Pagamentos De Precatórios Com Fundamento Humanitários
Por Márcio Welbe Neves | 16/05/2008 | DireitoPAGAMENTO DE PRECATÓRIOS POR RAZÕES HUMANITÁRIAS
Uma visão na ótica das novas teorias constitucionais, em especial a colisões de direitos fundamentais e a técnica da decisão ponderada.
Introdução
Não raro deparamo-nos com a seguinte notícia:
Dois casos semelhantes, em dois tribunais diferentes, com decisões antagônicas, envolvendo o (in)adimplemento de precatórios.
O mais recente - e de resultado positivo - é do TRF-4, cuja 3ª Turma determinou a imediata liberação de dinheiro devido pela União a J.F.C.S, credor de R$ 20.557,03 (mais correção e juros), que via o estado da esposa agravar-se por neoplasia maligna de pulmão. Ante a situação excepcional, apresentando atestado médico e cópia de exame citopatológico, o credor requereu fosse deferida a antecipação do pagamento do precatório correspondente a seu crédito, sem o que o custeio do tratamento médico de sua esposa restaria seriamente comprometido.
Diferente foi a (má) sorte de Alcena da Conceição Lopes. Idosa, viúva, diabética, cega, incapacitada para o exercício de atividades elementares e dependente de auxílio pessoal e financeiro de familiares, credora do Ipergs, ela pediu "em caráter excepcional a preferência na ordem cronológica, a fim de possibilitar melhora na sua qualidade de vida".
Por razões regimentais, o recurso terminou indo ao Órgão Especial do TJRS. Vinte e dois dos 24 desembargadores presentes se "solidarizaram com a luta silenciosa travada pelos idosos na tentativa de sobre(viver) neste país em que os aposentados são abandonados pelo Poder Público". O indeferimento do pedido veio sob o fundamento da necessidade de observância da ordem cronológica.
No primeiro, a mulher e o marido estão vivos. No segundo, a idosa está morta. [1]
Infelizmente, essa realidade no Brasil, ainda, não mudou. Continua-se morrendo nas intermináveis filas dos precatórios.
Como vimos no primeiro caso, o TRF-4 deferiu a antecipação do pagamento do precatório por razões humanitárias.
Este artigo tem por escopo analisar sobre a ótica das novas teorias constitucionais, em especial a colisões de direitos fundamentais e a técnica da decisão ponderada o acerto ou equivoco das referidas decisões.
1 - CONCEITO
Para o professor José de Ribamar Caldas Furtado precatório judicial pode ser conceituado como:
Precatório é o instrumento que representa uma requisição judicial de pagamento, consubstanciado no ofício requisitório expedido pelo juiz da execução de sentença ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda, em face de a Fazenda Pública ter sido condenada ao pagamento de determinada soma em processo transitado em julgado[2]
.
Na lição do professor Kiyoshi Harada Precatório Judicial significa:
"(...) requisição de pagamento feito pelo Presidente do Tribunal, que proferiu a decisão exeqüenda contra Fazenda Pública (União, Estados membros, DF e Municípios), por conta da dotação consignada ao Poder Judiciário. É a forma de execução por quantia certa contra a Fazenda Pública, regulada pelo art. 730 do Código de Processo Civil. Funciona como sucedâneo de penhora, em virtude do princípio da impenhorabilidade de bens públicos".
Partindo desses conceitos e da jurisprudência dominante sobre o tema pode-se conceituar precatório judicial como sendo:
Ato administrativo judicial, consistente em requisição de pagamento feito pelo Presidente do Tribunal, que proferiu a decisão exeqüenda contra Fazenda Pública, por conta da dotação consignada ao Poder Judiciário. Concretizando o principio da isonomia e o princípio da soberania do interesse público sobre o particular.
É ato administrativo judicial, porquanto na jurisprudência do STF está superada, nos dias atuais, a tese de que nesse caso exercia o Presidente do Tribunal atividade jurisdicional, bem como, a que o classificava como atividade mista, ao mesmo tempo, jurisdicional e administrativa, como se vê da seguinte ementa:
"Precatório. Tramitação. Cumprimento. Ato do presidente do Tribunal. Natureza. A ordem judicial de pagamento (§ 2º do artigo 100 da Constituição Federal), bem como os demais atos necessários a tal finalidade, concernem ao campo administrativo e não jurisdicional. A respaldá-la tem-se sempre uma sentença exeqüenda." [3]
Concretiza os princípios da isonomia e da soberania do interesse público, pois, no dizer do desembargador ARNALDO BOSON PAES, o precatório objetiva garantir a isonomia entre os credores e assegurar a supremacia do interesse público sobre o interesse privado, com a prévia inclusão dos débitos no orçamento[4].
2 – EM QUE CONSISTE O PRECATÓRIO COM RAZÕES HUMANITÁRIAS
O artigo 100 da CF tem por objetivo, nas palavras do Ministro Celso de Melo, "viabilizar, na concreção do seu alcance[5], a submissão incondicional do Poder Público ao dever de respeitar o princípio que confere preferência jurídica a quem dispuser de precedência cronológica (prior in tempore, potior in jure)"[6]
Ocorre que há alguns casos em que o exeqüente encontra-se com sérios problemas de saúde (em regra nas doenças sem cura conhecida, como, v.g., neoplasia maligna), correndo risco de perder a vida, não tendo como esperar o curso "normal"[7] dos pagamentos dos precatórios e necessitando de recurso financeiro proveniente do recebimento de precatório para custear o tratamento, a fim de ter uma vida digna, ou pelos menos, uma sobrevida.
Neste caso se aplicarmos a técnica da subsunção, que consiste em aplicar a premissa maior (norma-regra do artigo 100 CF) em contejo com a premissa menor (fatos – exeqüente com necessidade de tratamento) chegaremos à mesma conclusão à qual chegou o presidente do TRT 23º em caso análogo.
Como se depreende do despacho exarado em 14/12/2004, no precatório n. 50/98 – registre-se: o exeqüente estava a sete anos esperando o pagamento de seu crédito-, que indeferiu um pedido com idênticos fundamentos do caso hipotético por falta de previsão constitucional em observância do disposto na Carta Magna (artigo 100 da CF/88), que diz que os pagamentos dos precatórios, far-se-á exclusivamente na ordem cronológica de apresentação, podendo acarretar pena ao Presidente do Tribunal que retardar ou tentar frustrar a liquidação regular dos precatórios, conforme dispõe o parágrafo 5º do artigo 100 da referida Carta.
Entretanto, essa decisão (conclusão lógica do silogismo) contraria frontalmente os princípios vetores da Constituição Federal, mormente os princípios da dignidade da pessoal humana[8], que fundamentam o Estado Democrático de Direito, o direito à vida e saúde, esses, por sua vez, pertencentes à categoria dos direitos fundamentais.
A aplicação pura e simples da subsunção não é constitucionalmente adequada para resolução deste caso, por força da principio instrumental da unidade da Constituição[9], donde se extrai que todas as disposições constitucionais têm a mesma hierarquia e devem ser interpretadas de forma harmônica.
No caso em tela estamos diante do que a doutrina alienígena denomina de "hard case", em uma tradução livre – caso difícil[10] -, ou seja, há nestes casos diversas premissas maiores, todas igualmente validas e de mesma hierarquia que, todavia, indicam soluções normativas diversas e muitas vezes contraditórias. Advertimos que neste caso não pode ser aplicada a subsunção, pois a lógica dessa técnica vai excluir todas as outras normas – que são igualmente válidas e de mesma hierarquia.
Neste prisma, a moderna doutrina constitucional e, principalmente, os órgãos jurisdicionais vêm se socorrendo da técnica da ponderação, que consiste em solucionar conflitos de normas de maneira tal, que todas continuem convivendo, mesmo que uma tenha que ser aplicada com menos intensidade que a outra.
Corroborando com a tese de que o pagamento de precatórios com fundamento humanitário consiste em "hard case" o STF manteve a ordem dada pela 1ª Vara do Trabalho de Vitória (ES), que determinou a expedição de Mandado de Seqüestro, sem observar a ordem cronológica, para socorrer um credor diagnosticado com câncer na laringe (Ministro - Relator Joaquim Barbosa RCL 3982).
Ressalta-se, porém, que a manutenção da decisão deu-se pelo fato de a ADI 1662 – Paradigma da Reclamação Constitucional 3982 -, não ponderou acerca da influência do direito fundamental à saúde e à vida na formação das normas que regem a sistemática de pagamentos de precatórios.
Sendo assim, ordem de bloqueio de verbas públicas, para pagamento de precatório, fundado no quadro de saúde do interessado, não viola a autoridade do acórdão prolatado durante o julgamento da ADI 1.662, razão pela qual foi julgada improcedente a RCL 3982.
Ressalvando, ainda, o Ministro-relator, acenou com a possibilidade do exame da ponderação, cálculo ou hierarquização entre o direito fundamental à saúde e a sistemática que rege os precatórios em outra oportunidade, nos seguintes termos:
"... Não me comprometo, neste momento, com qualquer ponderação, cálculo ou hierarquização entre o direito fundamental à saúde e o regramento constitucional do pagamento de precatórios. Apenas reconheço que, por ocasião do julgamento da ADI 1.662, aCorte não se manifestou sobre o assunto, de forma que ordem de seqüestro ou bloqueio de verbas públicas, pertinentes a precatório, fundadas no quadro de saúde do interessado não desafiam controle pela via da reclamação...",
Por todo o exposto, podemos inferir que os precatórios com razões humanitário – aquele fundado em grave doença do exeqüente – consistem em "hard case" requerendo uma nova técnica para sua resolução, a técnica da ponderação, sobre a qual faremos uma visão panorâmica no próximo tópico.
3 - TÉCNICA DE PONDERAÇÃO[11]
Podemos conceituá-la como uma técnica de decisão para solucionar casos difíceis – "Hard Case", nos quais há várias normas, todas válidas e aplicáveis ano mesmo fato, com o objetivo de solucionar o conflito entre normas de maneira que todas continuem convivendo, mesmo que uma tenha que ser aplicada com menos intensidade que a outra.
Tem como seu campo de aplicação a resolução de conflitos entre princípios de mesma hierarquia nas normas de cláusulas abertas, que têm por objetivo definir conceitos jurídicos indeterminados. Resolver os conflitos entre princípios e regras; entre regras e regras. Em geral resolve os conflitos de razões, bens e interesses todos albergados na Constituição Federal.
A doutrina aponta três fases para aplicação da técnica de ponderação. Na primeira fase, devemos identificar os comandos normativos ou normas relevantes em conflito.
Na segunda fase, devemos examinar as circunstâncias concretas do caso e suas repercussões sobre os elementos normativos, por isso se diz que depende substancialmente do caso concreto e suas particularidades, pois a importância de cada comando normativo identificado na primeira fase depende em parte do caso concreto.
Terceira e ultima fase, fase da decisão, é nesta fase em que devemos confrontar os diferentes grupos de normase analisar suas repercussões sobre os fatos, com o escopo de apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diferentes elementos em disputa, neste momento será possível definir o grupo de normas que deve prevalecer no caso concreto.
Em seguida deve-se estabelecer em que medida esse grupo de normas prevalentes, e o resultado por elas indicadas, devem limitar os outros grupos de normas que foram mitigadas. Neste ponto a doutrina destaca o princípio da proporcionalidade, mormente, seu sub-princípio – vedação do excesso – o qual vai nos informar o limite ideal que as normas necessitam ser mitigadas.
4 – APLICANDO A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO AOS PRECATÓRIOS COM RAZÃOES HUMANITÁRIO.
Como vimos acima, os Precatórios com razões Humanitário caracterizam-se quando o exeqüente (credor da fazenda pública) for acometido de uma doença grave, necessitando de cuidados especiais para continuar o seu tratamento médico. Sendo que sofrimento da pessoa diante de tal diagnóstico prolonga-se e se agrava diante da necessidade de disposição de recursos materiais considerados imprescindíveis para o custeio do tratamento.
Vimos, também, que técnica tradicional da subsunção não serve para resolver este "hard case", passamos, então, a aplicar a técnica da ponderação, ou seja, equacionamento dos direitos em confronto.
A primeira fase da técnica de Ponderação consiste em diagnosticar as normas ou sistema de normas relevantes para resolução do caso e eventuais conflitos entre elas. O que passamos a fazer.
De um lado podemos extrair do enunciado normativo do artigo 100 e parágrafo segundo os seguintes comandos normativos, as quais foram o grupo I:
1) a Execução contra a Fazenda Pública far-se-á por meio de precatórios, salvo requisição de pequeno valor, em decorrência do princípio da impenhorabilidade dos bens públicos e supremacia do interesse público sobre o privado.
2) submissão incondicional do Poder Público ao dever de respeitar o princípio que confere preferência jurídica a quem dispuser de precedência cronológica, em respeito ao princípio da igualdade dos credores frente à administração pública.
3) seqüestro de valores em instituição bancária onde o ente público tem conta corrente só em caso de preterimento, ou seja, nos casos em que houver quebra da ordem de pagamentos dos precatórios. Mais uma vez neste comando normativo temos a influência dos princípios da impenhorabilidade dos bens públicos e da supremacia do interesse publico sobre o privado.
De outro lado temos os seguintes princípios, os quais formam o grupo II:
1) Princípio da dignidade da Pessoa Humana, art. 1º, III da CF, considerado pela doutrina um princípio fundamental, sendo o centro axiológico da concepção de Estado Democrático de direito, por isso deve ser observado em todas as relações públicas e privadas.
2) Direito a Vida, consagrado no artigo 5º caput, inserido no Titulo II, Capitulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos;
3) Direito a Saúde, inscrito no artigo 6º, inserido no Titulo II, Capitulo II – Dos Direitos Sociais.
Fica patente o conflito entre as normas, pois se aplicar-mos as normas do grupo I, o exeqüente (credor da Fazenda Pública), necessariamente, sofrerá repercussões nefastas no âmbito de seu direito, sendo impedido de ter uma vida digna,tratamento de sua saúde, ou até uma sobrevida.
Superada a primeira fase passamos da segunda e da terceira, quando nos cabe examinar os fatos, as circunstâncias concretas do caso e sua interação com os elementos normativos, atribuir pesos a cada um dos elementos normativos envolvidos e estabelecer qual grupo deve preponderar no caso em tela.
Salientamos que a analise destas fases se deu em conjunto, pelo fato de estamos diante de um caso em abstrato.
Do cotejo entre as normas do grupo II, item 1 e 3, e as normas[12] do grupo II, itens 2 e três, qual é a norma que deverá prevalecer? Neste ponto socorremo-nos da jurisprudência consolidada do STJ, em relação ao fornecimento gratuito de remédios para tratamentos de saúde.
"ADMINISTRATIVO - MOLÉSTIA GRAVE - FORNECIMENTO
GRATUITO DE MEDICAMENTO - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - DEVER DO ESTADO - DIREITO LÍQUIDO E CERTO DO IMPETRANTE.
1. Esta Corte tem reconhecido que os portadores de moléstias graves, que não tenham disponibilidade financeira para custear o seu tratamento, têm o direito de receber gratuitamente do Estado os medicamentos de comprovada necessidade. Precedentes.
2. O direito à percepção de tais medicamentos decorre de garantias previstas na Constituição Federal, que vela pelo direito à vida (art. 5º, caput) e à saúde (art. 6º), competindo à União, Estados, Distrito Federal e Municípios o seu cuidado (art. 23, II), bem como a organização da seguridade social, garantindo a 'universalidade da cobertura e do atendimento' (art. 194, parágrafo único, I).
3. A Carta Magna também dispõe que 'A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação' (art. 196), sendo que o 'atendimento integral' é uma diretriz constitucional das ações e serviços públicos de saúde (art. 198).
4. In casu, não havendo prova documental de que o remédio fornecido gratuitamente pela administração pública tenha a mesma aplicação médica que o prescrito ao impetrante - declarado hipossuficiente -, fica evidenciado o seu direito líquido e certo de receber do Estado o remédio pretendido.
5. Recurso provido."[13]
Neste diapasão, tanto no caso de fornecimento de medicamentos, quanto no caso de precatório com razões humanitárias, estamos diante dos mesmos conflite de normas. A jurisprudência do STJ, nos aponta que a norma do direito à vida e a saúde deve prevalecer, sobre as normas extraídas do artigo 100 da CF, e indiretamente sobre o princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o princípio da impenhorabilidade dos bens públicos.
Resta-nos enfrentar a norma grupo I, item 2 - submissão incondicional do Poder Público ao dever de respeitar o princípio que confere preferência jurídica a quem dispuser de precedência cronológica.
Como vimos, essa norma decorre do princípio da igualdade dos credores frente à administração pública.
Porém, a atual constituição não comporta mais somente a busca pela igualdade formal – consagrada no liberalismo clássico-, mas sim deve ser buscada a igualdade material, na medida em que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.
Portanto, no Estado Social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei.
Destarte, a condição de saúde do exeqüente (credor da Fazenda Pública), deve ser utilizada como critério excepcional para permitir a quebra de ordem dos pagamentos dos precatórios.
A corroborar com essa tese, trazemos à baila, o voto do Ministro Eros Graus no julgamento da RCL/3034, citando Carl Schimitt, preleciona que as normas só valem para situações normais. Porquanto a normalidade da situação é um elemento básico do "valer" da norma.
E conclui o Ministro nos seguintes termos:
O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade, uma zona de indiferença capturada pela norma. De sorte que não é a exceção que se subtrai à norma, mas ele que, suspendendo-se, dá lugar à exceção ... apenas desse modo ela se constitui como regra, mantendo-se em relação com a exceção. A esta corte, sempre que necessário, incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Ao fazê-lo, não se afasta do ordenamento, eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isso é, retirando-a da exceção. (grifo nosso)[14]
Com efeito, somos levados a concluir que as normas do grupo II, devem prevalecer sobre as normas do grupo I. Porém, resta responder a seguinte indagação:
Em que medida as normas do grupo II prevalecerão sobre as normas do grupo I? Ou melhor, é sempre que as regras grupo II irão prevalecer sobre as normas do grupo I?
Para responder essa indagação, não podemos olvidar do princípio da proporcionalidade, mormente, o sub-princípio da vedação do excesso.
Porquanto, é esse princípio que irá nos informar que quando estivermos v.g, diante de exeqüente (credor da Fazenda Pública) com precatório no valor de R$. 400.000,00, contra um município como São Pedro da Cipa, no interior do Estado de Mato Grosso, cuja arrecadação mensal não chega à R$. 400.000,00, as normas do grupo I devem prevalecer sobre as normas do grupo II. Isto é, não devem ser seqüestrados os valores da conta corrente do Município para pagamento do precatório, sob pena de parar toda a atividade do município. Deve o aplicador do direito achar um outra saída, v.g, parcelamento do precatório, ou outra que melhor se adaptar ao caso concreto.
Diametralmente oposta, será a solução se a execução for contra a União que só no mês de janeiro de 2008, arrecadou mais de R$. 10 bilhões, isso, sem a famigerada CPMF.
Neste sentido é a lição de J.J. Canotilo, in verbis
"... quando se chegar à conclusão da necessidade de adequação da medida coactiva do poder público para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à 'carga coativa' da mesma. Está aqui em causa o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, entendido como princípio da 'justa medida'. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não proporcional em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de 'medida' ou 'desmedida' para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim"[15].
Com isso vencemos as faces da técnica da Ponderação. Registra-se aqui que não foi levado em conta o Princípio da dignidade da pessoa humana, não obstante aquele estar sendo violado. Porém, a concretização deste princípio se dá de várias formas, dificultando sua identificação, em um núcleo mínimo, pelo qual ele possa ser conhecido.
Dessa forma, devemos concluir que quando estivermos diante de um precatório com razãoes humanitário, este deve ser pago imediatamente, com a expedição de mandado de seqüestro nas contas correntes do ente público, mitigando o rigor formal do precatório a fim de viabilizar o direito maior à vida e à saúde.
Diversos julgados de diferentes tribunais chegaram a essa mesma conclusão. V.g., o julgamento do Agravo de Instrumento n. 03.001101-9, TJ de Rondônia em 07/05/2003;
5 – PAGAMENTO DE PRECATÓRIO QUANDO O TRIBUNAL TEM ACORDO COM A FAZENDA PÚBLICA.
Como é sabido os presidentes dos TRT´s e outros Tribunais tentando, de alguma forma, contribuir para a diminuição das enormes filas de precatórios, utilizam de criatividade para fazer com que a Fazenda Pública paguem os precatórios.
Assinando acordos – Protocolo de Intenção -, nos quais o ente público mensalmente deposita uma quantia destinada ao pagamento dos precatórios. Como exemplo deste acordo podemos citar o existente entre o TRT23ª Região e o Estado de Mato Grosso, um Protocolo de Intenção no qual o Estado se compromete depositar mensalmente R$. 300.000,00 para quitação de seus precatórios.
Esse valor depositado visa ao pagamento dos precatórios utilizando o critério, exclusivamente, cronológico, como determina a Constituição. Ou seja, o primeiro da fila recebe o seu crédito integral e o restante do valor será utilizado para pagamento do próximo da fila.
Nesta hipótese quando o presidente Tribunal resolve determinar o pagamento de precatório com razões humanitário,se o ente público tem acordo com o TRT e está cumprindo, rigorosamente, com o pactuado, ocorre somente a quebra da ordem cronológica dos precatórios.
Por exemplo, o precatório a ser pago com fundamento humanitário está na posição 67ª, haverá uma preterição dos outros 66ª que estão em sua frente.
Observa-se que neste caso, houve por parte do administrador o depósito de valor destinado para pagamento de precatórios. Ou seja, o administrador público no exercio do seu poder discricionário destinou verbas para pagamento de precatórios.
Portanto, as normas do grupo I, que são extraídas do artigo 100 e parágrafo segundo item um e dois estão sendo preservadas (respeitadas), ou seja, a execução está sendo por precatório e não houve nenhum seqüestro de valores para pagamento de precatório.
Somente o item dois está sendo violado, ou seja a submissão incondicional do Poder Público ao dever de respeitar o princípio que confere preferência jurídica a quem dispuser de precedência cronológica, em respeito ao princípio da igualdade dos credores frente à administração pública.
Como vimos em alhures essa norma pode ser excepcionada com a simples atuação da hermenêutica constitucional, sem necessitar de aplicação da técnica da ponderação. Ou seja, simples aplicação do princípio material da igualdade que consistem em: a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.
Portando, esse argumento, por si só bastaria para deferimento do pagamento de precatórios por razões humanitárias, com quebra de ordem, sem que o presidente do tribunal responda pelo crime de responsabilidade previsto no artigo 100, parágrafo sexto.
É como se houvesse uma ressalva no artigo 100, parágrafo segundo, quando se tratar de precatórios com razões humanitárias. Pois, embora, seja uma hipótese não imaginada pelo legislador constituinte, defluir da própria interpretação sistemática da CF.
CONCLUSÃO
Ao final desta exposição, que procurou de alguma forma dar esclarecimentos sobre o pagamento de precatórios por razões humanitárias, é possível compendiar de forma sumária as idéias expostas nas seguintes preposições:
a – Quando nos deparamos com precatório com razões humanitária, estamos diante de um "hard case", caso difícil, que a técnica de subsunção não consegue resolver adequadamente, devendo ser utilizada a técnica da ponderação.
b – Utilizando a técnica da ponderação chega-se ao resultado que os princípios da dignidade da pessoa humana, direito à vida e à saúde, devem prevalecer sobre as normas do artigo 100 e parágrafos. Devendo estas normas-regras serem mitigadas para autorizarem o seqüestro nas contas bancaria do ente público, sendo imediatamente satisfeito o crédito do exeqüente (credor da fazenda pública).
c – Quando o ente público tem convênio com os tribunais, não estamos diante de um "hard cause", podendo ser mitigado o rigor do artigo 100, por simples interpretação do princípio da igualdade substancial.
Por obvio, não temos a pretensão de esgotar o assunto com estas singelas considerações, mas sim contribuir de alguma forma para diminuir o sofrimento das pessoas que padecem nas filas, intermináveis, de pagamento dos precatórios.
[1] Extraído de http://www.espacovital.com.br/novo/noticia_ler.php?idnoticia=1677, com acesso em 17.10.05.
[2]Precatórios judiciais. Descumprimento. Crime de responsabilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 265, 29 mar. 2004. Disponível emhttp://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5007.
[3] STF, Tribunal Pleno,ADI 1.098, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 25/10/96
[4] TRT 22ªRegião, AGRAVO REGIMENTAL n 00128-2004-000-22-00-5 , Rel. Arnlado Bóson Paes, DTJ/PI 13.04.05, p. 2
[5] Deste trecho, também, podemos inferir que o ministro deu aso a incidência da técnica de ponderação, pois até aonde vai a norma regra do artigo 100, esse limite só pode ser dado pela técnica da ponderação.
[6] STF, 1ª Turma,RE 188285, Rel. Min Celso de Melo, DJ 01/03/96
[7] Destacamos a duração normal para pagamento de precatório judicial, pois a norma-regra foi idealizada para o pagamento em 18 meses – o que corre com os precatórios alimentar da União que são pagos em dia, porém isso não ocorre nos outros entes federativos – Estados e Municípios e suas respectivas Autarquias. Sendo que nestes casos pode se levar até décadas.
[8] Barcellos, Ana Paula: A nova Interpretação Constitucional – Ponderação, direitos fundamentais e ralações privadas, ano 2006., ed. 2ª , Editora Revovar, p. 365
[9] Barcellos, Ana Paula: Ob cit p. 362
[10] Barcellos, Ana Paula: Ob cit . p. 344
[11] Barcellos, Ana Paula, ob cit p.55- 60
[12] Usado o termo norma aqui sempre no sentido lado – considerando norma o gênero do qual são espécies princípios e regras. Sobre o assunto ver: Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional, ed. 21ª , editora Malheiros, ano 2006. p. 270-272.
[13]Segunda Turma, RMS n. 17.425/MG, relatora Ministra Eliana Calmon, DJ de 22.11.2004.
[14] Stf, Tribunal Pleno, Rcl/3034, Min Relator Sepúlveda Pertence, D.J. 27/10/2006
[15] In Direito Constitucional, 3º ed., Coimbra.