Pacto de São José da Costa Rica e a proibição da prisão do depositário infiel

Por Victor Kuhl de Carvalho | 19/10/2015 | Direito

Pacto de São José da Costa Rica e a proibição da prisão do depositário infiel

Victor Kuhl de Carvalho

kyhl2010@hotmail.com

Direito Internacional- Gabriel Haddad

Resumo

Esteartigo tem por finalidade elaborar um estudo da evolução do procedimento dado pela jurisprudência do  STF- Supremo tribunal Federal ao tema da prisão civil do depositário infiel no decorrer da vigência da Constituição Federal de 1988, visando demonstrar as inumeras  decisões decretadas pela Corte Constitucional em tal esfera . A principio serão trabalhados os dilemas relacionados aos efeitos que a ratificação do Pacto de San José da Costa Rica  instituiu neste campo.Por fim  serão abordadas as questões acerca da amplitude do termo “depositário infiel”, observando os casos de prisao do depostiario infiel fundamentados na Carta de 1998 e os que estariam corrompidos de inconstitucionalidade.

Palavras-chave:O impedimento da prisão do depositário infiel e o Pacto de São José da Costa Rica.

Introdução

            É evidente que a constituição brasileira sempre teve como hipótese a aplicação de prisão civil por dívida. Tal sistema, porem, foi aos poucos perdendo força no direito brasileiro, que, desde a promulgação da Constituição de 1946, passou a impedir esse tipo de medida, admitindo somente no caso do depositário infiel e devedor de alimentos. Essas duas exceções à proibição da prisão civil por dívida extende-se  no ordenamento jurídico brasileiro desde então, estando no texto da Carta de 1988, que diz que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

Houve-se discurssoes acerca do grau de liberdade que teria de ser concedido ao legislador infraconstitucional para estabelecer em quais situações ela teria de ser aplicada. Outro debate consideravel  ocorrido nessa esfera foi o que se deu em relação aos efeitos que o Pacto de San José da Costa Rica teria sobre o depositário infiel e a aplicação da prisão civil, uma vez que tal convenção internacional exclui essa possiblidade, permitindo a prisão civil por dívida apenas no caso do devedor de alimentos.

  • O QUE É DEPOSITÁRIO INFIEL?

Primeiramente, há um problema em se definir a abrangência do termo “depositário infiel” empregado pelo legislador constitucional de 1988. Conforme veremos a seguir, há dificuldade em se saber em quais situações pode-se aplicar o instituto da prisão civil a um determinado devedor.

  • As acepções tradicionais do nomen iuris “depósito”

Na concepção civilista clássica, o depósito se dá quando o depositante entrega ao depositário um determinado bem móvel, sendo que o ultimo individuo fica com a obrigação de restituir a coisa na ocasião ajustada ou quando lhe for solicitado.

Nesta lógica, no âmbito civil existem dois tipos básicos de depósito: depósito convencional e depósito necessário. O deposito convencional encontra-se fundamentado no art. 627 do Código Civil, que assim dispõe: “Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame”. Tal artigo se refere ao depósito decorrente da autonomia da vontade das partes envolvidas.

Por outro lado, o depósito necessário se estabelece por imposição legal ou por força de circunstâncias imperiosas. São três as hipóteses em que isso ocorre: depósito legal, depósito miserável e depósito do hospedeiro.

  • O caso do depósito judicial

O depósito judicial é aquele que ocorre por força de determinação judicial. O objetivo dessa norma é o de permitir a prática de certos atos processuais como a penhora, o sequestro, o arrolamento de bens e entre outros. Nessa situação, o depositário figura como auxiliar da justiça e se vincula ao juízo através de norma de natureza administrativa.

  • A equiparação do devedor-fiduciante a depositário

O conceito de propriedade fiduciária está tipificado no art. 1.361, do Código Civil: “Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”. O artigo dispõe do caso em que o devedor com o intuito de fornecer uma garantia ao seu credor, transfere a posse de um bem, readquirindo-a apenas quando pagar sua dívida.

O Decreto 911/68, dispõe da seguinte forma em seu art. 4º:

“Art. 4 º. Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil.”

A figura do devedor-fiduciante difere da do depositário, pois aquele não recebe o bem para guardá-lo e o alienante não pode exigir a restituição da coisa quando bem entender.

O alienante possui vários mecanismos jurídicos que permitem a satisfação de seu crédito sem que seja necessário recorrer à medidas radicais de prisão civil. Se o devedor entrega de boa vontade o bem alienado, o credor pode conseguir o valor da dívida vendendo-o a terceiro. O alienante pode ainda, ajuizar ação de busca e apreensão e, caso o bem não seja encontrado, converter a busca e apreensão em ação de depósito.

Nota-se que a aplicação da prisão civil ao devedor-fiduciante tem serias barreiras no princípio da proporcionalidade, pois se mostra notória a desnecessidade desse tipo de medida diante da quantidade de alternativas ao devedor.

“Diante desse quadro, não há dúvida de que a prisão civil é uma medida executória extrema de coerção do devedor-fiduciante inadimplente, que não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot), em sua tríplice configuração: adequação (Geeingnetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito.[...]”-Gilmar Mendes.

  • A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

Além dos conflitos anteriormente expostos sobre a relevância que deve ser conferida à permissão constitucional da prisão civil do depositário infiel, é necessário também averiguar como a jurisprudência do STF trata do tema diante dos acordos internacionais que versem sobre direitos humanos.

  • O Pacto de San José da Costa Rica

A Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, é um tratado realizado entre os países membros da Organização dos Estados Americanos, que foi assinado em 22 de novembro de 1969, entrando em vigor em 18 de julho de 1978.

Tal convenção, em seu art. 7º, que cuida do direito à liberdade pessoal, dispõe da seguinte forma em seu item 7: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. ”

Percebe-se que o Pacto de San José da Costa Rica, ao contrário da Constituição Federal brasileira, colocou, diante da proibição da prisão civil por dívida, apenas uma exceção (devedor de alimentos), excluindo a hipótese do depositário infiel. Existe então um aparente conflito de normas entre a Constituição Federal e o Pacto de San José da Costa Rica.

  • Relação hierárquico-normativa entre os tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição Federal

A Constituição Federal, ao discorrer sobre os tratados internacionais de direitos humanos seu art. 5º, afirmava tão somente que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. ”

Essa superficialidade no tratamento do tema foi um pretexto para à existência de 4 vertentes distintas acerca do status que necessitaria ser conferido aos tratados internacionais que abordassem sobre direitos humanos. A primeira corrente defende a natureza supraconstitucional desses tratados. Um segundo grupo atribui a este pacto status constitucional. A terceira corrente afirma estarem os tratados internacionais no mesmo patamar que as leis ordinárias. A quarta vertente, por fim, é a que concede a essas convenções caráter supralegal.

  • A supra constitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos

O doutrinador brasileiro Celso de Albuquerque Mello defende que as normas constitucionais não teriam poder para revogar as leis de um tratado internacional de direitos humanos, mesmo que fosse promulgada posteriormente à Emenda Constitucional, divergindo do texto da Convenção, não perderia a sua eficácia e nem seria revogada. Tal posicionamento não é bem aceitável, pois o Direito brasileiro tem como seu fundamento a constituição.

O procedimento de aprovação de um acordo internacional não está restrito somente às regras formais previstas no texto da constituição, pois deve estar de acordo com os preceitos materiais da Magna Carta.

  • Os acordos internacionais de direitos humanos como normas de hierarquia constitucional

A segunda vertente se baseia na ideia de que a constituição estaria colocando as convenções internacionais sobre direitos humanos no mesmo grau hierárquico das normas constitucionais.

Assim sendo, os novos direitos, ao serem agregados á Constituição Federal, estariam dotados de aplicação imediata por força do § 1º do art. 5º, não necessitando de nenhum ato legislativo adicional para que lhes seja conferida eficácia plena.

Na possibilidade de conflitos entre os tratados e a constituição, o critério seria a da aplicação da norma que seja mais benéfico á vítima, estabelecendo-se, com isso, uma relação constante entre os direitos externo e interno, no sentido de certificar a maior proteção possível aos direitos humanos.

Desde a promulgação da atual Constituição, a normativa dos tratados de direitos humanos em que o Brasil é parte tem de fato nível constitucional, e opinião em contrário requer demonstração. O equilíbrio dos tratados de direitos humanos à legislação infraconstitucional contraria o disposto no art. 5º §2º da Constituição Brasileira. Tal tese, perdeu seu sentido após a promulgação da Emenda Constitucional 45/2004, que acrescentou o paragrafo terceiro  ao art. 5º da CF:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Em vista disso, só terão força constitucional os tratados internacionais sobre direitos humanos que forem reconhecidos pelo mesmo processo exigido para a aprovação de emendas constitucionais.

Apesar disso, essa decisão do Congresso Nacional de regular a situação constitucional de tais tratados à sua aprovação por quórum qualificado, não isenta de críticas no meio doutrinário.

  • A atual apreciação do STF: A supralegalidade dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos

A última corrente é defendida pelo entendimento de que as convenções internacionais sobre direitos humanos possuem hierarquia supralegal e infraconstitucional. Isso sugere que os atos normativos deveriam sucumbir diante a supremacia da Constituição Federal, mas não perderia sua eficácia por força de uma mera lei ordinária.

Na esfera jurisprudencial, essa concepção começou a tomar forma durante o julgamento do RHC 79785 RJ, quando o Ministro Sepúlveda Pertence proferiu em seu voto tais palavras:

“Certo, com o alinhar-me ao consenso em torno da estatura infraconstitucional, na ordem positiva brasileira, dos tratados a ela incorporados, não assumo compromisso de logo — como creio ter deixado expresso no voto proferido na ADInMc 1.480 — com o entendimento, então majoritário — que, também em relação às convenções internacionais de proteção de direitos fundamentais — preserva a jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente às leis.

Na ordem interna, direitos e garantias fundamentais o são, com grande frequência, precisamente porque — alçados ao texto constitucional — se erigem em limitações positivas ou negativas ao conteúdo das leis futuras, assim como à recepção das anteriores à Constituição (...)

Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art. 5º, § 2º, da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que, malgrado os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma abertura significativa ao movimento de internacionalização dos direitos humanos”

No entanto, tal posicionamento somente foi consolidado no Recurso Extraordinário 466.343:

“PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE n. 349.703 e dos HCs n. 87.585 e n. 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. ”

  • O atual entendimento jurisprudencial sobre a prisão civil do depositário infiel

O parecer mais recente do STF sobre a prisão civil do depositário infiel é o de verificar aos tratados internacionais que trata sobre direitos humanos hierarquia infraconstitucional e supralegal. Assim sendo, independente de não ter força suficiente para revogar o inciso LXVII, do art. 5º, da Carta de 1988, essas convenções internacionais são capazes de inabilitar qualquer dispositivo legal que contrarie seu texto. Assim sendo, toda a legislação infraconstitucional que regulava a prisão do depositário infiel em qualquer de suas possibilidades sofreu consequência, sendo chamada de “efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria”.

Considerações Finais

Avista de tudo o que foi exposto até aqui, é importante se atentar no fato que houve uma mudança radical no posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da prisão civil do depositário infiel. Inicialmente, a ocorrência desse tipo de prisão era a mais ampla possível, atingindo até mesmo situações que não eram tradicionalmente consideradas depósito, como é o caso da alienação fiduciária.

Depois de várias críticas a esse posicionamento, a Suprema corte adotou uma postura contraria em relação ao tema, proibindo a prisão civil do depositário infiel em qualquer de suas hipóteses. Tal fato se deu em virtude do acolhimento pelo tribunal da tese que confere ao Pacto de San José da Costa Rica hierarquia infraconstitucional e supralegal, o que implica a perda de eficácia de toda a legislação ordinária que disponha de forma incompatível com o referido diploma internacional.

Percebe-se, por tanto, que a diretriz dada pela jurisprudência do STF tem sido o de dar cada vez mais efetividade aos direitos humanos e à proteção do indivíduo.

Bibliografia Consultada

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. Normas para apresentação de monografia. 3. ed. Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Biblioteca Karl A. Boedecker. São Paulo: FGV-EAESP, 2003. 95 p. (normasbib.pdf, 462kb). Disponível em: <www.fgvsp.br/biblioteca>. Acesso em: 23 set. 2004.

http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm

OLIVEIRA, N. M.; ESPINDOLA, C. R. Trabalhos acadêmicos: recomendações práticas. São Paulo: CEETPS, 2003.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm

PÁDUA, E. M. M. de. Metodologia científica: abordagem teórico-prática. 10 ed. ver. atual. Campinas, SP: Papirus, 2004.

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=116380

http://www.aidpbrasil.org.br/arquivos/anexos/conv_idh.pdf

Artigo completo: