PASSEANDO PELA PAULICEIA DE MARIO DE ANDRADE

Por Renato Ladeia | 08/05/2017 | Crônicas

Tempos atrás eu tinha por hábito guardar jornais quando havia alguma matéria interessante que não tinha tempo de ler. Guardava muitos e muitos jornais, principalmente o suplemento literário do Estado de São Paulo. Tempos depois fazia uma limpeza por falta de espaço ou porque a umidade de São Bernardo deixa tudo com cheiro de mofo insuportável.  Guardei durante muito tempo o suplemento da Folha de São Paulo, o Caderno Mais do Estadão e algumas revistas.

Hoje, levantei disposto a dar um jeito no quartinho de despejos por pura necessidade e imposição da dona da casa que deu seu ultimato: ou arruma ou eu boto tudo no lixo. Lá fui eu respirar poeira e mofo, espirrando e tossindo. Abro uma caixa e deparo com jornais velhos. Olho um, guardo. Olho outro, deixo de lado para ler depois. Olho outro e começo a me interessar. É um caderno da Folha sobre o escritor, poeta, músico e etnólogo paulista, Mario de Andrade. O jornal é de outubro de 1993 com apenas 24 anos de idade. Quanto tempo se passou e o caderno não foi lido nem manuseado.

O autor de “Macunaíma, herói sem nenhum caráter” é passado em revista (ou em jornal?). Sua vida conturbada, seus amores, sua sexualidade complicada, a sua distante ascendência africana, mas que se manifestou nele de forma evidente em seus traços físicos. Mário foi mais do que um escritor. Foi um homem do seu tempo, com interesses múltiplos. Lia de tudo e se transformou num etnólogo autodidata que pesquisou em profundidade as várias manifestações musicais e folclóricas do Brasil. Mas Mário morreu cedo, com 52 anos na sua amada Pauliceia Desvairada em 1945, possivelmente de um enfarto.

A matéria faz um delicioso passeio pela São Paulo de Mário de Andrade, começando pela casa onde nasceu, na Rua Aurora, na época um bairro de classe média, que depois se transformou numa rua de prostituição.  Hoje o local é ocupado por um banco e uma delegacia. O teatro São José, hoje demolido, próximo a Avenida São João, centro frequentado pela burguesia paulista, com peças francesas e peras baratas. Ele também frequentava a Rua Direita, XV de Novembro e Líbero Badaró onde era a sede da Revista Modernista Klaxon, considerado o quarteirão parisiense de São Paulo. Na Líbero Badaró ele bebia com os amigos no bar Franciscano. Em suas caminhadas ele passava pelo Edifício Martinelli, o maior arranha-céu da Paulicéia e devia olhar para o alto e imaginar como devia ser excitante morar nos últimos andares e ver a cidade como se estivesse voando como um pássaro. Nos fins de semana ele incluía o passeio ao Rio Tietê, a praia paulistana da época, com suas voltas de barco, pescarias, natação e piqueniques. Mario dava aulas no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e saia de casa na Rua Aurora e tomava o bonde até o trabalho. No coletivo devia encontrar alunos, amigos e conhecidos. Entre os anos 30 e 40 poucos privilegiados tinham automóvel.

Essa rápida viagem no tempo pela São Paulo antiga acompanhando o poeta Mario de Andrade me deixou saudoso desse tempo que não conheci, mas que nossos pais e avós tiveram o privilégio de conhecer.  Era uma São Paulo sem trânsito, limpa, sem violência, sem poluição e o tempo passava mais lentamente do que em nossos dias.  Durante a viagem de bonde era possível dar uma olhada rápida pelo jornal, saber das novidades. Depois do trabalho, uma esticada num dos bares para tomar uma cerveja gelada e conversar sobre os grandes dilemas da literatura, da filosofia, da política e dos amores. Dormia-se cedo em São Paulo. Depois do jantar o tempo era gasto com conversas, ouvindo rádio ou leituras. Ia-se para a cama às 10 da noite, pois São Paulo já amanhecia trabalhando. Mas tinha lá seus problemas. Com 600 mil habitantes, menos da metade tinha água encanada.

Enfim passei um bom tempo parado, lendo os jornais empoeirados e esqueci-me do meu objetivo, que era fazer uma faxina no quartinho de guardados e bagunças. O almoço já está pronto e não fiz quase nada e ainda tenho várias caixas de jornais para abrir e continuar com a minha difícil missão de descartá-las. Mas vamos ao almoço antes que esfrie e quem sabe na próxima semana eu consiga concluir meu árduo trabalho.