Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade
Por Manoel Huires Alves | 20/05/2014 | LiteraturaPaulicéia Desvairada de Mário de Andrade
Manoel Huires Alves
“Paulicéia Desvairada”, de Mário de Andrade, publicado em 1922 e cujo prefácio – Prefácio Interessantíssimo – será estudado nesta atividade, lança as bases estéticas do Modernismo brasileiro. O livro, considerado a primeira obra de vanguarda no modernismo, foi inspirado na análise da cidade de São Paulo e seu provincianismo, marcando, portanto, o rompimento definitivo do autor com todas as estruturas do passado.
O livro Paulicéia Desvairada, que nos revela um contato com as vanguardas europeias (futurismo, o expressionismo e o dadaísmo), embora não tendo um roteiro ou um enredo, é um livro de poesias, aonde a cidade de São Paulo, a musa das poesias, é a sua temática. A linguagem do livro é simples – coloquial – contendo erros propositais de ortografia e de gramática, o que se tornou um desafio às correntes então dominantes, ao configurar, por si só, um protesto, revolucionando, assim, a linguagem poética brasileira ao pregar o verso livre. Incrivelmente, como um inventário de vivência, percepção e sensação, a obra, desencadeada pela modernização de São Paulo, reúne poesias urbanas, sintéticas, fragmentadas e antirromântica, retratando a mesma como uma cidade concreta, cosmopolita e egoísta. Cidade de população heterogênea, cujo domínio estava sob uma burguesia cínica.
Prefácio Interessantíssimo
Oswald de Andrade, junto de Mário de Andrade e de outros, tornou-se também um dos maiores espíritos do movimento modernista brasileiro, ao lançar em 1925, o volume de poesias Pau-Brasil. O Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado, em 1924, no jornal Correio da Manhã, foi de grande importância para o Modernismo, ao reclamar o exercício de uma linguagem natural e combater o bacharelismo e o pedantismo. E mais, além de pregar a junção do moderno e do arcaico brasileiro descambando para uma revolução artística nacionalista com base nas raízes primitivas, o citado manifesto proclamou a originalidade nativa.
Mário de Andrade, no “Prefácio interessantíssimo”, cuja publicação antecedeu de dois anos ao “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, já caracterizava os modernistas chamando-os de “primitivos de uma nova era”, buscando fugir dos chamados “primitivos das eras passadas”, propondo o “primitivismo na poesia”, isto é, aprofundando a ênfase na expressividade e na inspiração, a busca da síntese e da espontaneidade, obtidas tecnicamente pelo verso livre.
O escritor parece fundar uma nova escola literária, o Desvairismo (palavra que nos faz lembrar a radical negação da razão da arte dadaísta), sendo o “Prefácio interessantíssimo” uma espécie de ata de fundação desta escola ou movimento literário, aonde, no fim do Prefácio, o mesmo, ironicamente, declara o encerramento da escola ou movimento recém-inaugurado, que, ao recusar discípulos, explica o por quê: “Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só”.
“Está fundado o Desvairismo. / Este prefácio, apesar de interessante, inútil. (...) E está acabada a escola poética ‘Desvairismo’. / Próximo livro fundarei outra.” (Prefácio Interessantíssimo).
Texto escrito em parágrafos curtos e de linguagem incisiva, o supracitado prefácio, expressa a complexa tarefa de conjugar a orientação moderna com a realidade local, a “língua brasileira”, ao anunciar o “desvarismo”, ou seja, a incongruência, a extravagância e a excentricidade.
No texto são visíveis algumas aproximações com as vanguardas europeias, isto é, o Dadaísmo, o Cubismo, o Surrealismo, o Futurismo e o Expressionismo. Em termos de construção ou de recursos técnicos, Mário de Andrade, aproxima a poesia à música, como os simbolistas, adotando a teoria da “polifonia poética”, segundo a qual um poema deve combinar versos melódicos (lineares ou gramaticais) e versos harmônicos, tornando-se, assim, polifônico, isto é, de múltiplas vozes e formas. Vê-se, ainda, a presença forte de traços dadaístas, embora para Mário de Andrade a eles se deva acrescentar a “limpeza”, o “trabalho de arte” e a interferência da razão, pressupondo dois momentos igualmente indispensáveis para a criação poética, o momento “surrealista” da inspiração e o da “impulsão lírica”, obedecendo a seguinte fórmula: lirismo + arte = poesia: “Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que o meu inconsciente me grita”.
Outra característica fundamental presente na obra de Mário de Andrade e também presente em Oswald de Andrade é o nacionalismo, isto é, a criação de uma língua nacional, de uma cultura nacional autônoma e independente, sendo a recusa do academicismo, do “gabinetismo” e da “prática culta da vida” um dos traços mais fecundos da primeira geração modernista, aproximando a poesia à vida, a linguagem poética à oralidade e as reflexões sobre a poesia ao fazer poético, ou seja, escrever como se fala e ver os “erros” como uma “contribuição milionária”.
Especificamente, no prefácio, que ligação se faz da poesia com a arte futurista?
“Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que se discutiram minhas ideias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já agora não me calo. Tanto ridicularizaram meu silêncio como esta grita. Andarei a vida de braços no ar, como indiferente de Watteau” (Prefácio Interessantíssimo).
A ligação do prefácio com a escola futurista era periférica, sem tematizar a máquina pela máquina ou o automóvel pelo automóvel, a exemplo de Marinetti, embora em Paulicéia desvairada os sinais exteriores da modernidade já estivessem presentes. É curioso observar que, no Modernismo brasileiro, a volta ao primitivo e ao infantil configurava um itinerário inverso ao dos modelos estrangeiros, em que se buscava as raízes remotas e, supostamente, as mais autênticas de nossa cultura. Enfim, ao lado da entrega lírica às matizes pré-conscientes da linguagem, o Prefácio Interessantíssimo, mostra a admiração da experiência cubista, que, por meio da deformação abstrata, rompe com os moldes pseudoclássicos da arte acadêmica.