PARTE CCCIV – “O VELHO DESRESPEITO A PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS E O QUE DIZ A DELEGADA NARA REGINA DRIESSEN DE JOINVILLE”
Por Felipe Genovez | 16/05/2018 | HistóriaPROJETO DE UNIFICAÇÃO DOS COMANDOS DAS POLÍCIAS NO ESTADO DE SANTA CATARINA
Data: 22.01.2002, horário: 09:00 horas:
Braga abriu a porta da “Assistência Jurídica” e interrompeu minha seleção de notícias da manhã. Logo que chegou foi perguntando:
- “A ‘Jô’ não veio ainda? O meu computador lá caiu, não está acessando a Internet, é o único lá, e eu preciso tirar um extrato, desde ontem...”.
Respondi:
- “Ela não veio ainda, foi levar uma tia no médico”.
Braga aproveitou para dizer que estava com pressa e eu procurei segurá-lo um pouco para saber das novidades:
- “Como é que foi a reunião ontem lá?”
Braga respondeu:
- “Estivemos reunidos lá, não é nada de complô, o nosso interesse é apenas discutir a situação atual. O Dotta está mandando e desmandando, tu gostarias que alguém entrasse aqui na tua sala e levasse o teu computador?”
Imediatamente respondi:
- “Olha Braga será que só agora o pessoal descobriu que o Dotta é assim? Agora que restam apenas meses para o final deste governo vem o pessoal dizer que o Dotta é mau? Ele sempre foi assim, quantas vezes conversamos aqui que quem manda na Secretaria não é o Chinato e sim o Dotta?”
Braga ficou meio sem ação e deu a impressão que procurava recursos para rebater minha ponderação:
- “Eu nunca ouvi isso, ele quer destruir a Polícia Civil e nós temos que fazer alguma coisa”.
Fiquei incréduto com a observação de Braga, porém, mantive minha racionalidade:
- “O quê? Nós conversamos isso aqui, inclusive que quem derrubou o Redondo do Detran foi o Dotta, lembra?”
Braga acabou concordando quase que meio de arrasto, ou não querendo dar muito o braço a torcer e argumentou:
- “Eu estou com pressa, vou levar o assunto para o Conselho, nós vamos conversar sobre o assunto agora”.
Procurei concluir:
- “Olha Braga nós não temos nada a perder. O que eu e você temos a perder? Não temos cargos comissionados, quem deveria tomar alguma posição são os comissionados, só que agora no final do governo descobrir que o Dotta é ruim, da licença, né? O Jeferson deveria dirigir um documento ao Lipinski para que reunisse todos os comissionados conclamando para que se posicionassem”.
Braga encerrou o assunto dizendo:
- “Bom, nós só estamos nos reunindo para conversar, mas tomar uma posição e outra coisa, não dá para ficar assim, temos que fazer alguma coisa, não é complô, nada! Ninguém vai fazer como na época do Jorge, ninguém quer derrubar ninguém, bom já vou indo que a reunião já está começando”.
Em seguida, através das paredes ouvi a voz isolada do Lipinski presidindo a reunião do Conselho no auditório. Depois Braga soltou sua voz em frases rápidas e aos estalos e parecia que estava sendo sufocado pelos comentários “abrangentes” de Lipinski que valendo-se da sua posição parecia não deixar muitas opções de argumentação. Mas apenas eram as minhas impressões.
Data: 23.01.2002, horário: 16:30 horas:
“Jô Guedes” chamou atenção para a publicação no Diário Oficial da portaria que determinou a instauração do processo disciplinar para apurar faltas disciplinares contra a parente da apresentadora global “Xuxa”. Estava falando da Delegada Maristela Patrícia Meneghel Bettiol de Aguiar – Delegada de Polícia de 1a Entrância que estava atuando na cidade de Jaguaruna. “Jô Guedes” fez seu comentário:
- “Como é que pode, colocaram a Graciela que é de primeira entrância para presidr uma comissão com Delegados mais graduados de Quarta entrância!”
Fui ler a portaria e era real, a Delegada Graciela de 1a Entrância e os vogais Jeferson Guillão de Paula e Paulo Roberto Neves eram Delegados de Quarta entrância e aceitaram essa inversão de valores. Pensei: “É por essa e outras que a instituição está desse jeito!”.
Então comentei:
- “Que vergonha, como é que podem tratar assim a hierarquia na Polícia Civil?”.
Sim, era verdade, o ato do Delegado-Geral deixava escancarado a flagrante afronta a princípios institucionais, um verdadeiro exemplo de quebra da hierarquia e indisciplina, porém, a Corregedoria-Geral estava sob o comando do Delegado Rachadel e o que poderia se esperar dele? E o Conselho Superior questionaria esse fato? Também, a Adpesc adotaria alguma providência?
Lamentei pelos que estavam sendo punidos (violar a hierarquia era infração disciplinar, mas só valia para os fracos ou vulneráveis, não para os fortes...) e que não tinha ninguém para interferir em seu favor, nos tocáveis e nos intocáveis, nos dois pesos e duas medidas...
Data: 24.01.2002, horário: 15:10 horas:
A Delegada Nara Driessem de Joinville (seu pai era Promotor de Justiça aposentado) ligou para a “Assistência Jurídica” querendo saber sobre a nova Lei n. 10.259/01. Argumentou que o Delegado-Geral mandou uma circular recomendando a não aplicação da legislação Federal. Ela estava perplexa porque já havia lavrado dois termos circunstanciados de acordo com as inovações da nova Lei. Concordei com ela que o Delegado-Geral poderia ter sido infeliz apenas ao recomendar e não determinar. Nara disse que os Delegados de Joinville estavam inseguros, que ela poderia ser representada por abuso de autoridade. Em síntese, insistiu na recomendação de que ela seguisse a orientação superior.
Interrompi a ligação porque o Delegado Braga veio até a “Assistência Jurídica” dando ares de que queria falar comigo. E logo pensei no parecer sobre a “Choperia La Pedrera” e “Clube Doze”, também, no que o advogado Hélio Callado havia feito em defesa desses estabelecimentos...
Interrompi meus pensamentos e pedi a “Jô Guedes” que apanhasse a Lei Federal de interesse da Delegada Nara e chamei a atenção para a ementa que instituiu os Juizados apenas no âmbito da Justiça Federal e depois o artigo vinte que vedava a aplicação da referida Lei ao âmbito dos Estados. A Delegada Nara, talvez mais porque precisasse de atenção, talvez porque precisava trocar algumas palavras, ou por ser uma pessoa solitária, dava a impressão que procurava esticar a conversa, insistindo, replicando, contradizendo, contrapondo-se e etc.
Procurei me manter atento, interessado e sensível a tudo o que ela dizia, até entendendo porque ela era ainda solteirona, apesar dos seus quarenta e dois anos. Acabei lembrando de Paulo com quem trabalhei na Penitenciária Estadual de Florianópolis. Nara fez um desabafo:
- “Foi a pior coisa que fiz quando escolhi vir para Joinville, se arrependimento matasse, eu sou ainda Substituta, o meu pai, ele faleceu há poucos dias, perguntou para mim: ‘como é que pode tu ainda seres Substituta, a filha do Nolli entrou bem depois de ti e já foi promovida?’ Eu disse para o meu pai: ‘o senhor não imagina a máfia que tem na Polícia’. Eu não vou morrer do jeito que estou, juro que não vou ficar eternamente Substituta, vou sair dessa. Olha outro dia precisa ver o que um Promotor escreveu num inquérito aqui, eles dizem o que querem e ninguém faz nada, eles podem tudo. Eu acho que os Delegados são todos uns desunidos, cada um pensa em si. Outro dia precisa ver o que um Juiz disse aqui dos Delegados, depois disso eu tenho vergonha de dizer que sou Delegada, olha foi um horror, o homem falou coisas terríveis, é um tal de Cunha”.
Não me segurei e disse para Nara:
- “Mas afinal por que não querem uma polícia de vanguarda, uma polícia científica, uma polícia formada por bons profissionais, com autonomia e Delegados com prerrogativas? Tem alguma coisa de errado nisso tudo. Eu, você e tantos Delegados e policiais queremos uma Polícia forte, a sociedade precisa disso e por que não fazem isso acontecer? Olha Nara nem o Judiciário e nem o Ministério Público querem uma Polícia assim, por quê? Esse Juiz não sabe que a Justiça é uma vergonha, existe corrupção, muita negociata, parcialidade? Por que a mídia não vai olhar os processos nos Tribunais? Por que a imprensa não divulga a demora na tramitação nos processos e recursos, nos pagamentos dos precatórios, não vão ver as decisões dos magistrados, as jurisprudências...? E o Ministério Público? Se meteram em tantas frentes, buscaram tantas prerrogativas, competências e olha o país do jeito que está? Eu ontem, não, foi anteontem, li uma artigo na ‘Folha’, até coletei, foi da Eleonora Lucena e ela escreveu sobre a destruição do Estado, a diminuição de seu tamanho, a ascendência da doutrina neoliberal, a busca pelo capital, pelo poder... e que quanto menor o Estado melhor..., e veja o que está acontecendo, ninguém assume nada e o Ministério Público onde fica nisso tudo com tanta corrupção dentro do governo, no país? A gente sabe que eles estão preocupados com os interesses deles, estão no andar de cima, acabam fazendo o jogo dos poderosos, da mídia, e ninguém vai se meter com a Justiça, eles têm interesses comuns, imagina quantas ações trabalhistas a mídia tem na Justiça do Trabalho, quantas ações de indenização correm na Justiça comum, nos Tribunais envolvendo o sistema financeiro... O que tá faltando a esse juiz, a esse promotor... e se olharem no espelho, verificarem que tudo o que acontece passa pelas mãos da Justiça”.
Nara deu a impressão que se conteve um pouco, levou um meio choque, mas sua voz não perdeu a solidez grave e seca que era o seu referencial:
- “A culpa disso tudo é dos Delegados, ninguém faz nada, a gente tá aqui no interior perdida, a Delegacia Regional não existe, eu nem sei quem é a Delegada Regional daqui, acho que ela está lá e aqui em Joinville sabe como é a gente vive com medo, a imprensa está em cima, qualquer coisa que a gente faz errada eles vem com tudo, a cobrança é muito grande e corremos ainda o risco de responder uma sindicância. Mas eu não desisto, quero ser uma pedra no sapato dessa Polícia, eu não cedo, sou do oeste, sou do interior e lá nós somos do tipo de gente que a palavra ainda vale, mas o pessoal da polícia aí do litoral é daqueles que dá um sorriso, um abraço e vão empurrando, isso prá mim não serve”.
Concordei com a Delegada Nara e falei sobre a “quebra da hierarquia” na Polícia Civil, como eram desprezados nossos princípios. Citei como exemplo a comissão de processo disciplinar constituída para apurar faltas atribuídas à Delegada Meneghel (segundo dizem, parente da Xuxa...):
- “Tu vê, colocaram uma Delegada de Primeira Entrância para presidir uma comissão, nem vou citar o nome dela por razões éticas, integrada por dois Delegados de Quarta Entrância. Agora imagina como é que o Jeferson e o Neves que são de Quarta Entrância foram aceitar esse encargo? Como é que eles aceitaram essa quebra de hierarquia, serem dirigidos por uma colega de graduação inferior? Será que só para ganhar uns pontos na promoção por merecimento?”
Nara do outro lado me surpreendeu pelo nível de informação e fez seu comentário:
- “A Graciela é da minha turma e sabe qual é a história dela? Bom eu vou...”.
Procurei nem saber e argumentei:
- “Isso mostra que tu está atualizada, o caso é que ela não poderia aceitar esse encargo, os vogais também não, e é por isso que as coisas acontecem na Polícia Civil, depois esse pessoal se arvora no direito de criticar a instituição, os colegas, se nem dão exemplo, que moral eles têm?”.
Acabei falando para Nara que tínhamos um grupo de Delegados se reunindo aqui na Capital, que pretendíamos formar uma frente, sem lideranças, sem donos, sem pretensões pessoais. Falei das dificuldades, sem citar nomes, falei das pessoas...
Enquanto fazia meu relato Braga conversava com “Jô Guedes” e prestava atenção nas minhas palavras, já externava uma certa impaciência com a minha demora ao telefone. Continuei minha conversa:
- “Mas não foi fácil, cada um do grupo tem seus interesses pessoais, a busca pelo poder, as vaidades...”.
Nara interrompeu e disse:
“Eu acho que a palavra certa é ‘vaidades’, isso, é ‘vaidades’ mesmo, é isso que estraga tudo”.
Continuei:
- “Sim, é muito complexo, cada um tem seus interesses, é muito difícil, mas esse grupo seria uma resistência, formaria opinião, imagina quantas pessoas existem na Polícia Civil que pensam como a gente, só que está todo mundo dividido, espalhado, o objetivo do grupo era aproximar esse pessoal, a gente se reunia uma vez por mês”.
Na verdade esperava que Nara dissesse alguma coisa assim: “... Puxa que bom, esse é o caminho, gostaria muito de participar, ajudar, colaborar”. Nara continuou com seus lamentos, talvez ela não tenha percebido que eu estava comprovando mais uma vez o quanto era difícil reunir pessoas em torno de uma causa, sobre a importância do coletivo.
Talvez no seu mundinho ela preferisse continuar travando uma luta pessoal, indo de encontro com suas verdades, seus abismos, dogmas, monstros... como uma forma de se manter viva e fazer sua frente em defesa do seu direito de sobreviver. Braga se levantou já impaciente e eu aproveitei para me despedir, porém, Nara retomou à conversa sobre a dita legislação:
“Vou seguir o seu conselho e obrigada!”.
E neste momento de crise na segurança pública nacional, quando o Ministério Público parecia não se expor, justamente eles que se colocaram na condição de “salvadores da pátria”, davam a impressão que procuravam esvaziar o prestígio das polícias, imiscuíam-se quase que em todas as leis, especialmente, naquelas de natureza penal, elegeram a polícia como bode-expiatório das mazelas sociais, enquanto eles faturam pelos meios políticos e midiáticos...