Passou desta para a melhor
Por Henrique Araújo | 08/06/2009 | LiteraturaPASSOU DESTA PARA A MELHOR
O tempo é de correr. Correr para baixo, correr para cima, nunca ficar parado. Quem fica parado perde tempo e tempo é dinheiro. A vida é de correr, ali num carro, lá num trem, acolá num avião. E assim a vida corre, a vida vai, a vida voa.
E assim foi no dia em que peguei o carro. Saí a 100kms por hora, correndo apressado, magoado, trespassado, danado da vida. Eu não via nada na frente, só a estrada. As pessoas passavam por mim e eu por elas. Os carros passavam e eu seguia em frente, correndo mais, sempre mais. Nunca parava. Precisava vencer o tempoou o tempo me venceria.
Passei perto de uma escola em alta velocidade. Vi pelo retrovisor uma porção de crianças que brincavam. Não havia problemas, eles estavam do outro lado do muro.
Passei perto de um cemitério, não havia problemas, estavam todos mortos. E o pior é que eles nem notaram que passei por eles.
Com a velocidade em que eu ia, entrei em uma feira, não sei como, eu só via laranja, banana, tomate, galinhas voando para tudo quanto era lado. Eu equilibrando o volante do carro e gente se esquivando de um lado e outro gritando: "Ele é louco, o homem ficou louco". Com muito custo saí daquele aglomerado, o carro todo estragado, barraquinhas de feiras, não sei quantas houvera derrubado.
Quando saí no estradão, pisei firme no acelerador. O ponteiro chegou aos 200 kms. Um outro carro vinha tentando fazer uma ultrapassagem e entrou na minha direção. Quando dei fé não tinha mais jeito, estava em cima. Ele me pegou. Foi um choque enorme. Os dois carros se acabaram. Saí de dentro do meu com a metade da cabeça partida, esvaindo em sangue. Já saí com o revólver em punho e gritando: "cadê ele, cadê ele". Não vi mais nada. A vida esvaiu-se-me rapidamente num piscar de olhos. Não sei por quanto tempo passei neste torpor.
Quando acordei, vi-me caminhando, voando baixinho. Chegava num casarão enorme. Havia muita gente, todos vestidos de branco. Vi um grande portão no meio do corredor, estava trancado com grades de ferro. Pedi ao guarda para que abrisse. Ele nem me olhou. Falei várias vezes e nada. Impulsionado não sei como, passei pela grade de ferro do portão. Impressionante! Nunca me acontecera isto antes. Cheguei a um outro quarto. Havia na porta duas enfermeiras conversando e uma dizia a outra: "Ele não passa de hoje, esvaiu muito sangue". Alguém estava muito mal ali - pensei. Perguntei às moças quem estava tão mal assim, mas elas nem me perceberam. Interroguei várias vezes e a mesma coisa. Fiquei intrigado com aquilo. Por que ninguém me respondia? Tinha alguma coisa estranha. Pedi licença para passar, mas não perceberam nada. Como ninguém me respondia, passei por dentro de uma enfermeira e entrei no quarto. Por dentro da enfermeira? Claro. Uma coisa estranha me veio à mente. Como passara por dentro da moça? Não me importei com a resposta e fui ver quem era. Havia um sujeito na cama todo cheio de aparelhos e oxigênio, soros, uma parafernália toda. Não me importei muito com isto, pois já sabia que estava num hospital e lá é que é lugar disto mesmo. Queria ver quem era o cujo. Tirei a toalha do rosto do dito e... um espanto enorme tomou conta de mim. Era eu quem estava ali. Que coisa horrível! Como é que eu estavaalinacama todo quebrado e eu estava ali olhando para mim mesmo? De repente eu virei dois? Daí há pouco entraram dois médicos. Um olhou para uma maquininha que piscava e disse ao outro: "Dentro de 10 minutos este cara aí estará morto". Morto? Eu? Qual dos dois eus, o que estava na cama ou o que estava perto da cama? Que pergunta! Desesperadamente comecei a balançar o imbecil que estava na cama. O imbecil não acordava. E o pior é que o imbecil era eu mesmo. De tanto eu balançar o fulano, cansei. Fui-me sentindo fraco, o corpo foi-se tornando mole. Seu eu desmaiar aqui, este fulano morre mesmo - pensei. E o pior é que este fulano é eu mesmo. Dois eus mortos no mesmo apartamento de um hospital. Coisa estranha! Não poderia ser. Os médicos tinham que salvar pelo menos um eu. Eu não sabia explicar como, de repente, me tornei dois. Não importava agora. Depois a gente estudaria esta situação, se escapasse um dos eus, portanto era preciso, pelo menos salvar um. Gritei novamente, os médicos não me ouviam. Fui desmaiando aos poucos e caindo no chão. No chão? Impressionante! Fui caindo dentro do próprio eu. E de repente eu, que estava na cama, abri os olhos. Os dois eus se tornaram um só. Virei a cabeça de um lado e outro. Senti dores por todo o corpo. Estava em trapos.
Os médicos abriram um olhão e gritaram: "Milagre, o morto reviveu". Começaram imediatamente novas medicações e falavam entre si: "desta aí, este não morre mais". Uma pequena satisfação tomou conta de mim e pensei: "Graças a Deus'.