Paixão de Outono - Capítulo II
Por Onivaldo Paiva | 27/12/2008 | ContosPaixão de Outono - Capítulo II
Três pãezinhos, um litro de leite, meio quilo de açúcar e duzentos e cinqüenta gramas de café. Depositou os pacotes sobre a mesa da cozinha, o gato Mefistófeles veio roçar suas pernas, desatenta retribuiu a carícia e chorou. O quê Inácio iria pensar dela? O persistente esfregar do gato a irritou. Aborrecida, deu uma chinelada em Mefistófeles, depois arrependida, acariciou-o tanto que o gato se agastou e fugiu pro quintal. Sentiu-se sozinha. Sentiu-se muito sozinha. Chorando ligou o rádio, FM, 103.5, só música boa: tocava "Fica comigo esta noite". Então seu choro transbordou. Sentia-se muito sozinha.
Havia um embaraço entre eles depois que dona Yolanda o pegara chorando. Havia muito mais curiosidade nela, agora, sobre aquele padeiro. Curiosidade e contrariedade, pois a irritava vê-lo beber durante o serviço. A irritaria quem quer que fosse que bebesse a qualquer hora. Os bebedores a irritavam.
Seu falecido marido bebia. Hoje admitia que até que não era tanto: uma cachacinha antes do almoço de domingo, umas cervejas nas sextas-feiras com uns amigos aposentados como ele, ex-bancários que ainda poderiam trabalhar, arrumar serviço, ter utilidade, pois haviam se aposentado com pouco mais de cinqüenta anos. Mas não, preferiam ficar à toa, aborrecendo a gente dentro de casa o dia inteiro!
"Vai morrer de cirrose se não parar com este vício!", dizia ela ao marido. Ainda bem que ele não fumava! E ele não morreu de cirrose, aos cinqüenta e oito anos sofreu um infarto agudo, nem deu tempo de levar pro hospital. Deixou-a viúva, com cinqüenta e um anos, uma aposentadoria razoável, casa própria, os três filhos casados, e graças a Deus o falecido pudera assistir aos casamentos e formaturas dos três. E também graças a Deus não passara pelo desgosto de ter que enterrar o filho, engenheiro recém formado, que tivera o corpo moído por uma escavadeira lá nos confins do Pará.
Havia no jeito do padeiro um jeito do seu filho Milton. Ou seria do falecido? Cabelos caindo na testa, o olhar sardônico, o jeito desleixado...
Dona Yolanda deu de olhar no guarda-roupa vestidos esquecidos, gavetas que quase não abria desde o falecimento do marido. Recuperou um sapato esquecido, de salto, modelo que fizera furor na época em que a vaidade era ainda companheira constante. Ajeitou um vestido antigo, recosturou, alargando um pouco mais nas ancas, e naquela hora percebeu que seu corpo conservava o mesmo peso dos trinta anos, embora as rugas, ah! as rugas, essas não havia como esconder!
Examinando-se, de salto e com aquele vestido, não se dava quarenta e cinco anos. Quase cinqüenta talvez. Depois, olhando-se mais atentamente, penalizada, concluía que aparentava ter mais de sessenta. "Ridículo! Ridículo!" – gritava para ela mesma. – "Uma sessentona querer usar um vestido assim que nem cobre os joelhos! E de batom ainda por cima!".
Tirou tudo e pôs as roupas costumeiras. E ficou assim, com cara de sessentona e corpo de quarentona, mas sabendo que tinha apenas 57 anos. Foi à missa, passou pela padaria, foi atendida por Zilda, a irmã do padeiro e, com ar enfezado, comprou os três pães de sempre. Irritada, perguntou-se por que o padeiro não aparecera. E decretou: certamente ficara em casa, bêbado.
Onivaldo Paiva – e-mail: onivaldopaiva@hotmail.com