Para uma filosofia da educação infantil (4) a educação infantil
Por NERI P. CARNEIRO | 03/04/2019 | FilosofiaPara uma filosofia da educação infantil (3) a educação infantil
Sabemos que a educação é um processo. Ele se inicia com o nascimento da criança e acompanha a pessoa ao longo de sua vida. Entretanto chega um ponto em que esse processo incorpora, ao lado dos valores éticos (educação absorvida no seio da família), os diferentes saberes e comportamentos aprendidos e apreendidos nos diferentes ambientes nos quais vive e com os quais a pessoa entra em contato.
Sendo assim, podemos dizer que nesse e para que esse processo ocorra, além da família, do ambiente de trabalho e das relações sociais, também concorre o ambiente escolar. A escola é responsável não só pela transmissão dos saberes das ciências como também pela orientação de como utilizar esses saberes. Nesse aspecto é que podemos dizer que a escola também é um espaço educacional. Entretanto esse espaço não é primário mas complementar. A escola pode colaborar, mas não substituir a ação educativa da família.
a- Diz a lei
E eis que nos deparamos com duas realidades curiosas: uma legislação assegurando não só a possibilidade como a obrigatoriedade do poder público disponibilizar ambiente escolar para crianças de zero a seis anos. Previsão estabelecida desde a promulgação da atual constituição nacional, em 1988, como pela LDB (Lei de Diretrizes e Base da Educação), a qual reafirma isso, acrescentando que a educação infantil tem um caráter complementar à ação da família.
Outra afirmação antiga nos chega do RCNEI (Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil - 1998). A afirmação aqui diz respeito à finalidade da educação infantil que é de educar e cuidar. O referencial é explicito em dizer que últimos tempos cresce a percepção de uma necessidade: que a instituição de educação infantil desenvolva um trabalho simultâneo de educar e cuidar as crianças.
A mesma afirmação está presente nas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (DCNEI - 2010). Estas diretrizes, em consonância com a LDB, retoma a afirmação de que a educação infantil é o ponto inicial da educação básica. Trata-se de um processo educacional a ser oferecido no ambiente escolar (creche e pré-escola). Nessas diretrizes se reforça e assegura que esse processo educacional deve ser garantido pelo poder público.
Culminando com esse processo de definição de responsabilidades, em 2017 veio a público a BNCC (Base Nacional Comum Curricular). E chegou com uma afirmação categórica, embora já cristalizada na legislação anterior: a educação infantil é o “início e o fundamento” da Educação Básica. O processo educacional básico, portanto, começa com a educação infantil e se conclui com o ensino médio.
Sabendo que o “básico” de um processo é aquilo que lhe dá sustentação, podemos dizer que essa sustentação é o seu alicerce. O básico é aquilo que permite que o processo em questão se edifique. Em relação ao processo educacional não é diferente. É legitimo, portanto, que façamos a seguinte argumentação a respeito do edifício do nosso sistema educacional.
A educação infantil é apresentada como a base da educação básica e esta, por sua vez é a base do ensino superior e todas as fazes da pós graduação. A consequência lógica desse enunciado é a seguinte: a- para que o ensino superior tenha boa qualidade depende de uma boa qualidade do ensino médio. b- para que o ensino médio tenha boa qualidade e seja um bom processo de transição para o ensino superior, depende de um bom andamento de enino fundamental. c- para que o ensino fundamental tenha boa qualidade e seja um bom pré-requisito para o ensino médio, depende da educação infantil. Ou seja, é inegável que em todos os andares desse edifício escolar tem que haver ação de boa qualidade. Mas também é verdade que para que todo o processo escolar seja de boa qualidade, do inicio ao seu término, o seu alicerce – educação infantil – tem que ser bem assentado. Caso contrário o edifício não será constrído.
b- indagações
Frente a essa conclusão e considerando os percalços do nosso sistema escolar, somos levados a algumas indagações. Indagações que deveriam nortear a ação educacional de pais e professores dos diversos níveis e etapas do processo escolar.
Uma indagação diz respeito àquilo que se entende por educação. É sabido que essa é uma, e talvez a principal, atribuição da família, mas a partir da legislação vigente a escola (creche e pré-escola) também recebe a incumbência de “educar e cuidar”. Se educar e cuidar sempre e tradicionalmente foi a razão de ser da família em relação aos filhos, e agora o poder público se impõe essa tarefa, o que sobra para as famílias? A família ainda tem alguma atribuição, além de gerar filhos para o sistema educar e cuidar?
Outra indagação diz respeito à convivência das famílias com suas crianças. Independentemente de como a criança seja ou tenha sido percebida e assumida pela família e pela sociedade (um adulto em miniatura ou pessoa com direitos), o seu lugar social sempre foi ao lado de sua família. Entretanto, contemporaneamente a nossa legislação educacional lhe criou um espaço paralelo: o universo escolar. Se o poder público insiste na necessidade da criança (em fase de educação infantil) permanecer em ambiente escolar, que deve “educar e cuidar”, a quem efetivamente cabe a função educacional e cuidadora? O poder público estaria se apropriando e se dando uma tarefa que não lhe compete?
Não só a legislação educacional como também o Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecem normas dizendo como os pais devem se comportar em relação às crianças. Por compreensão equivocada ou por zelo exagerado, desenvolveu-se uma dúvida social em relação àquilo que os pais podem e não podem em relação ao estabelecimento de limites norteadores para o crescimento dos filhos. Convivemos com pais apáticos em relação ao estabelecimento de normas e limites aos filhos, ao lado de crianças que crescem acreditando que tudo lhes é permitido. Tanto isso se agravou ao ponto de assistirmos ao crescimento do volume de crianças e adolescentes rebeldes e intolerantes em relação às normas e incapazes de respeitar o outro. Isso ocorreu porque os pais perderam/renunciaram sua obrigação de educar – e por isso as creches e pré-escolas se apropriaram desse papel – ou porque o poder público estabeleceu normas onde deve prevalecer a orientação estabelecida pela família? As normas e delimitação de direitos e deveres das crianças é atribuição da família ou do poder público?
Desde o início da Revolução Industrial o capitalismo colocou os pais e as mães dentro das fábricas visando o aumento da produção. Nem as crianças foram poupadas da voracidade dessa engrenagem econômica. Lentamente, entretanto, as crianças foram extraídas desse ambiente. Mas nele permaneceram os pais e os irmãos mais velhos. Surge, então, a escola como espaço no qual as crianças deveriam ser “confinadas” a fim de receber adestramento informativo e técnico. Feito isso, tão logo atingissem uma idade apropriada, as crianças deveriam ser inseridas na engrenagem produtiva a fim de dar prosseguimento ao sistema. Isso vem ocorrendo ao longo desses quase 300 anos de Revolução Industrial. Nos dias atuais a situação se intensificou e cada vez mais cedo a mãe tem que abdicar do cuidado dos filhos para se dedicar em cuidar do trabalho a fim de ajudar a prover o sustento da família. Sendo assim, nos é permitido indagar sobre a real motivação de se atribuir à pré-escola e a creche a função de educar e cuidar. A educação infantil seria mais uma das artimanhas requintadas do capitalismo para se apresentar com pele humanizada quando, de fato o que pretende é explorar a força de trabalho das mães, fazendo-as acreditar que estão recebendo um benefício quando estão sendo exploradas?
Ou, na pior das hipóteses, quem sabe não estejamos vivendo uma versão mais sofisticada e diabólica daquilo que descreveu George Orwell. E talvez o “Grande Irmão” esteja, de fato, se apropriando das nossas crianças, fazendo-nos crer que delas está cuidando e educando quando de fato está criando os fundamentos para instalar aqui, e de forma indelével, os planos daquele “Ministério da Verdade”. E, quem sabe, nossas salas de aula sejam as novas “teletela” mediante as quais o “Grande Irmão” e o “Ministério da Verdade” sob o argumento de “educar e cuidar” estão adestrando nossas crianças a respeito daquilo que entendem ser as “notícias, diversões, instrução e belas artes”, como diz Orwwell. E se essa é a verdade desse engodo ideológico, como libertar nossas crianças para que voltem a pensar com liberdade, estudar com dedicação e aprender com capacidade crítica deixando de ser marionetes? Como orientá-las para que deixem de usar fone de ouvido como cabresto? Como fazê-las perceber que estão somente manuseando símbolos num teclado que as escraviza?
Ou será que todos já estamos adestrados pelos tentáculos do capital? Ou será que nos tornamos cordeiros conduzidos em direção ao matadouro? Quem sabe estejamos sendo sugados e levados por uma uma espiral sem volta, em direção ao precipício do caos? Afinal, que esperar dessa incógnita chamada Educação Infantil?
Neri de Paula Carneiro
Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador
Rolim de Moura - RO