Para Além de Bem e Mal: prelúdio de uma filosofia do porvir
Por Jacot Werner Stein | 22/04/2020 | FilosofiaPARA ALÉM DE BEM E MAL: PRELÚDIO DE UMA FILOSOFIA DO PORVIR
0. Este "prelúdio de uma filosofia do porvir" trata dos preconceitos dos filósofos, do espírito livre, da religiosidade e outros temas.
A tarefa para os anos seguintes estava traçada de maneira mais rigorosa. Depois de resolvida a parte de minha tarefa que diz Sim, era a vez da sua metade que diz Não, que faz 'faz o Não': a tresvaloração mesma dos valores existentes, a grande guerra -- a conjuração do dia da decisão. Nisso está incluído o lento olhar em volta, a busca de seres afins, daqueles que de sua força me estendessem a mão para a 'obra de destruição'. -- A partir de então todos os meus escritos são anzóis: quem sabe eu entenda da pesca mais do que muitos?... Se nada 'mordeu', não foi minha culpa. 'Faltavam os peixes...'. (EH/EH - Para além de bem e de mal, §1)
1. Publicação que segue a Assim falava Zaratustra, publicada em 1885, Para além de Bem e Mal, que veio a público em 1886, tem um lugar central no pensamento maturo de Nietzsche (1.844-1.900). Se em Zaratustra, por meio de parábolas, o filósofo formula a sua filosofia afirmativa, em Para além de Bem e Mal, a outra face do mesmo projeto de "Um livro para todos e ninguém", como deixa entrever em Ecce Homo, o filósofo ensaia meios para dar efetividade à sua filosofia exposta no livro anterior. Essa íntima relação entre as duas obras já havia sido apontada de forma explícita num primeiro esboço para o prólogo de Para além de Bem e Mal, redigido na primavera do mesmo ano de sua publicação. Livro composto por muitos textos que tiveram uma primeira redação já em 1881, mas também por textos redigidos no momento mesmo da escrita da primeira parte
de Assim falava Zaratustra, entre 1882 e 1883, Para além de Bem e Mal, segundo o filósofo, foi concebido sobretudo a partir de anotações feitas nos entreatos da redação do conjunto das partes que vieram a compor o Zaratustra. Longe de ser um comentário do seu livro mais célebre, a nova obra teria a função de lançar luz sobre as inovações conceituais trazidas por Zaratustra, abordadas agora numa forma mais tradicional, com aforismos, máximas, dissertações e um poema. Noutras palavras, esta obra que, no limite, apenas esclarece, e, portanto, trata do mesmo rol de questões, complementa a anterior ao não mirar ao longe, mas ao ter o entorno como foco. Concebendo esse escrito como sendo no essencial uma crítica da modernidade, o filósofo entende ser necessário aniquilar todos os móveis metafísicos que atingem em sua época seus desdobramentos máximos nas ciências, artes e política modernas. Acredita ainda que com este aniquilamento as condições estariam dadas para possibilitar a transvaloração de todos os valores, propiciando uma mudança efetiva daquilo que havia anunciado em seu Zaratustra.
2. Perseguindo esse objetivo, Nietzsche perfaz em Para além de Bem e Mal um caminho aberto a partir de uma problemática kantiana, que procura imbricar aquilo que entendemos por teoria do conhecimento e moral, ao estruturar o seu livro a partir desses dosi eixos, sendo que um deles se subsumirá ao outro. O filósofo concebe então sua obra com partes que se encadeiam numa sequência lógica, visando à defesa de uma ideia muito precisa, qual seja, a de uma civilização mão decadente, pautada pela "grande política". Terminando com um poema como epílogo, "Desde as elevadas montanhas", que remete ao seu Zaratustra, Para além de Bem e Mal, que é composto de nove capítulos, inicia-se com um prólogo que sinaliza claramente os intentos da obra. Considerando que a modernidade elevou a um grau exponencial a metafísica do povo, o cristianismo, com a
crença na verdade científica e na ilustração política, Nietzsche julga perceber não ser mais possível levar adiante o alargamento de posições de cunho metafísico, pois a busca pela verndade na ciência tem seus limites e um certo laxismo político personificado em parte na democracia produz um enfraquecimento moral do homem. Ele entende que a tensão do momento presente poderá possibilitar ao homem europeu ultrapassar a modernidade, em particular a moral do bem e do mal, que tem suas raízes em Platão e constitui um entrave para o surgimento de um homem de traços nobres. Espera por fim que seu livro preludie esse porvir na figura do filósofo do futuro, pois haveria a ser ver, em sua época, indícios concretos da iminência da transvaloração dos valores.
Supondo que a verdade seja uma mulher -- não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da verdade, forma meios inábeis e impróprios para conquistar -- e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo. [...] (JGB/BM, Prólogo)
3. Em Para além de Bem e Mal, Nietzsche aborda temas presentes em escritos anteriores, mas a partir de uma perspectiva inteiramente nova. Não apenas: a estrutura do livro assemelha-se, guardadas as devidas proporções, à de Humano, demasiado Humano. Ele aborda nos dois primeiros capítulos a filosofia. Em "Dos preconceitos dos filósofos", critica os filósofos dogmáticos, que não teriam atentado para aquilo que move efetivamente suas filosofias, a moral. Feito esse apontamento, verifica que o móvel moral é escamoteado justamente porque tais filósofos acreditam na objetividade. Crença essa que via ao encontro de um determinado tipo de homem, no caso, o fraco, que não tem condições de abarcar uma compreensão mais pertinente do seu fazer filosófico. Por extensão, Nietzsche mostra que a teoria do conhecimento oculta uma teoria do domínio, que não se admite como tal, haja vista a fraqueza daqueles que a acolhem. Num trabalho crítico da metafísica, que, por esta razão, segue de perto a estrutura dos três capítulos da dialética transcendental da Crítica da Razão Pura, de Kant, o filósofo desmascara essa falsa objetividade apontando para o caráter determinante da vontade de potência, que, por sua vez, permite que se compreenda o agir, pensae e avaliar dos filósofos dogmáticos. Ele põe assim um termo à pretensa isenção no conhecimento, mostrando a existência de um interesse intrínseco a tudo que se perfaz. Nesse capítulo estratégico, em que da crítica surge sua interpretação do mundo, Nietzsche coloca as bases para poder tratar da questão moral.
(JGB/BM, §1) A vontade de verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos os filósofos reverenciaram: que questões essa vontade de verdade já não nos colocou! Estranhas, graves, discutíveis questões! Trata-se de uma longa história -- mas não é como se apenas começasse? Que surpresa, se por fim nos tornamos desconfiados, perdemos a paciência, e impacientes nos afastamos? Se, com essa esfinge, também nós aprendemos a questionar? 'Quem', realmente, nos coloca questões? 'O que', em nós, aspira realmente "à verdade"? -- [...] (JGB/BM, §1)
Num contraponto ao filósofo dogmático e ao dogmatismo, no segundo capítulo, que tem por título "O espírito livre", ele apresenta aqueles que não mais estão presos, a pré-juízos, os espíritos livres, afastando-se dos livres pensadores, mas também apontando para o surgimento do filósofo do futuro, a quem caberá criar novos valores, fora das amarras dogmáticas, já que não se pautaria mais por dualismos. E o mecanismo que explicita a maneira pelo qual essa criação pode ocorrer recebe o nome de vontade de potência.
(JGB/BM, §24) 'O sancta simplicitas! [Ó santa simplicidade!] Em que curiosa simplificação e falsificação vive o homem! Impossível se maravilhar o bastante, quando se abrem os olhos para esse prodígio! Como tornamos tudo claro, livre, leve e simples à nossa volta! Como soubemos dar a nossos sentidos um passe livre para tudo que é superficial, e a nosso pensamento um divino desejo de saltos caprichosos e pseudoconclusões! -- como conseguimos desde o princípio manter nossa ignorância, para gozar de uma quase inconcebível liberdade, imprevidência, despreocupação, impetuosidade, jovialidade na vida, para gozar a vida! [...] (JGB/BM, §24)
4. Na sequência desses dois capítulos iniciais, Nietzsche sai do eixo especulativo e se encaminha em direção ao moral e político, detendo-se, com relativo vagar, na metafísica para o povo. Para tanto, no terceiro capítulo, "A religiosidade", o filósofo analisa as formas gregas e judaico-cristãs do capítulo religioso, para verificar em que medida a religião é útil ou nociva. Com isso, pretende antes de tudo avaliar a civilização cristã, que, a seu ver, tem legado à Europa um destino funesto, diminuindo e enfraquecendo o homem. Nietzsche não deixa de concluir que nas mãos do filósofo a religião, como instrumento de cultivo e educação, pode não levar à degenerescência; ela pode ser benéfica, desde que, evidentemente, suprimida a antinomia valorativa.
(JGB/BM, §45) A alma humana e suas fronteiras, a aplitude até aqui alcançada nas experiências humanas interiores, as alturas, profundezas e distâncias dessas experiências, toda a história da alma 'até o momento', e as suas possibilidades inexauridas: eis o território de caça reservado para o psicólogo nato e amigo da "caça grande". Mas com que frequência ele não diz a si mesmo, desesperado: "um caçador, apenas um, nessa floresta vasta e virgem!". [...] (JGB/BM, §45)
Como meio de transição para uma sequência de capítulos em que se ocupará mais diretamente da moral e da política, Nietzsche, no quarto capítulo, traz estrategicamente e de forma cortante as suas "verdades", em "Sentenças e interlúdios".
Quem é professor nato considera cada coisa apenas em relação aos seus alunos -- inclusive a si mesmo. (JGB/BM, §63)
5. No quinto capítulo, "Para a história natural da moral", o filósofo passa primeiramente a descrever a moral, ou melhor, as morais, como um fino psicólogo, sem nenhuma pretensão de a ela atribuir algum "fundamento", fazendo referência à psicologia da vontade de potência presente nos capítulos iniciais. Enfatizando o caráter não natural do homem, fruto da exigência moral trazida pela domesticação. Nietzsche afasta as concepções racionalistas da moral e dedica-se à análise da moral cristã, começando pela versão kantiana. Passa, na sequência, a abordar o aspecto reativo dessa moral, enfatizando a sua raiz judaico-socrática, e concluindo que uma vontade doente, que condena as paixões, pode vicejar em qualquer povo, cuja domesticação resulte no enfraquecimento do homem. De posse dessa caracterização da moral, Nietzsche encaminha-se para delinear o estado atual do homem europeu, que promove o enfraquecimento da vontade. Faz ver que uma moral de rebanho contribui para a instauração do igualitarismo democrático e da piedade como virtude suprema, negando, por extensão, a hierarquia e o sofrimento. Considera por fim que cabe aos novos filósofos a tarefa de transvalorar esses valores, proporcionando a formação outrora perdida.
(JGB/BM, §186) Na Europa de hoje, a sensibilidade moral é tão sutil, tardia, múltipla, excitável, refinada, quanto a "ciência da moral" que lhe corresponde é ainda jovem, incipiente, tosca e rudimentar -- um atraente contraste, que às vezes se faz visível e toma corpo na pessoa mesmo de um moralista. Considerando aquilo que designa, a expressão "ciência da moral" resulta demasiado arrogante e contrária ao 'bom' gosto: o qual é sempre gosto antecipado pelas palavras mais modestas. [...] (JGB/BM, §186)
6. Se havia apontado o surgimento do filósofo do futuro no terceiro capítulo, após dissecar a moral, Nietzsche começa, em "Nós eruditos", sexto capítulo da obra, a dar os devidos contornos àqueles a quem caberá a criação de novos valores. Começa criticando os filósofos atuais, que perderam de vista a pesquisa pela existência, que deixaram de ser criadores, assim como os que se contaminaram com o ceticismo. Para colocar um termo ao enfraquecimento da vontade, considera ser necessário haver uma grande ameaça à Europa, que poderia levar a forjar uma vontade única. Neste momento, para os seus intentos, vê com bons olhos o agravamento do perigo russo, que poderia enfim despertar os europeus. Descreve então o perfil dos filósofos do futuro que estão surgindo: não dogmáticos, mas espíritos livres, e céticos num novo sentido, portando a iniciativa da afirmação de algo novo. Aponta ainda para o caráter desses filósofos: severos e inflexíveis, para aguentar a grandeza, que deverá caracterizar suas tomadas de posição. Indica em seguida as suas proveniências: plantas raras, indivíduos excepcionais e aristocráticos. E traz por fim, a sua missão: comandar e legislar.
Correndo o risco de que também aqui o moralista se revele o que sempre foi -- um impávido 'montrer ses plaies' [mostrar suas chagas], como diz Balzac --, ousarei me opor a uma imprópria e funesta inversão hierárquica que, de modo totalmente despercebido e como que de consciência tranquila, ameaça hoje estabelecer-se entre a ciência e a filosofia. Acho que apenas a partir da 'experiência -- que sempre significa má experiência, quer me parecer -- adquirimos o direito de opinar sobre essa elevada questão da hierarquia: de outro modo se falará das cores como um cego, ou 'contra' a ciência como a mulheres e os artistas ("ah, essa terrível ciência", suspiram seu instinto e seu pudor, "sempre descobre o que há 'por trás' --). [...] (JGB/BM, §204)
7. Procurando fornecer contornos cada vez mais precisos a esses novos filósofos, em "Nossas virtudes", sétimo capítulo, Nietzsche adverte que a boa consciência ameaça a existência dos espíritos livres e ao opô-las às virtudes dos filósofos decadentes. Parte de uma crítica ao utilitarismo inglês e ao desinteresse kantiano para expor a sua perspectiva sobre o desinteresse, podendo assim criticar a moral europeia, em particular a advinda das chamadas "ideias modernas".
Nossas virtudes? -- É provável que também nós teremos ainda nossas virtudes, embora naturalmente não serão aquelas ingênuas, inteiriças virtudes pelas quais temos em alta estima, mas também um pouco à distância, os nossos avós. Nós, europeus de amanhã, nós, primogênitos do século XX -- com toda a nossa perigosa curiosidade, nossa multiplicidade e arte do travestimento, nossa branda e como que adocicada crueldade de espírito e de sentidos --, teremos presumivelmente, se tivermos virtudes, apenas aquelas que aprenderem a se harmonizar com os nossos mais íntimos e autênticos pensadores, com as nossas mais ardentes necessidades: muito bem, busquemo-las então em nossos labirintos! -- onde, como se sabe, tanta coisa se extravia, tanta coisa é perdida para sempre. [...] (JGB/BM, §214)
8. Em "Povos e pátrias", oitavo capítulo, Nietzsche investiga as condições de uma nova civilização, perscrutando em pormenores, a pequena política - democracia, socialismo, nacionalismo etc. -- para assinalar a necessidade de uma "grande política" (a unificação europeia, a seleção de novas castas, novas tiranias etc.), para a qual o povo alemão, em particular, malgrado sua situação decadencial, tem uma função proeminente. Tanto que critica uma moral de cunho darwinista, resguardando a moral kantiana, ao menos em sua forma, qual seja, aquela que atribui o devido valor ao sacrifício e à coragem moral, características próprias dos alemães.
Ouvi, novamente pela primeira vez, a abertura de Wagner para os 'Mestres cantores': eis uma arte soberba, grave, carregada e tardia, que tem o orgulho de pressupor, para seu entendimento, que dois séculos de música permanecem vivos -- o fato de que orgulho se ter justificado é algo que honra os alemães! [...] (JGB/BM, §240)
Já, no último capítulo do livro, "O que é nobre", o filósofo fornece os devidos contornos que deve possuir uma moral de cunho eminentemente aristocrático, sustentada pro uma nova religiosidade, calcada em Dioniso, visando com isso trazer as bases para o advento da "grande política".
Toda elevação do tipo "homem" foi, até o momento, obra de uma sociedade aristocrática -- e assim será sempre: de uma sociedade que acredita numa longa escala de hierarquia e diferenças de valor entre um e outro homem, e que necessita da escravidão em algum sentido. [...] (JGB/BM, §257)
9. Com "Para além de Bem e Mal, Nietzsche procura assim estabelecer os meios para transvalorar os valores, em um claro percurso que se coloca como a parte complementar de Assim falava Zaratustra, perfazendo, por dentro, um programa de difícil implementação, cujo objetivo último é suplantar a modernidade em toda a sua dimensão.
Ó meio-dia da vida! Tempo festivo!
Ó jardim do verão!
Inquieta ventura em se deter, atentar e esperar: --
Pelos amigos aguardo, dia e noite disposto,
Onde estão, amigos? Venham! É tempo! É tempo! [...]
(JGB/BM, Epílogo: Do alto dos montes)
Referências:
ITAPARICA, André Luís Mota. Nietzsche: Estilo e Moral. São Paulo, Ijuí: Discurso Editorial, Editora Unijuí, 2002.
MARTON, Scarlett. Afternoon Thoughts. Nietzsche and the Dogmatism of Philosophical Writting. In: CONSTÂNCIA, João; BRANCO, Maria João Mayer (orgs.). Nietzsche, os Instinct and Language. Berlim: De Gruyter, 2011, p.167-185.
MARTON, Scarlett [ed. resp.] Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016.
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. In: Obras Incompletas. Seleção de textos Gérard Lebrun; Tradução e notas Rubens Rodrigues Torres Filho; Apêndice Antônio Cândido de Mello e Souza; Introdução (pesquisa) Olgária Chaim Ferez; consultor da introdução Marilena de Souza Chauí. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
___________. Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. 2. ed. 3. reimp. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
___________. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. 2. ed. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
CAMPOS, Marcelo de Deus