Para falar de pós-modernidade

Por EDESIO CONCEIÇÃO NASCIMENTO | 26/02/2012 | Sociedade

PARA FALAR DE PÓS-MODERNIDADE

Edésio Conceição Nascimento

RESUMO

Este material trata-se de uma análise das idéias de Stuart Hall, que discute as posturas do sujeito e suas identidades e busca fazer uma relação entre multiculturalismo, globalização, religião e tolerância. Serão apresentadas inicialmente, algumas idéias acerca dos Estudos Culturais, seus precursores e sua importância no campo da pesquisa social; o multiculturalismo explicado por Stuart Hall como a base para o entendimento dos estudos sobre etnicidade, identidades e alteridades, além da globalização apresentada por Milton Santos e sua influência na Pós-modernidade. E, por fim, uma discussão sobre religião e tolerância, que são pontos de fundamental importância para a temática.  

ABSTRACT

This material is about an analysis of the ideas of Stuart Hall, that argues the positions of the citizen and its identities and search to make a relation between multiculturalism, globalization, religion and tolerance. They will be presented initially, some ideas concerning the Cultural Studies, its precursors and its importance in the field of the social research; the multiculturalism explained for Stuart Hall as the base for the agreement of the studies on ethnicity, identities and altheritities, beyond the globalization presented for Milton Santos and its influence in After-modernity. E, finally, a quarrel on religion and tolerance, that are points of basic importance for the thematic one.    

PALAVRAS-CHAVE: multiculturalismo, globalização, identidades, religião.
Os Estudos Culturais  são um campo de pesquisa, uma prática e até mesmo um caminho metodológico interdisciplinar para estudos na área da cultura - no sentido amplo dado pela antropologia, mas restrito ao universo das sociedades industriais contemporâneas e suas inter-relações de poder. Na sua temática estão gênero e sexualidade, identidades nacionais, pós-colonialismo, etnia, cultura popular e seus públicos, políticas de identidade, práticas político-estéticas, discurso e textualidade, pós-modernidade, multiculturalismo e globalização, religião, intolerância, existencialismo entre outros. É importante enfatizar que está inserido no campo de atuação dos estudos culturais o compromisso de interagir com as práticas políticas, sociais e culturais que são vistos também como objetos de sua área.

Entre os precursores dos Estudos Culturais na Inglaterra está Raymond Williams  que aponta a importância deste campo de pesquisa ao enfatizar que os processos sociais de produção, circulação e consumo perpassam pelos estudos sobre cultura. Por outro lado, Richard Hoggart  aponta que os meios modernos de comunicação influenciam na difusão da cultura popular e nas classes trabalhadoras. Michel Foucault  (1979) apresenta uma série de questionamentos e deslocamentos das instâncias de poder cultural quando diz que “cada sociedade tem o seu discurso de verdade”, isto é, o tipo de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiro; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.

Stuart Hall, jamaicano, teórico cultural e sociológico que tem vivido e trabalhado no reino unido desde 1951, centrou os seus estudos nas constantes reflexões sobre etnicidade e multiculturalismo. Este último considerado uma das temáticas mais importantes dentro dos Estudos Culturais, por estar intrinsecamente ligada às demais. Falar em multiculturalismo é trazer para o centro das discussões, uma série de indagações que têm feito parte dos diversos momentos nos espaços acadêmicos. É, entretanto, uma necessidade.
O multiculturalismo é um dos pontos de partida e, talvez de chegada dos Estudos Culturais. Este termo atualmente é muito usado. Mas o que significa multiculturalismo? Quais os seus pressupostos e a que nos remete? Há relação entre o multiculturalismo, globalização e identidades? Falar de intolerância, religiões e seus aspectos, é falar de multiculturalismo? É de fundamental importância uma reflexão sobre as questões ora apresentadas. Para tanto, pretende-se com este trabalho, fazer uma releitura das idéias de Stuart Hall, no ensaio A questão multicultural, na obra Da diáspora: identidades e mediações culturais, que parte da observação de Homi Bhabha trazendo uma definição sobre o multiculturalismo e sua expansão heterogeneizada, suas inter-relações com os processos identificatórios analisados na obra A identidade cultural na pós-modernidade de Hall, com a globalização, observada no livro Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, do geógrafo Milton Santos e por fim, discutir a abordagem religiosa e a tolerância, principalmente a religiosa, à luz de pesquisadores da temática.

Segundo Hall (2003, p. 49) “o termo ‘multiculturalismo’ é hoje utilizado universalmente. Contudo, sua proliferação não contribuiu para estabilizar ou esclarecer seu significado”. Diante da interrogação que se coloca sobre este termo, na falta de conceitos, ele busca respostas fazendo uma distinção entre “multicultural” e “multiculturalismo”:
Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. Em contrapartida, o termo “multiculturalismo” é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais (HALL, 2003, p. 51).

Em tese, a maior parte das sociedades é multicultural, pois dentro delas existem variedades lingüísticas, religiosas, simbólicas, de gêneros, de etnias. Essas variedades, ou especificidades, vão dar origem ao que Hall vai considerar multiculturalismo, visto que, deve haver toda uma estrutura de organização adotada com o objetivo de estar sanando problemas derivados do fato desta sociedade ser multicultural. As pessoas nas suas diversidades vão compor o multiculturalismo.

Assim como existem diferentes sociedades multiculturais, Hall (2003, p. 51) apresenta diversos termos “multiculturalistas” para designar estas sociedades. Há o multiculturalismo conservador, que insiste em manter a maioria como centro de discussões; multiculturalismo liberal, que busca promover a integração dos diversos grupos da sociedade, mas baseando-se em uma cidadania individual e universal; multiculturalismo pluralista, leva em conta as diferenças grupais em termos culturais; o multiculturalismo comercial enfatiza que o reconhecimento das diversidades de distintas comunidades pode constituir a solução dos problemas de diferença cultural sem a necessidade de divisão do poder; o multiculturalismo corporativo sugere comandar as diferenças culturais da minoria, mas mantendo os interesses das classes dominantes e, por fim, o multiculturalismo crítico ou revolucionário que focaliza o poder, o privilégio para a maioria e a hierarquização dos sistemas sociais.

Multiculturalismo e globalização

Para muitos, a globalização é um processo que co-existe junto com humanidade. No momento em que as pessoas começam a pensar e fazer possíveis leituras do que pode existir no mundo desconhecido, quando levam em conta que o mundo não é apenas aquele vivido por elas. As primeiras idéias do significado de globalização surgem no imaginário e com as ações dos grupos sociais na organização e reorganização do espaço. Sobre os fatores que precedem a globalização, Milton Santos coloca:

No começo dos tempos históricos, cada grupo humano construía seu espaço de vida com as técnicas que inventava para tirar do seu pedaço de natureza os elementos indispensáveis à sua própria sobrevivência. Organizando a produção, organizava a vida social e organizava o espaço, na medida de suas próprias forças, necessidades e desejos. A cada constelação de recursos correspondia um modelo particular. Pouco a pouco esse esquema se foi desfazendo: as necessidades de comércio entre coletividades introduziam nexos novos e também desejos e necessidades e a organização da sociedade e cio espaço tinha de se fazer segundo parâmetros estranhos às necessidades íntimas ao grupo. (1994, p.5)


Pode-se analisar este fator ao se levar em conta o fato de que os antigos conquistadores do mundo médio passaram por um longo processo de busca de conhecimento e até mesmo de “mergulho” no desconhecido, no que era novo. Mais tarde, nos anos de glória da Idade Moderna, durante a predominância de um sistema político e principalmente econômico, conhecido por Mercantilismo, os corajosos europeus não mediram esforços na busca pela descoberta de novas terras, nas quais buscavam exercer sua hegemonia sobre o outro. Ali, eles punham suas regras, cultura, língua, religião, dentre outros fatores preponderantes para alicerçarem o seu poder. A partir deste momento, a globalização ainda não era vista como algo dotado de um objetivo como se vê atualmente, mas tinha um traço característico do processo: a busca pelo poder em detrimento da dizimação do outro em todos os aspectos.

Mas só na segunda metade do século XX, esse processo se realiza como objetividade possível e dentre os fatores decisivos para que este se concretizasse, pode-se observar dois pontos. O primeiro refere-se à revolução tecnológica em todos os setores, sobretudo nos de telecomunicações e transporte. Ao tempo em que os processos da Terceira Revolução Industrial no século XX se intensificam, torna-se incessante a busca pela aquisição de equipamentos por parte do setor empresarial na corrida pela hegemonia do mercado, o que conseqüentemente leva as pessoas a estarem se qualificando para este mercado. O processo de produção neste momento histórico tem como característica principal a presença marcante das máquinas multi-operacionais e poucos ou quase nenhum trabalhador humano. O segundo, consequência clara do primeiro, foi a tecnificação do território e, posterior aumento da fluidez do espaço e o intercâmbio entre os lugares. O lugar uma vez medido por sua identidade passa a ser medido por sua capacidade produtiva. Com isso, o espaço o qual se refere Milton Santos (2006), aquele vivido, circulado, negociado, o que é território de alguém, ou de um grupo, não é mais a base do negócio. O virtual rende mais. O empreendedor não está limitado a comprar uma porção do espaço que lhe é permitido circular com seu produto. O virtual é livre e trafegável a qualquer momento e em ambientes variados.

    Pierre Lévy, filósofo que tem sua especialidade na cibercultura, traça um panorama da sociedade da informação, esta que a cada dia caminha para o mundo virtual. Para Lévy, as pessoas estão se organizando cada vez menos em padrões formais e hierárquicos. A humanidade tem a tendência de valorizar mais o aprendizado cooperativo e a inteligência coletiva, tendo definido por ele, como nova forma de organização. Nesse sentido, as TIC – Tecnologias da Informação e Comunicação e principalmente a rede mundial, através da internet, têm papel fundamental como ambiente para essa abertura do saber, através do pluralismo. Assim, a internet torna-se o grande lugar, que reúne todos os outros, no qual o amplo acesso à informação resulta na democratização do saber e na consequente emancipação do ser humano.

    Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura em 08/01/2001, o filósofo enfatiza que

“o mundo de informações da rede mundial faz com que nos sintamos em uma espécie de segundo dilúvio, impossibilitados de abraçar o todo e definir o essencial. Por isso, é necessário que cada grupo ou indivíduo faça sua própria seleção, de modo a dar sentido às informações (ou a esse dilúvio)”.
 
Por outro lado, a revolução tecnológica provocou uma série de inovações na economia, na comunicação, fez surgir variadas formas de gestão à distância, onde não é mais necessário estar num determinado lugar para gerenciar empresas, empregados e produção, oportunizou a informação em tempo real integrando setores por meio de criação de redes de informação.

É importante salientar também que a revolução tecnológica propiciou a ampliação das possibilidades de inter-relação entre os seres humanos. Pessoas de diferentes lugares podem estar acessando a rede de comunicação para efetuar negociações, seja no âmbito profissional ou pessoal. Com isso, observam-se importantes mudanças nas fronteiras internas e externas devido a uma maior mobilidade de pessoas, mercadorias, dinheiro e informação. Não existe mais o longe. As atividades que na primeira metade do século XX eram impossíveis de se realizar passam a ser vistas como possibilidades. Milton Santos (2006) concebe então, o espaço globalizado.
 
Para Milton Santos, algumas características seriam determinantes na consolidação do espaço globalizado como condição objetiva: o espaço globalizado partindo de uma unicidade técnica, outras características são a cognoscibilidade do planeta e a idéia de que se trata de um motor único, que possibilita a queda de fronteiras geográficas e sociais, fazendo com que o mundo e a forma de explorá-lo sejam únicos, assim como os espaços e os tempos. É como se passassem a existir fios invisíveis que interligassem o Japão à China, só que pelo Oceano Pacífico, Brasil e Argentina através do Atlântico, dentre outros. Outra característica é a existência de um tempo real. Numa negociação comercial pela internet, por exemplo, entre dois indivíduos que operam suas máquinas um em Sidney, na Austrália e outro em São Paulo no Brasil, pode-se observar que estes encontram-se em ambientes virtuais iguais, porém com fusos horários extremamente diferentes. Para eles, neste momento, não é levado em conta o fato de ser noite num lugar e dia no outro. Não existe oscilação do tempo nestas condições. Vinte quatro horas aí são entendidas como período único. O território é concebido como o lugar onde se materializa e se articula a lógica das redes que se estabelecem no espaço global.

Milton Santos (2006, p.37) assinala alguns elementos para definir a globalização que considera contrária a que deveria co-existir. Ele a concebe como perversa. São estes: 1) emergência de uma dupla tirania, a do dinheiro e a da informação – o capitalismo é uma das características marcantes da globalização. Isso se define pelo fato do sujeito estar sempre consumindo para atender às exigências do mercado. O indivíduo tem que por "livre e espontânea pressão", ser um consumista, ou estará excluído do meio social em que vive. Neste momento, a busca pela informação torna-se inevitável, devido à velocidade da mesma no âmbito da modernidade. A informação traz à tona a necessidade, facilidade e comodidade do consumo: sem sair de casa, a qualquer hora da madrugada e, principalmente, sem enfrentar filas; 2) A competitividade sugerida pela produção e pelo consumo - no campo empresarial, competição gera em torno numérico. A ideologia de valor se sobrepõe a idéia de solidariedade, é ganhar sozinho sempre, implicando na depreciação das pessoas que estão ao redor sem nenhum valor emocional. O consumo é um fator "humanístico", é uma injeção moral, eleva o ego. A competitividade explica o individualismo nos mais diversos setores da sociedade; 3) a perversidade sistêmica - a perversidade apontada por Santos refere-se àquela vinda das chamadas classes de cima. Há muito se falou em violência como fator característico das classes ditas de baixo, periféricas, o que leva a certa contradição pelo fato de que a violência estrutural começa no momento em que regras são impostas e o dinheiro torna-se o objeto de desejo daquele que estabelece essas regras, uma vez longe das possibilidades da maioria. Por outro lado, a competitividade a qual Santos refere-se denominando "em estado puro" vem da necessidade do ser individual, não o coletivo, estar sempre em busca do ter, mesmo que isso custe o flagelo do outro, não leva em conta uma série de valores, inclusive os morais, uma vez apresentados pelas sociedades anteriores como a base para uma convivência harmoniosa.

Segundo Milton Santos (2006), os territórios globalizados tendem a se organizar de duas formas mais freqüentes: território normado – que é o produto da ação estratégica dos Estados que pretende adaptar e articular os pontos específicos do espaço em rede; a outra forma, o território como norma – é aquele que será definido a partir das necessidades externas, particularmente aquelas ligadas à expansão do capital internacional. Em suma, o território normado "tem uma dimensão repressiva acentuada, pois é sinônimo da intenção arbitrária da sociedade. Já a análise do território como norma, parte do lugar, cuja razão é orgânica".

Antas Jr. (2006) no livro Território e regulação. Espaço geográfico, fonte material e não-formal do direito, baseado nas idéias de Santos, apresenta uma nova discussão sobre o espaço, em especial sobre a noção de território a partir do direito. Para ele, o território normado e o com norma diferenciam-se apenas analiticamente. Respectivamente um é o sujeito, enquanto que o outro é o objeto da ação.

Multiculturalismo e identidade

Cultura, na concepção de Stuart Hall (2003), é uma esfera de significação individual e coletiva que dá sentido co-existencial e pode ser considerada via primordial de identidades e identificações. A cultura é, entretanto, uma característica da identidade de um indivíduo ou de um povo.

Neste contexto, para determinar as aparências da identidade, estão inseridos os rótulos identificatórios, que são determinados pelos estereótipos, que é mutável, diz respeito aos tipos que são formados. O escritor baiano Jorge Amado foi um criador de um estereótipo chamado “baianidade”; os arquétipos, que partem da identificação com o outro. Aos poucos, novos tipos são criados partindo de uma complexidade anterior que gera mistério e causa medo. O termo “mãe”, por exemplo é universal, apesar de que em culturas diferentes, com identidades diferentes, mãe é diferente. Mas é mãe, aquela que representa a figura materna. Por outro lado, a idéia de “Deus” é arquetípica, pois cada indivíduo ou cada povo se identifica com um ser supremo. Entre os mulçumanos é Alá, na cultura ou identidade religiosa judaico-cristã é Deus. E, por fim, as marcas afirmativas da identidade, que é o viés político. No momento que o indivíduo se aponta como pertencente a um certo grupo, ele demonstra ali, politicamente sua visão e versão acerca de um identidade. A sua. São as marcas afirmativas responsáveis por uma série de mudanças no contexto social do mundo e principalmente no Brasil, quando se observa uma infinidade de processos por parte de grupos que buscam uma afirmação do Estado para a formação de políticas de reparação cultural. Inseridos neste processo tem o movimento negro, o de mulheres, o dos homossexuais, entre outros.

Há três concepções de identidades assinaladas por Hall (2003, p. 10). O sujeito do Iluminismo – formado por um indivíduo centrado e unificado, tem uma identidade focada na razão, uma concepção como enfatiza Hall, “muito individualista do sujeito e de sua identidade”; o sujeito sociológico – refere-se àquele cujo sentido é dado pelo outro, a sua identidade é formada na sua relação com o outro. Contrário ao sujeito do Iluminismo, leva em conta a formação do “nós”; e, por fim, o sujeito pós-moderno, caracterizado pela “descentralização” e fragmentação das identidades. É o sujeito “composto não de uma, mas de várias identidades”. As atuais concepções sobre a política partidária nos fazem exemplificar isso. Os indivíduos transitam entre partidos, grupos políticos, sem falar das outras identidades que o mesmo adquire enquanto membro da sua família, parte da empresa onde executa suas atividades, ou do grupo social que frequenta. Essas características levam muitos autores como Hall, por exemplo, a denominar a pós-modernidade, uma vez considerada período entre o moderno e o contemporâneo, como “modernidade tardia”.

Todo homem social interdepende e interage com outros indivíduos. A isso, denomina-se alteridade. Faz aversão a uma visão antropológica, que pensa na existência de uma só cultura, característica do monoculturalismo, prática clara do etnocentrismo. Para entender a alteridade, basta que se reconheça a existência do outro como diferente do “eu”. O “eu” só existe no momento em que há o reconhecimento da existência do outro. Toda vez que o ser humano se depara com o outro, o diferente, entra em crise. A existência de culturas, o que caracteriza o multiculturalismo, é uma das conseqüências dos constantes contatos e negociações entre indivíduos. Essas negociações dar-se-ão através de constantes movimentos com conflitos ou não, quanto o “outro” está próximo, característica dos territórios identificáveis, ou quando o “outro” está longe, base do entendimento sobre territórios estrangeiros.

    Milton Santos (2006, p. 144) diz que “gente junta cria cultura e, paralelamente, cria uma economia territorializada, uma cultura territorializada, um discurso territorializado, uma política territorializada”. Não há a necessidade de ir longe para perceber essa territorialização apresentada por Milton Santos. Basta sair da rodoviária da capital baiana, Salvador, em direção à estação de ônibus urbano e constatar. As passarelas daquela região são exemplos de toda uma economia, uma cultura, um discurso e uma política presentes naquele território. As linguagens que ali se estabeleceram, as disputas pelo controle dos pontos considerados bons para a comercialização, as negociações e principalmente as relações de poder que passaram a existir devido ao fato de micro-empresas informais serem instaladas, onde as figuras do patrão e do empregado estão presentes, são fatores que se firmaram como verdades, assim como existem em outros ambientes, com outra roupagem.

O multiculturalismo leva em conta a diversidade humana – dentro de uma mesma sociedade há homens que pensam, discursam e enfrentam os mesmos problemas de formas diferentes. Essas diferenças são vista como valor positivo.

Há de se considerar também, que o multiculturalismo pressupõe a desconstrução de verdades. Não é que tudo o que foi construído será posto para o “escanteio”, será colocado à parte. Não se trata de destruição, mas como o próprio nome enfatiza, a idéia é de desconstruir. As chamadas políticas de restituição cultural do atual governo federal, como as de cotas para facilitar o ingresso de afro-brasileiros nas universidades públicas do Brasil, ilustram esses pontos relativos aos estudos sobre etnicidade e perpassa pelas questões multiculturais. Michel Foucault (1979) propõe um desrecalque dos saberes e verdades menores, que foram deslegitimados ou abafados. Por muito tempo, a história dos africanos na América, os diaspóricos, como sugere Hall (2003), esteve e ainda está à margem daquela história considerada oficial, a dos colonizadores.

Outro pressuposto do multiculturalismo é o fato de que somos sujeitos sócio-culturais. Cada ser tem sua origem e faz parte da construção da cultura onde vive a partir de uma série de integração e interação de saberes.

Uma sociedade de fato multicultural estabelece a (des)hierarquização das diferenças e visões de mundo, opõe-se aos centrismos culturais. Não existe a partir daí centros de cultura, mas ambientes culturais com seus valores reconhecidos. A organização das atuais sociedades está pautada no monoculturalismo, eurocentrismo e etnocentrismo, na homogeneização, na assimilação, na dominação cultural através do ato de explorar, da desvalorizar, banalizar e folclorizar o que é do outro. A cultura européia, do branco, daquele que se sente o “dominante”, o “civilizado”, em detrimento da inferiorização das culturas ditas menores como a indígena e a dos descendentes de africanos, em especial na América Latina, é um traço marcante dessas organizações sociais.

Religião e tolerância: qual a relação com a pós-modernidade?

Para falar de pós-modernidade e principalmente de religião, há de se falar primeiramente de tolerância. Do ponto de vista eurocêntrico, tolerar está muito além de aceitar. É a aceitação condicionada a submeter-se inferior. Para Cardoso (2003), este é um conceito dado a partir da idéia de que há uma cultura superior em detrimento da inferiorização de outras. Aquele que tolera ou não, coloca-se na posição de vencedor, um modelo moral e ético a ser seguido. É por isso que a palavra tolerância provém da palavra Tolerare que significa etimologicamente sofrer ou suportar pacientemente. O conceito tolerância radica numa aceitação assimétrica de poder. Há aquele que tolera e o que é tolerado.
É na religião que o fato de tolerar o outro ou não, está a cada dia mais acentuado. São notórios os conflitos que vieram a existir e ainda existem no mundo, pela falta de tolerância entre vários povos. As guerras santas são fatores claros de intolerância que podem partir da não aceitação da religião do outro, aquele que é desqualificado por não pensar religiosamente igual ao que tem naquele momento o poder; quando os símbolos religiosos do desqualificado são postos em processo de destruição. O mesmo vale para os termos que são postos na religião do outro. Geralmente a minha é religião. A do outro que não pensa como eu, que não professa sua fé da mesma forma que eu, que tem doutrina diferente da minha, ou não tem, é uma seita.
A fundamentação da tolerância não é a mesma em diferentes lugares e tempos. Ela pode ser ao mesmo tempo uma exigência da sociedade de caráter moral e teológico, podendo ser fundamentada de várias formas. A primeira delas é a prudência – a tolerância é feita de forma a evitar um conflito devido ao fato de que não se sabe onde se pode chegar; a segunda, a tolerância como indiferentismo – defende a inexistência de uma única verdade, a absoluta, mas a existência de verdades, valores diferenciados, não por uma questão de respeito, mas por falta de uma razão para ser oposição; a terceira, a tolerância como culto das diferenças – nesta, está fundamentado o multiculturalismo. Mas a aceitação aqui, não está atrelado ao fato de que somos iguais e vamos ficar juntos. Aceita-se a igualdade racial ou a questão homossexual, por exemplo, porém, mantendo-se uma certa distância. Como se aquele que está em posição de superioridade dissesse “eu aceito que é natural existir pessoas com a sua cor, com a sua opção sexual, mas você é você e eu sou eu”; e a quarta, a tolerância como uma exigência dos direitos humanos – neste aspecto, busca a igualdade entre seres de mesma natureza, como defendiam os filósofos iluministas, porém se for levada ao extremo, resulta no fato de que existirá uma aceitação não por respeito à diversidade, mas por uma questão de razão, recai no indiferentismo.
A Pós-modernidade é o momento sócio-cultural e político que leva as diversas sociedades a um pensamento coletivo, buscando realizar uma série de desconstruções históricas, afim de por aquele, uma vez desvestido de sua cultura, num patamar não de igualdade, ou cairíamos no mesmo engano dos iluministas, mas de busca da sua autonomia que por muito tempo foi submetido a abdicar.
As propostas dialéticas que são hoje uma realidade no mundo das religiões, apesar dos conflitos ainda existentes por causa de um deus, são pontos positivos na busca por essa desconstrução. As religiões dos diaspóricos  (Hall, 2003) que por muito tempo tiveram suas crenças abafadas, hoje, são de certa forma tolerada.
Falar nestes tempos pós-modernos e principalmente em multiculturalismo é reconhecer o outro. É falar em tolerância ou pelo menos buscar a tolerância, é estar de acordo com o fato de que deve haver um relativismo cultural e principalmente religioso. As religiões ditas superiores, por uma questão de hierarquia que são definidas culturalmente, por muito tempo mantiveram as inferiores caladas, o que tem provocado o derramamento de muito sangue, traço típico da falta de reconhecimento da importância da outra e principalmente de políticas igualitárias que de fato funcionem.
O multiculturalismo é polissêmico e complexo e nos remete a identificar e reconhecer a diversidade partindo da valorização das vivências. As culturas, religiões, formas de pensar e agir, de quem quer que seja, do dito dominador ou do inferiorizado, têm importâncias diferentes, porém fundamentais na formação de uma sociedade.


REFERÊNCIAS

ANTAS JR. Ricardo Mendes. Território e regulação: espaço geográfico, fonte material e não-formal do direito. São Paulo: FAPESP, 2006.

CARDOSO, Clodoaldo Meneguello. Tolerância e seus limites: um olhar latino americano sobre a diversidade e desigualdade. São Paulo: Editora da UNESP, 2003.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. e Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. 7. ed. DP&A editora, 2003  

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: UNESCO, 2003

LEÃO, Eneida. O espaço-tempo no meio técnico-científico informacional. Artigo. In: http://www.expressivaonline.com.br/artigo.asp?idSelecionado=64&idTema=7 acesso em 07/08/2008.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. 13. ed. São Paulo: 2006

SANTOS, Milton. Técnica espaço tempo – Globalização e meio técnicocientífico-informacional. São Paulo, HUCITEC, 1994.