Paixão de Outono ? Capítulo VIII ? A serenata.

Por Onivaldo Paiva | 23/01/2009 | Contos

Paixão de Outono

Não necessitou pedir desculpa. Naquela noite ganhou uma serenata! Acordou ao som dum violão, alguém cantava:

"Assim se passaram dez anos, / sem eu ver seu rosto, / sem olhar teus olhos, / sem beijar teus lábios, assim... / Foi tão grande a pena / que sentiu minha alma, / ao recordar que tu / fostes meu primeiro amor... Recordo que junto a uma fonte / nos encontramos / e alegre foi aquela tarde para nós dois".

Quase chorou ao relembrar... E logo, ao acreditar que tocavam para ela, temeu que os vizinhos se incomodassem. Mas a voz era tão bonita! Então, em surdina, mandou os vizinhos à merda, se eles por acaso se aborrecessem. E ouviu boleros, tangos e valsas. Músicas do "seu tempo".

A voz dele era tão bonita! Inácio cantava "Patrícia". Não era bem a música que a arrebatava, mas qualquer uma na voz dele a seduziria.

Envaideceu-se pensando que suas amigas rezadeiras não ganhavam serenata. Verdade que não pensou assim, "rezadeiras", mas pensou parecido.

No tempo dela, quando era moça, era costume abrir a janela, dando sinal ao seresteiro de que era bem vindo. Levantou-se, penteou-se, colocou um peignoir sobre a camisola, mas pensou que não era adequado abrir a janela nem acender a luz. Madrugada, uma senhora de respeito, o que os outros iriam pensar?

A voz bonita cantou ainda "Dio come ti amo" e "Al di lá". Janela fechada, luz apagada. Então houve um burburinho, curiosa entreabriu a janela. Os seresteiros punham os instrumentos de lado e Inácio abria a porta do Opala, inclinava-se sobre o banco e mexia no toca-fitas. Yolanda percebeu que ele fazia uns gestos nervosos com a mão, como a ordenar aos amigos "Calem-se!" e logo ele encontrou o que parecia procurar, e saiu do carro, pegando uma latinha de cerveja que estava sobre o teto do Opala; em seguida acendeu um cigarro, coisa que Yolanda odiou, mas perdoou depressa, quando, um tanto alto demais, o Opalão amarelado irradiou, na voz de Pablo Milanés:

"Esto no puede ser no mas que una cancion /

Quisiera fuera una declaracion de amor

Emocionada, Yolanda acendeu a luz. E ia abrir a janela. Então pensou (Oh, vaidade!) que não estava bem arrumada. Correu ao banheiro, se penteou de novo, passou batom e ruge, e até se perfumou! E voltou à janela entrefechada. Perdera trechos da canção:

Cuando te vi sabia que era cierto

Este temor de hallarme descubierto

Tu me desnudas con siete razones

Me abres el pecho siempre que me colmas

De amores

De amores

Eternamente de amores

Enfim abriu a janela e mostrou-se. Não importava que o padeiro estivesse bebendo, nem que soltasse baforadas daquele cigarro com certeza fedido. A canção ia ao final:

Yolanda

Yolanda

Eternamente Yolanda

Yolanda

Eternamente Yolanda

Os seresteiros tocaram mais umas cinco músicas e se foram.

Paixão de Outono – Capítulo IX – Por que fui me apaixonar?

Não há medidor de felicidade. Houvesse, naquele dia, Yolanda o estouraria. Yolanda cantarolou o dia inteiro. Abriu todas as janelas e portas da casa. Entraram luz e vida, companheiras de sua nova alegria. Cantarolava:

"Se acaso me quiseres / Sou dessas mulheres que só dizem sim..."

Lavou roupas, passou roupas, limpou a casa. Cantalorando... O dia inteiro foi assim. Houve interrupções: um pedidor de esmola. Foi generosa, deu-lhe comida e dinheiro. Um vendedor de vassouras: comprou duas, estava precisando. Mas não saiu de casa, sua rotina estava mudada. À noite, não assistiu televisão, nem a novela nem os noticiários, ouviu os antigos LPs, os seus preferidos, no velho toca discos que mandara consertar.

Até se deu ao luxo de preparar um "Cuba Libre", Como não tinha rum em casa deu-se a outro luxo: solicitou que um moto-táxi trouxesse um Carta Ouro. Oh, havia tanto tempo não se dava luxos. Nem quando casada!

Selecionou um limão. Buscou na cristaleira um copo de cristal, sentou-se, ouvindo música, e esperou. Chegou o moto-boy trazendo o rum. Deu-lhe generosa gorjeta. Despejou um dose de rum no copo, e seis gotas de limão, completou com a coca gelada, e uma fatia de limão na beirada do copo. Ah, estava feliz.

Capítulo X – "Você não é dessas velhas assanhadas. Vive sua vida quietinha"

Ouvia XXXXX quando o telefone tocou. Seria ele? Oh, loucura, Inácio nem sabia seu número de telefone. Mesmo assim atendeu, ansiosa. Era a filha; conversaram, Yolanda mais querendo desligar que prolongar a conversa, quando a filha perguntou se ela vira no noticiário da tevê o caso duma mulher que arrumara um amante com a metade da idade dela e que este, o namorado, com artimanhas, se apropriara de toda sua poupança. E a filha finalizara:

"Ainda bem, mamãe, que você não é dessas... Não é dessas velhas assanhadas. Vive sua vida quietinha, minha santa".

Yolanda desligou o telefone, desligou seu contentamento, desligou o toca-discos, jogou fora o resto do Cuba-Libre. Desligou as luzes da casa e se preparou para dormir. Mas não foi para cama. Foi para o quintal, lamentar-se com o papagaio e o gato Mefistófeles.

"Droga! Droga!" A filha estava no segundo casamento, poderia culpá-la?

"Porque fui me apaixonar nesta idade?", perguntava-se a lastimosa viúva. E se dizia: "Eu vivia tão bem, vivendo minha rotina, controlando esta coisa complicada que é a vida, sempre dando um jeito de não sofrer demais, e agora, fora do tempo, perco o juízo?"

E se dizia: "Sou velha demais pra ele!"

E se dizia: "Ele é mais novo que eu!".

E se dizia: "Ele quer é se aproveitar de mim!"

E se dizia: "Fica quieta no seu canto, velha!"

Então jurou esquecer o padeiro.

Paixão de Outono – Capítulo XI – Antes

Antes não era feliz, mas não sofria como agora. Antes tinha mais certezas do que dúvidas. Agora não sabia mais nada! E garrou a rezar. Deus lhe mostraria o caminho. E orava. Rezava, rezava, rezava pra todos os santos, mas todos os santos tinham a cara do Inácio!

Vinham raios de esperança: que mal havia em namorar? Afinal era viúva. Mas Inácio era casado! Ou era separado da mulher? Não tinha certeza. Lá no fundo ela já adivinhava, só podia ser casado. Mas fazia questão de ignorar. Agoniava-se, Deus não permite! Deus não permite o quê?

Deus não permite o quê? Ela nunca ousaria se perguntar, e quantas vezes se perguntou! Deus não permite o quê? Ser feliz? Não posso ser feliz? Gritava seu coração para a boca silenciosa. Porém Yolanda pressentia que a questão não era esta, não era com Deus a questão: e sim que era uma velha e gorda! E pior: "Ele é mais novo que eu!" E casado ainda por cima.

Começou a novena de Santa Efigênia, que devia ser feita ajoelhada sobre grãos de milho, ou cascalho, para vencer as tentações. No terceiro dia, por mais que debulhasse o terço, cochilando, via-se ajoelhada sobre o másculo peito do padeiro.

Paixão de Outono – Capítulo XII – Esperança e Dúvida.

O quê será que Inácio pensava? O quê será que Inácio sentia? Apenas simpatia por uma cliente educada, distinta, constante e quiçá charmosa? Ou era um sedutor que não perdia oportunidade de cantar suas clientes? Nada no comportamento dele mostrava isto, era atencioso e nunca o vira faltando ao respeito com as demais freguesas. Oh, mas chegar ao extremo de imaginar que era amada por ele? Não, oh, que tola!

Mas ganhara uma serenata! Então duvidou de novo, a serenata não era para ela, e não era Inácio quem cantara "Dio come ti amo" daquele jeito tão... tão estraçalhador!

Há decisões que são repentinas. Há decisões que são por etapas. E há, na maior parte das vezes, decisões que nos fazem balançar entre o sim e o não: é quando ficamos com o "Mas...", ou com o "E se..."

Enfim as coisas andam sem depender de nossa vontade, de nossas ações, de nossos planos. As coisas andam; as boas, as más, as coisas acontecem. E, numa tarde, Inácio ficou horas conversando com ela. Graças ao gato Mefistófeles. O gato escapara pra rua, um carro passava e atropelou o gato. Quem o socorreu foi o padeiro. Quem o levou pra casa de Yolanda foi o padeiro. Mefistófeles estava mal, Yolanda chorou, foi consolada. Agradecida, abraçou o consolador, era Inácio. E ficaram horas e horas conversando. Só que as "horas e horas conversando" se medidas no relógio não foram mais que uns magros vinte minutos. Porém, tempo suficiente pra que Yolanda chorasse, entre a languidez e o desespero, e fosse bem abraçada. E marcaram um encontro.

E o gato?

O gato sobreviveu. E depois daquele dia bastava ver Inácio para ir, todo amistoso, se esfregar nas pernas do padeiro.

Paixão de Outono – Capítulo XIII – Devo ou não devo? Posso ou não posso?

Devo ou não devo? Posso ou não posso? Qual manda mais? A falta de coragem de se lançar no abismo, obedecendo aos sentimentos e não à razão ou acatar a voz do desejo, entregando-se à voragem da paixão?

E o medo de que a paixão de Inácio não se sustentasse, fosse passageira, e depois ele notasse que não era "gostosa", apenas andava bem arrumadinha.

Mas, e se desse certo? "Ah, eu vou ao encontro!", decidiu e marcou horário no salão de beleza.

Ai, que tolice! Na cabeça de Yolanda, onde a cabeleireira chique fizera um penteado esquisito, mas a cabeleireira afirmara, e umas clientes confirmaram, "Ficou bem demais em você!", tumultuavam todas as dúvidas e todas as esperanças!

Contudo, havia que enfrentar o destino. E foi ao encontro dele. Ou melhor, aceitou sair com ele. Foram a uma churrascaria. Não era o ambiente apropriado para começar um romance, mas dois cuba-libres tornaram tudo muito encantador e as luzes se fizeram penumbra, e as mãos dos dois se encontraram.

Mas foi pior a coisa, a tentação: não foram apenas as mãos dos dois que se encontraram, os olhos também. E Yolanda caiu, enfeitiçada. E Inácio? Inácio teria caído?

Se ela tivesse feito esta pergunta ao garçom teria recebido como resposta, "Sim, Inácio estava caído de amores pela bela e distinta senhora".

Olhos nos olhos. Tão doces e risonhos os dele. Como? Como podia ser uns olhos como os dele, tão doces, tão doces, ser de um padeiro de mãos grossas? Yolanda queria resistir e queria se entregar. Aquele homem encantador ali, era tudo que pedia aos céus. Mas... Num canto qualquer daquilo que ela julgava como um homem teria que ser, aparecia a figura dum padeiro, beberrão, dono dum carro velho, talvez casado, e... E o que pensariam os outros?

O que pensariam os outros?

Paixão de Outono – Capítulo XIV - O que pensariam os outros?

O que pensariam os outros?

Não. Não era isto que a impedia de aceitar a corte do padeiro. Não era o preconceito, era o medo: Inácio a amaria? Ele era mais novo que ela e...

Inácio a amaria?

Yolanda se perguntava e se respondia que não. Cheia de dúvidas jurou não encontrá-lo mais.

E cumpriu a promessa, até que, um dia depois, ele a procurou. E combinaram outro encontro.

Paixão de Outono – Capítulo XV - Nem mulher fácil nem mulher difícil

Encontro às três da tarde; às três da tarde aonde iriam? Não a uma igreja, não a um restaurante. Entrou, trêmula e temerosa, no Opala de cor branca amarelada. Inácio colocou música, não eram aquelas sertanejas bregas, eram orquestradas. Yolanda não confessou, mas ficou grata por ele ter se dado ao cuidado de selecionar musicas que a agradavam.

O Opala era macio, a conversa dele também, quando viu estavam na rodovia, no roteiro dos motéis. Confiante ele ia entrando, ela disse não.

...

Inácio, paciente, levou-a de volta para casa. Durante a volta, Yolanda não sabia se estava mais aborrecida pelo atrevimento dele, por tê-la levado a tal lugar, ou por não ter tido coragem de entrar no motel. Ela se dizia: "Nunca mais quero vê-lo! E quando chegar em casa vou falar pra ele nunca mais me procurar!"

Ao descer do Opala, Yolanda nem viu quando lhe deu um agradecido beijo de despedida. E combinaram um encontro pra amanhã às 20 horas.

Amanhã veio ela não foi. Então ele apareceu com a desculpa de perguntar se o gato estava bem. E foi Mefistófeles que os colocou no bom caminho. O gato convalescente, de perna engessada foi, sem o saber, o intermediário e a ponte por onde passaram as culpas e desejos dela. Inácio não reclamou. Somente, no meio da conversa, a respeito da situação de Mefistófeles, afirmou que entendia os medos de Yolanda.

Amanhã irei, prometeu ela. Era sábado, foi.

Próximo Capítulo: Preparando-se para o encontro.

Onivaldo Paiva: onivaldopaiva@hotmail.com