreende obedecer às regras que estão pré – estabelecidas e que não podem ser reajustadas a conveniência de uma minoria que a transgride em prol de seus interesses pessoais.

            Temos na obra a presença de padres e freiras que abusam do álcool, que rompem com o celibato, apesar de publicamente professarem a fé cristã. O escritor, portanto, faz a denúncia das atitudes hipócritas desses membros que fazem a cúpula da igreja. Tal fato pode ser identificado, no episódio correspondente à recepção de Tereza no convento. Logo, a madre prioresa diz: “Más – línguas é coisa que a menina não há de achar aqui, nem intriguistas nem murmurações de soalheiro” (AP,1862, p.49). Momentos depois Teresa depara-se com uma situação que vai de encontro a tudo o que a prioresa havia falado anteriormente.

 

 

Apenas a prioresa voltou às costas disse á organista á mestra de noviças:

_Que impostora!

_E que estúpida! Acudiu a outra.

_A menina não se fie nessa trapalhona, e veja se seu pai lhe dá outra companhia enquanto cá estiver que a prioresa é a maior intriguista do convento. Depois que fez sessenta anos, fala das paixões do mundo como quem as conhece por dentro e por fora. Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalo dava na casa; depois de velha era a mais ridícula porque ainda queria amar e ser amada; agora que está decrépita, anda sempre este monstrengo a fazer missões e a curar indigestões. (AP,1862 p.33).

 

 

            No entanto, além das intrigas Teresa depara-se também com a hipocrisia, os vícios e a quebra do celibato, um ambiente totalmente promíscuo. A prelada fala para Teresa sobre a escrivã na seguinte passagem: “_Esta escrivã não é má rapariga: só tem o defeito de se tomar da pingotela; depois, não há quem a ature. Tem uma boa tença, mas gasta tudo em vinho, e tem ocasiões de entrar no coro a fazer SS, que é mesmo uma desgraça” (AP, 1862,p.51). Esta tem por nome Dionísia da Imaculada Conceição, na intenção de fazer uma apologia ao deus do vinho, que na mitologia grega chamava-se Dionísio.

 Para Lemos (1992, p.25) a descrição do convento das freiras devassas acaba amenizando as dores da heroína camiliana. “Teresa sofre menos ali: é que a pintura jocosa do ambiente distrai o narrador, o leitor e a própria personagem, do drama [...] em que todos estavam empenhados.”

            Em outra passagem da obra Mariana vai até o convento entregar uma carta de Simão a Teresa e recebe galanteio de um padre capelão. Esse fato desperta ciúmes em uma das freiras do convento o que deixa claro a possibilidade de um romance entre ambos.

 

_Que boa moça! – disse o padre capelão, que estava no raro lateral da porta, praticando com a prioresa acerca da salvação das almas e de umas ancoretas de vinho do Pinhão que ele recebera naquele dia e do qual tinha engarrafado um almude para tonizar o estômago da prelada.

_Que boa moça! – tornou ele, com um olho nela e outro no raro, onde a ciumosa prioresa se estava remordendo (AP, 1862, p.70).

 

 

Essa cena do “padre capelão galanteador” funciona como “um balde de água fria no significado da clausura de Teresa” (CABRAL, 1993, 59), que chega ao convento com a impressão que lá iria encontrar paz de espírito, um ambiente propício a fazer suas orações e rogar a Deus para que perdoe aos seus pecados e tenha misericórdia de si e de seu amado. Entretanto, ela se depara com uma realidade igual ou até mesmo pior do que aquela a qual, ela presenciara fora dos muros do convento. “Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas de vida conventual. Ignorava ela que o mundo tinha daquilo. Ouvira falar dos mosteiros como de um refúgio da virtude, da inocência e das esperanças imorredoiras” (AP, 1862,p. 53). Ou seja, toda a impureza de um sistema que defende hipocritamente que a purificação vem à tona, sendo reflexo de uma estrutura social corrompida em seus valores e desonesta em sua própria avaliação. Contudo, como bem enuncia o narrador, o convento ainda é visto pela sociedade a partir de um ideal casto “[...] amostra do evangélico e exemplar viver do convento onde Tadeu de Albuquerque mandara sua filha respirar o puríssimo ar dos anjos [...]” (AP, 1862,p.53).

Como diz Maria de Jesus (1995, p. 114-115):

 

Mesmo numa obra de intenso dramatismo, enformada por uma concepção trágica da existência, como é Amor de Perdição, há também um lugar para o cômico e para a sugestão do grotesco, na caracterização dos ridículos preconceitos de fidalgos provincianos, nas cenas burlescas em que Teresa dialoga com as freiras do mosteiro de Viseu, nos ditos facetos do capelão do mosteiro a Mariana [...], que levaram o narrador a intrometer-se em momentos cruciais da diegese.

 

 

            Assim, podemos perceber que Camilo tece inúmeras ironias ao clero e a igreja de modo geral, entretanto em nenhum momento dentro da obra, surge o questionamento sobre dogmas religiosos e sobre a figura de Deus. Isso acontece porque, ele não tem a pretensão de fazer nenhum juízo moralizante. “A verdade é esta: em Camilo não é o entrecho que mais nos seduz, mas o modo expedido como ele conta” (CHORÃO, 1990, p.46). 

 

 

3.4. Do sério ao cômico: a imagem das personagens

 

            A ironia romântica é uma das características marcantes da obra de Camilo, traduzindo-se na sua maneira singular de expor a vida da sociedade portuguesa do século XVIII, captando suas peculiaridades e criticando os seus hábitos e costumes arraigados. Porém, segundo Duarte (2006, p.19) “não há ironia sem ironista”. Este seria alguém que explora as ambiguidades da linguagem em suas múltiplas possibilidades de sentido, entretanto, o leitor da ironia precisa ser capaz de entender as intenções do autor.

            Logo no inicio do romance, o narrador faz o relato do casamento dos pais de Simão dando ênfase à nobreza dos dois, enumerando a sua extensa lista de sobrenomes, e em seguida falando da precária situação financeira e estado de espírito de ambos.

            Assim, Domingos Botelho é descrito:

Domingos Botelho era extremamente feio. Para se inculcar como partido conveniente a uma filha segunda, faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres dele não excediam a trinta mil cruzados em propriedades no Douro. Os dotes de espírito não o recomendavam também: era alcançadíssimo de inteligência, e granjeara entre os seus condiscípulos da Universidade o epíteto de "brocas", com que ainda hoje os seus descendentes em Vila- Real são conhecidos. Bem ou mal derivado, o epíteto Brocas vem de broa. Entenderam os acadêmicos que a rudeza do seu condiscípulo procedia de muito pão de milho que ele digeria na sua terra. (AP, 1862, p. 4)

 

 

            Outra ironia direcionada a Domingos Botelho, corresponde a sua profissão “certas vergônteas podres dos troncos dos Botelhos Correias de Mesquita, desprimorando-lhes as sãs com o fato de ele ter vivido dois anos em Coimbra tocando flauta” (AP, 1862, p.9). Essa profissão era desprestigiada e tida como inferior pela sociedade da época. D. Rita também é descrita ironicamente, quando lhe é mostrada a sua extensa lista de sobrenomes “D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco” (AP, 1862, p.5). Além do mais, o narrador menciona que embora esta fosse muito bela, faltava-lhe o dote:

 

Domingos Botelho casou com D. Rita Preciosa. Rita era uma formosura, que ainda aos cinqüenta anos se podia prezar de o ser. E não tinha outro dote. se não é dote uma série de avoengos, uns bispos, outros generais, e entre estes o que morrera frigido em caldeirão de não sei que terra da mourisma, glória, na verdade, um pouco ardente. mas de tal monta que os descendentes do general frito se assinaram Caldeirões. (AP, 1862, p.5).

 

 

            Depois de mostrar que a situação financeira de D. Rita Preciosa deixava a desejar, e de rebaixar a sua linhagem, ele ainda enfatiza com um tom irônico a soberba, desta: "Sabíamos que ela era dama da Senhora D. Maria I; porém, da soberba com que nos tratou ficamos pensando que seria ela a própria rainha" (AP, 1862, p.07).

            O primo de Teresa também é apresentado de forma irônica “Baltasar Coutinho que, a juízo de seu tio, era um composto de excelências, tinha apenas uma quebra: a absoluta carência de brios” (AP, 1862, p.30).

            Simão Botelho representa nesse romance uma crítica ao herói romântico, ele seria um anti-herói. É teimoso e imprudente, e não é bem visto pelo narrador, por isso foi apresentado inicialmente como arrogante: “Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra arrogantes convicções de sua valentia” (AP, 1862, p.27) sendo movido pelo ódio em vez do amor. “Poderia viver com a paixão infeliz; mas este rancor sem vingança é um inferno” (AP, 1862, p.75). Assim, temos a prova cabal da incoerência deste “herói romântico”, quando este assassina Baltazar, onde o verdadeiro empecilho era o pai de Teresa. Por conta dessa ação nada romântica Simão é preso, criando mais um dos empecilhos à realização amorosa. Em seguida, Simão é condenado a forca por conta da sua teimosia descrita no inicio da obra. Poderia ter fugido da prisão ou aceitado os dez anos de cárcere, que poderiam ser abreviados após a morte do pai de Teresa, onde esta se tornaria independente, mas o herói prefere o degredo, mesmo sabendo que com isso ele precipita a morte de Teresa. Isso é comprovado quando Teresa escreve: “Quero que digas: - Está morta e morreu quando eu lhe tirei a ultima esperança” (AP, 1862, p.142).

            Como afirma Chorão (1990, p.17), “Simão não persegue o amor, mas a morte, como se esta fosse à meta apetecida. Destruir e destruir-se parecem ser o escopo do herói romântico, numa fúria de viver que não é senão desgosto da vida”. Ou seja, através de Simão o autor nos mostra um herói que ao invés de ser exaltado é criticado por vezes pelo seu comportamento que não condiz com o herói habitual. Automaticamente, o narrador critica o ideal de morte defendido pelos românticos, uma vez que Simão consegue destruir a si e a sua amada.

            Analisando as cartas o que se constata é certo enfraquecimento de Simão, como se nada tivesse conseguido fazer para recuperar a amada: “Não espere nada, mártir – escrevia-lhe ele. _A luta com a desgraça é inútil, e eu não posso já lutar”(AP, 1862,p.132).

            Nessa perspectiva, o narrador tece várias críticas a esse personagem ao longo do romance, chamando-o de arrogante “Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra arrogantes convicções de sua valentia” (AP, 1862, p.17), e também de demagogo “ Um dia, proclamava  o demagogo acadêmico na praça Sansão[...]” (AP, 1862,p.18). A ironia ainda o atinge quando este passa por dificuldades financeiras:

 

A coisa é vilmente prosaica e de todo o meu coração o confesso. Não é bonito deixar a gente vulgarizar-se o seu herói a ponto de pensar na falta de dinheiro, um momento depois que escreveu a mulher estremecida uma carta como aquela de Simão Botelho (AP, 1862, p.60).

 

 

            Nem mesmo o herói romântico sobrevive às ironias camilianas, pois esta é lançada nas mais variadas situações que as personagens vivenciam. Ao contrário do herói romântico, as personagens femininas de Amor de Perdição possuem características que não condizem com o ideal de mulher romântica. Ciente de que sua família não permitiria o seu casamento com Simão, o narrador nos diz que Teresa “[...] esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande patrimônio” (AP,1862, p.41). Mas adiante, apresenta outro comportamento quando o pai ameaça encerrá-la em um convento, fingindo amor e respeito filial. Esse comportamento da personagem não condiz com o mundo romântico idealizado, de personagens virtuosas e sem contradições, mesmo sendo considerada íntegra Tereza tem sua moral posta em questionamento.

            Outra personagem que também sofre os reflexos da variante comportamental na obra é Mariana, enquanto Simão teme o degredo, Mariana escolhe acompanhá-lo corajosamente dispondo a trabalhar para sustentá-lo, sendo que ela almeja a possibilidade de ficar perto dele, para lhe despertar o amor “Era de mulher o coração de Mariana [...] Amava e tinha ciúmes de Teresa [...] sonhava com as delícias do desterro porque voz humana alguma não iria lá gemer a cabeceira do desgraçado” (AP, 1862, p.128). Mesmo ciente de que Simão amava Teresa, Mariana alimentava a esperança de que no degredo pudesse conquistar Simão. Era generosa, mas suas atitudes não eram totalmente desinteressadas, pois nutria a esperança de um dia poder ser amada.

            O que observamos através desses excertos é que o narrador camiliano não poupa críticas irônicas à hipocrisia da sociedade oitocentista. Aliás, como diz  José Régio(1980):

 

decerto não haverá muitos exemplos, em toda a literatura mundial, duma tão espantosa naturalidade na passagem do choro ao riso, ou vive-versa. É isto nele [em Camilo] um pendor que às vezes, de princípio, nos pode chocar, e a que nos habituamos na convivência com a sua obra (RÉGIO, 1980, p.154).

 

            Na verdade, ao misturar o cômico com o sério dentro da narrativa, Camilo acaba criando um discurso destinado a atrair o leitor romântico, apesar da presença constante da ironia.

 

 

3.5  O texto camiliano: o romance nas mãos do leitor

 

 Amor de Perdição transcende a imagem moldada de mera tragédia passional, pois o subtendido vai interessar mais que o propriamente dito, com a opacidade da linguagem, o autor cria a dubiedade lúdica de suas narrativas. Assim, cabe ao leitor operar uma espécie de “interpretação corretora da desfocagem” (CASTRO,1976, p.59-74). Como diz Cabral (2008, p.14), “os efeitos da estética da ambiguidade fazem-se sentir em todos os domínios e nessa medida, o leitor tanto reconhece traços da novela passional, num registro de dramaticidade muito marcado, como ‘tropeça’ em trechos do mais puro gozo e chacota à personalidade romântica da época”.

A dualidade ou a contradição identificada nas personagens constitui o fulcro da arquitetura do romance, sob o qual subjaz o registro da visão de mundo do autor que tende a ser bastante crítica e realista.

 

[...] o que torna muito notável o texto de Camilo é o trabalho sistemático com a tematização das espectativas de leituras. Seus prólogos, dedicatórias, nota de rodapé e digressões internas ao texto das novelas freqüentemente espezinhadas. Expectativas que Camilo, escritor profissional, sabe perfeitamente satisfazer no nível da narrativa”(FRANCHETTI, 2003, p.31).

 

 

            Defensor de uma concepção que entende a literatura camiliana como exercício da linguagem, o crítico Franchetti (2003) contrapõe enfaticamente o método “biográfico-passional”, basilar da maioria dos estudos camilianos, conforme demonstrado anteriormente. Sob os olhares de Franchetti a estrutura da narrativa chega a ser apreciada a partir das reflexões acerca da literatura e do escritor do século XIX, a função do narrador, a existência de digressões filosofantes e de alguns procedimentos metalinguísticos, que foram despercebidos por grande parte da crítica literária.

Como diz Reis (1994, p.107) Camilo sente “[...] a necessidade de refletir sobre os modos [...] da criação romanesca, sobre a relação dessa criação com o público, sobre o devir da literatura e suas modas [...]”, de modo que, muitas vezes, um texto de valoração real seja contraposto ao ficcional, com o intuito de cumprir ou enunciar uma poética narrativa, “incidindo sobre [...]: a personagem e a ação, a narração [...], em que encontramos a poética reinventada como domínio interessado na estrutura artística do texto, no dispositivo macroestrutural da obra literária” (Op. cit. p.109).

 Nesse sentido, a obra veio veicular um projeto de “estudo da alma, ou a pureza do dizer” que “está sobejamente estudada e desvelada nas literaturas antigas, em nome e por amor das quais muita gente abomina o romance moderno e jura morrer sem ter lido o melhor do mais apregoado autor”(AP,1862p.18).  Essa reflexão elucidada pelo autor sobre a linguagem e outras apreensões conduz a um ponto prosaico e humano, que certamente muito contribuiu para que o romance na acepção moderna fosse enfaticamente implantado em Portugal.

Assim, a narração do trágico triângulo amoroso formado por Simão, Tereza e Mariana representa um pretexto para discussões de outras ordens, que se distanciam da convencional história de amor. O narrador faz questão de dizer que “o amor aos quinze anos é uma brincadeira; é a última manifestação do amor às bonecas; é a tentativa da avezinha que ensaia o vôo fora do ninho, sempre com os olhos fitos na ave-mãe que a está da fronte próxima chamando” (AP,1862, p.13). Nesse fragmento, Camilo faz uso das técnicas da escola zolariana, porém os comentários irônicos do narrador  levam o leitor a crer que se trata de uma paródia, que se dispõe a estudar o comportamento humano e, sobretudo, a denunciar as mazelas sociais.

Interessante notar que o leitor camiliano, surge ao lado do narrador, como “um companheiro de viagem [...] determinado fortemente a elocução na medida em que participa, com sua ação reveladora, da construção do sentido do texto. [...] não só presencia os acontecimentos [...], mas também o próprio ato de narração [...] (SANTOS, 1999, p.74), servindo-lhe, muitas vezes, de elemento de continuidade:

 

-          Teresa?

Perguntaram a tempo, minhas senhoras, e não me hei de queixar-se me argüirem de a ter esquecido e sacrificado a incidentes de menos porte. Esquecido, não. [...] Teresa Clementina bem a viram transportada da escadaria do templo onde caira, à liteira que a conduziu ao Porto. Recobrando o alento viu defronte de si uma criada, que lhe dizia banais e frias expressões de alivio. Se alguma criada de seu pai lhe era amiga, decerto não aquela, acidentalmente escolhida pelo velho. Nem ao menos a confiança para tal expansão em gritos restava à aflita menina (AP,1862, p. 95).

 

No fragmento destacado acima, encontramos a cumplicidade entre instância narrativa e leitor. Esse é um recurso fundamental para que os acontecimentos que se sucedem a Tereza sejam conhecidos no curso da diegese: o narrador mostra os pontos nucleares de cada situação, enquanto o leitor organiza as ocorrências.

            Ferraz (2003) observa que:

 

Tão óbvia, ou linear leitura deve por o leitor de Camilo de sobreaviso. Normalmente, as leituras que parecem demasiado evidentes (e essa é uma das características das surpresas que Camilo nos revela) encerram pequenas armadilhas onde são apanhados os leitores mais desatentos desta arte de “mentir” para falar a verdade. Será que nesta tão escancarada moralidade há mesmo uma só direta condensação dos males do tempo presente, em contraste com os bens do tempo passado? Não muito conveniente, e amoralidade parece ser outra, mais profunda, senão esqueçamos a invocação final que segue (FERRAZ, 2003, p.25).

 

 

 

Como ressalta a Ferraz (2003), em Amor de Perdição a aproximação do autor com o leitor acontece ao longo de toda a obra de sobreaviso. Ele conversa com o seu leitor para que sua presença seja sentida dentro da obra, e que passemos a nomeá-lo como narrador-autor, onde através de suas ironias ganha espaço dentro da narrativa. Como bem coloca Monteiro Lobato (1946, p.98), numa carta a Godofredo Rangel:

 

Encanta-me essa coragem de por-se de pé, conversar com o leitor. Há os cuidadosamente objetivos, como Flaubert, que fazem falar dos personagens, nunca aparecem em cena, fazem que não existem. Camilo existe, e faz questão

de que saibam que ele existe e está sempre presente em tudo quanto escreve.

 

 

            A aproximação com o leitor é sentida durante toda a narrativa, seja através da enunciação feita pelo narrador sobre os personagens e sobre a classe social, ou através da tentativa de inseri-lo na narrativa, naquela atmosfera que é comum a ambos, a qual o leitor se identifica, se ambienta.  Além do mais, “se (Camilo) escrevia para várias casas editoriais – cada uma delas com seu nicho de mercado  e seu público específico – é porque tinha consciência do que cada um desejava e sabia moldar-se as várias e diversas necessidades”(OLIVEIRA, A. 2005, p. 564).

            Conforme Silva e Ezequiel (1998, p.152):

 

O leitor proficiente é aquele que tem objetivos definidos e sabe avaliar em cada situação de leitura [...]. Sabe reconhecer o gênero em que se apresentam os textos [...] mobiliza conhecimentos prévios e percebe logo quais, dentre eles, são pertinentes para o processo de compreensão [...] ler nas entrelinhas e perceber os famosos vieses ideológicos.

 

 

 

            Se por um lado o narrador camiliano parece ter a plena certeza de quem são seus leitores comuns “[...] Essa, a minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdera a honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?!” (AP, 1862,p.03), por outro ele espera a existência de um leitor diferenciado “Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de Tadeu de Albuquerque.” (AP,1862, p.22). Quando se refere ao leitor comum, portanto, ele fala em “leitoras”. Já ao aludir ao leitor perspicaz, utiliza a desinência no masculino “Neste lance, um observador perspicaz veria luzir nos olhos de Mariana um clarão de inocente alegria” (AP, 1862, p.59).

            Essas passagens destacadas no parágrafo anterior denotam que Amor de Perdição possui uma história em nível superficial, de forma a atingir as expectativas do leitor comum. Em contrapartida, apresenta outra história com nível mais profundo que se alimenta dos comentários irônicos, anedotas e criticas a sociedade e ao próprio leitor comum, assim como, ao mercado editorial e as demandas de romances as quais está inserido, enquanto escritor.

            O próprio Camilo nos afirma, que se Amor de Perdição hoje fez chorar, foi por falta de uma leitura mais profícua, e o leitor de hoje certamente não será o mesmo de amanhã. Este último seria capaz de compreender a densidade da obra.

 

Amor de Perdição fez chorar [...]. Mas agora, como indenização, faz rir: tornou-se cômico pela seriedade antiga, pelo raposinho que lhe deixou o ranço das velhas histórias do Trancoso e do padre Teodoro de Almeida. E por isso mesmo se reimprime. O bom senso público relê isto, compara com aquilo e vinga-se barrufando com frouxos de riso realista as páginas que há dez anos aljofarava com lágrimas românticas (AP, 1862, p.19).

 

            Diante do fragmento acima, percebemos que não se sustenta mais o olhar puramente ultrarromântico sobre a obra em comento, porque ela aspira novas interpretações que possam evidenciar uma intensa autoconsciência em relação à produção artística e a função a ser desempenhada pelo leitor, que é convidado a construir a cena literária. Assim, encontramos em Amor de Perdição “escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram em umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação [...] (BARTHES, 2004, p.05). No romance, [...] o discurso no diálogo como sua réplica viva, forma-se na mútua orientação dialógica do discurso de outrem no interior do objeto [...] (BAKHTIN, 1992, p. 88-89). Para tanto, a atitude de Camilo em relação ao seu discurso, aponta para o horizonte dos aspectos plurissignificativos da linguagem do romance. “Se, por virtude [...], eu reaparecer na sociedade do século XX, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta quinta edição do Amor de Perdição quase esgotada”(AP, 1984,p. 20).

            O trecho acima enfatiza a consciência do escritor com relação ao futuro de sua obra. Camilo parece saber que

 

o tempo das obras não é o tempo definido do ato de escrever mas o tempo indefinido da leitura e da memória. O sentido dos livros está na frente deles e não atrás, está em nós: um livro não é um sentido acabado, uma revelação que devemos receber, é uma reserva de formas que esperam seu sentido.. (GENETTE, 1972, p.129).

 

 

            Ao desencadear uma narrativa metaficcional, Camilo cria possibilidades de diálogos entre o narrador e o leitor, dando a ligeira impressão de que a obra é fruto da interação dialógica entre o hipotético autor e o leitor da quinta edição de Amor de Perdição.

            Esse processo dialógico confirma a propriedade do texto camiliano, pois,

 

Camilo nunca escreveu qualquer tratado ou texto programático no qual considerasse uma teoria explicita completa da ficção narrativa. Encontramos, porém, disseminados por toda sua obra – da novela à epistolografia – abundantes e importantes elementos que permitem sistematizar essa teoria, não como cânone, antes como concepção em permanente mudança [...], mas sempre viva, e sobretudo, atenta as transformações sociais que a arte do romance vivera sofrendo, desde os modelos do século XVIII, [...] à sedutora novidade do Realismo [...] viriam representar para os ficcionistas portugueses da segunda metade de oitocentos(CASTRO, 1991, p.53).

  

 

Assim sendo, Camilo, na esteira da criação ficcional evidencia uma permanente autoconsciência refletida por meio de seus narradores, personagens e leitores. Vale lembrarmos que o leitor é convidado a todo o momento a adentrar no universo literário, assim como no espaço elucidado pelo romance. Podemos acreditar que

 

 [...] seu projeto parece dizer que a diferença entre o ato da escrita e o ato da leitura está apenas no fato, circunstancial, de ter sido um o que sentou-se e combinou as palavras formando um objeto, e em um momento diferente ter sido outro aquele que deu vida a esse objeto. (CARNEIRO, 2001, p. 74).

 

 

            De acordo com Flávio Carneiro (2001), a obra literária se realiza de fato no ato da leitura, momento em que o leitor tem uma função ativa e criadora preenchendo as lacunas deixadas em seu interior. Dessa forma, a leitura da obra camiliana “realiza a interação central entre a estrutura da obra e seu receptor[..]. Daí segue: a obra literária tem dois pólos [...]: o polo artistico designa o texto criado pelo autor e o estético a concretização produzida pelo leitor”(ISER, 1996, p.50).

            Logo na introdução da obra, o leitor é convidado a tomar partido da história que será narrada, como denota o seguinte fragmento:

 

Folheando os livros [...] das cadeias da Relação do porto, li [...] o seguinte:/ “Simão Antonio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Viseu, idade de dezoito anos [...]./ Foi para a Índia em 17 de Março de 1807”. Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó. Dezoito anos! [...] As louçarias do coração que ainda não sonha em frutos, e de todo se embalsama no perfume das flores! [...] o amor daquela idade! Passagem do seio da família [...] para as carícias mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor da mesma hora da vida” [...] E degradado da pátria, do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdades, nem amigos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem amigos! [...]/ O leitor decerto se cumpungia; e a leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha a história daqueles dezoito anos choraria!/ Amou, perdeu-se, e morreu amando/ [...] E a história  assim poderia ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura bem formada, o que por vezes traz do céu um reflexo da divina misericórdia?/ Essa, a minha querida carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissesem que o pobre moço perderia [...] tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir (AP,1862, p.02).

 

Como podemos notar o trecho acima representa uma síntese do processo de construção da escrita dialética de Camilo. O leitor figura como um personagem que dá continuidade e sentido ao seu texto. Para tanto, o narrador parecer ser um grande conhecedor de seu público ao tecer vários comentários que possam atingir a mais profunda sensibilidade do leitor com relação a trajetória do herói, em seguida, assegura os fatos que vai narrar. Como diz Annabela Rita (2003):

[...] o narrador tenta fazer-nos simpatizar com Simão Antonio Botelho. Para nos comover usa dois argumentos bastante eficazes: a juventude e o amor de Simão. Eficácia argumentada com a repetição desses mesmos argumentos e registros da emoção do próprio narrador. Tudo isso condiciona o leitor. Mas, como se isso não bastasse, o narrador ainda lhe prescreve um modelo de leitura: a comoção. E fá-lo apresentando-a como conseqüência natural de sensibilidade, da boa formação e da humanidade [...]. E, o sujeito da escrita não apenas prescreve uma atitude de leitura como comove [...]o leitor através da afetividade (RITA, 2003, p.38).

 

Essa relação próxima com o leitor faz de sua obra “um veículo inestimável de questionamento, capaz de propor a discussão e de ‘julgar’ os modelos em voga”(ALVES, 1990, p.46), requerendo sempre uma atitude criadora por parte do leitor. Jean-Paulo Sartre afirma esse fenômeno em seu clássico Que é a Literatura? que

o ato criativo é apenas um momento incompleto e abstrato da produção de uma obra enquanto objeto jamais viria à luz: só lhe restaria abandonar a pena ou cair no desespero. Mas a operação de escrever implica, enquanto correlativo dialético, a de ler, e esses dois atos conexos e imaginário que é a obra do espírito. Só existe arte para outrem. A leitura, de fato, parece ser a síntese da percepção e da criação. [...] e o objeto literário ainda que se realize na linguagem nunca é dado na linguagem; ao contrário ele é por natureza silêncio e contestação de fala (SARTRE, 1989, p.37).

 

Em última análise, Camilo antecipa o “ato criativo” apresentado por de Sartre no trecho acima, quando evidencia em sua obra todo esse processo. Nesse sentido, a ficção camiliana projetou um projeto estético-literário pouco reconhecido pela crítica tradicional: “grande a viagem do escritor! Igualmente grande a viagem do leitor! Maior ainda a viagem que a montagem de seus textos nos pode proporcionar”(ROSA, 2006, p.212).

 

 

5 CONCLUSÃO

 

            A pesquisa que ora concluímos tomou como objeto de estudo o legado crítico da obra Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco e para isto procuramos apresentar inicialmente um panorama geral do Romantismo à ficção camiliana na literatura portuguesa do século XIX. Em seguida, o curso do trabalho evoca o debate sobre os tradicionais estudos camilianos a fim de afastar as visões simplistas que circundam autor e obra.

Percebemos que a obra camiliana, em especial, Amor de Perdição transcende o rótulo de romance “biográfico-passional,” quando explorada a partir da sua dimensão textual, que envolve um processo plural (de integração entre autor, narradores, personagens e leitores). Tal fato evidencia que os elementos que compõem Amor de Perdição provocam incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si. Ao longo da obra fica claro que existe uma grande parceria entre narrador e leitor, que juntos projetam a fortuna crítica camiliana.

A vasta fortuna crítica de Amor de Perdição nega a imagem cristalizada de um autor estritamente romântico ou ultrarromântico alimentada por grande parte da crítica literária.

Ao observamos o romance em estudo à luz dos novos estudos, sentimos a necessidade de repensar a tradicional visão lançada sobre Amor de Perdição. Chegamos, assim, a conclusão de que a figura do romance “biográfico-passional” é desconstruída a partir das passagens críticas da obra, que geram uma reflexão significativa acerca da sociedade oitocentista, evidenciando novas dimensões do fazer literário e do espaço evocado pelo romance.

Do ponto de vista da estruturação do texto, a marca do discurso dialógico dos entrechos metaficcionais em Amor de Perdição confirma que a vasta obra de Camilo Castelo Branco, nos mais diversos domínios não se explica nem se entende por si mesma, o que torna compreensível a complexidade e amplitude do legado desse escritor. Aliás, não erramos muito se afirmarmos que a “novela camiliana” é, no vocábulo crítico atual, um termo que recobre na interpretação canônica cristalizada. Transcendendo o rótulo de romance “passional-bigráfico”. E esta conclusão é um tanto mais pertinente se tivermos em conta a ansiosa busca do diálogo se submetia infalivelmente à mediação da escrita romanesca.

           

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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[1] Oscar Lopes, no artigo “Formas de recepção a Camilo” recolhido do livro Ensaios Camiliano (2007), faz uma excelente abordagem sobre os estudos camilianistas desde os seus primórdios, registrando a evolução da perspectiva crítica do século XX. Apesar dos novos estudos, ainda é recorrente as análises de caráter estritamente românticas acerca da produção camiliana, principalmente pela historiografia e crítica desatenta, que tomam por base elementos superficiais de suas obras. Acreditamos, no entanto, que a ficção camiliana, em especial Amor de Perdição possa ser estudada para além da sacralização do amor, que seria o tema crucial das obras ultrarromânticas.  

 [2] O reconhecimento da fortuna crítica camiliana, expresso neste estudo, é fruto da análise literária da obra Amor de Perdição, que apresenta um conjunto romanesco permeado por recursos literários e tema de viés sociológico ainda pouco estudado pela crítica habitual.

[3] Convencionaremos a sigla AP, seguida do devido número de página, para aludir, daqui por diante à obra Amor de Perdição, conforme indicação bibliográfica.

[4] Até o momento, não existe um levantamento preciso que dê conta das traduções e adaptações feitas em torno de Amor de Perdição. Sabe-se, no entanto, que essa obra foi traduzida para o espanhol, o inglês, o francês, o alemão, o italiano, o norueguês e o mandarim. Dela foi extraída uma ópera, sob a autoria de João Arroio, sendo estreada em 1907 no Teatro São Carlos. Foi adaptada ao cinema pelos cineastas brasileiros Francisco Santos e José Viana, respectivamente em 1914 e 1917, pelo francês Georges Pallu em 1921, ainda em cinema mudo, por Antonio Lopes Ribeiro em 1943 e por Manuel de Oliveira em 1978. Em 1965 a TV cultura apresentou a sua versão do romance , em forma de telenovela, também chamada de  Amor de Perdição. Em 2006-2007, juntamente com os romances Livro negro do Padre Dinis e Mistérios de Lisboa, a obra em questão tornou-se a base da telenovela luso-brasileira Paixões Proibidas, exibida no Brasil pela rede Bandeirantes e em Portugal pela RTP (Informações adquiridas por meio da leitura da dissertação de mestrado A ficção camiliana: a escrita em cena, de Moizes Sobreira de Souza. Texto publicado em 2009 pela USP).