OS SILÊNCIOS DA MEMÓRIA (1969-1974)

Por DORVAL FAGUNDES FURTADO JUNIOR | 29/09/2010 | História

UNIÃO DAS INSTITUIÇÕES EDUCACIONAIS DO ESTADO DE SÃO PAULO
UNIESP
FACULDADES INTEGRADAS TERESA MARTIN
LICENCIATURA EM HISTÓRIA
2007-2010
DORVAL FAGUNDES FURTADO JUNIOR
OS SILÊNCIOS DA MEMÓRIA
(1969-1974)
São Paulo
2010

DORVAL FAGUNDES FURTADO JUNIOR
OS SILÊNCIOS DA MEMÓRIA
(1969-1974)
Tese de Conclusão de Curso, apresentada para avaliação, para obtenção do título de Licenciatura. Período noturno.
Professor Orientador:
DR. GUTEMBERG ALEXANDRINO RODRIGUES
SÃO PAULO
2010

DEDICATÓRIA
Entre todas as pessoas que puderam me auxiliar, dentro de suas possibilidades pessoais, dedico de todo coração este trabalho à colaboração pessoal de minha amada esposa ANDRÉA DOS REIS FURTADO, cujos préstimos inestimáveis não se podem calcular. Devido ao seu incentivo e dedicação pude concluir meus estudos básicos à distância, visto que a natureza do meu serviço profissional me impedia de assistir a um curso regular presencial. A ela devo em parte não somente esse quesito, mas também meu próprio ingresso no nível superior de formação. Sem o seu incentivo, sua compreensão, escapar-se-me-iam todas as esperanças de progresso intelectual.

AGRADECIMENTOS
De forma alguma deixaria de agradecer à inspiração de meu professor, Mestre ALEXANDRE CLARO MENDES, Coordenador Geral do Curso de Licenciatura em História, cuja presença tem me acompanhado desde o princípio das atividades deste curso. Sempre suas idéias, seus argumentos e seus recursos pedagógicos foram exitosos em transmitir o conhecimento e o amor à História, numa visão subjetiva que lhe é peculiar.
Ao meu Professor Orientador, Doutor GUTEMBERG ALEXANDRINO RODRIGUES, cuja presença também tem sido uma constante desde os primeiros meses de curso, sendo uma fonte de incentivo devido ao seu próprio exemplo de dedicação e esforço pessoal, mantendo cabedal de conhecimento teórico e visão subjetiva muito além do seu tempo; forjando em si mesmo alguém que prima por transmitir um sentido da historiografia que lhe é muito peculiar: introjetar em seus alunos a paixão pela História.
Ao Professor e Amigo, Mestre KARLENO MÁRCIO, dedicado, prestativo e compreensivo amigo cristão, defensor de princípios raros no meio acadêmico hodierno, como sadia confiança em Deus e respeito por ideais que estão em ameaça de extinção: os princípios cristãos e uma boa experiência com o Divino.
Ao Licenciando DAVID PEREIRA, nobre colega, tem sido um exemplo de pontualidade e participação nas atividades curriculares, no respeito à ética entre colegas de curso: solidário e prestativo. Com alegria, de moto próprio, faço questão que seu nome seja lembrado onde quer que este trabalho seja lido ou analisado.
Ao Pastor JOSÉ APARECIDO CORTE, Presidente da Associação Paulista (ASPA) dos Adventistas do 7º Dia ? Movimento de Reforma, pelos seus préstimos específicos, liberando-me ocasionalmente das minhas atividades ordinárias, como secretário da entidade acima referida, e das minhas obrigações específicas como Missionário para que pudesse concluir meus objetivos intelectuais. De coração agradeço-lhe pelo altruísmo e pela iniciativa em apostar na capacidade do semelhante, em especial do subalterno, sem ter quaisquer obrigações estatutárias ou interinas que exigissem tal atitude.









Abri de novo o zíper para enfiar mais dois livros comprometedores, que não reparara antes. [...] Então os "homis" já não tinham apreendido "A Capital", de Eça de Queiroz, por confundir com o homônimo masculino do "subversivo Marques?" [sic]
(SIRKIS, Alfredo. Os Carbonários ? Memórias da Guerrilha Perdida. São Paulo: Global, 1980. Pág. 101)

RESUMO

A presente monografia pretende trazer uma análise acerca do desenvolvimento da memória existente nas gerações hodiernas a respeito da estrutura repressiva do Regime Militar, em especial o período entre 1968 e 1974. Foi efetuado um levantamento referente à construção da Doutrina de Segurança Nacional e seu vínculo com os acontecimentos de 31 de março e 1º de abril de 1964, por ocasião da deposição do então Presidente da República, João Belchior Marques Goulart (popularmente conhecido como Jango). Acompanhou-se o desenvolvimento da Doutrina durante os Atos Institucionais até a deflagração dos eventos de 13 de dezembro de 1968, com a instauração do AI-5. A partir desse momento analisa-se a historicidade dos grupos de oposição ao Regime pelos rumos que escolheram como forma de protesto ao endurecimento do Estado de Exceção: luta armada, as "expropriações" de capital (assaltos a banco e a carros-pagadores) e a formação dos principais grupos clandestinos de esquerda. Apurou-se a contra reação das Forças Armadas através da legalização da tortura como método "eficiente" de levantamento de informações. Reconstruiu-se o processo prisional do opositor e do então considerado subversivo, desde a voz de prisão até aos acontecimentos das câmaras de tortura. Após a tentativa de compreensão do contexto histórico do período, é proposta uma reflexão sobre a eficiência, a ética e a legalidade do uso da tortura em situações consideradas emergenciais para a segurança nacional. Após a análise crítica, é avaliada a memória social resultante do período conturbado verificada na comunidade que não conheceu o período repressivo: a geração do século XXI.
Palavras-Chave: ditadura, tortura, repressão, golpe militar, socialismo, totalitarismo.


ABSTRACT

This monograph aims to bring about an analysis of memory development that was built on the generations of today regarding the structure of the repressive military regime, especially the period between 1968 and 1974. We performed a survey on the construction of the National Security Doctrine and its link with the events of March 31 and April 1, 1964, during the deposition of the then President of the Republic, João Belchior Marques Goulart (popularly known as Jango). Was accompanied by the development of doctrine during the Institutional Acts until the outbreak of the events of December 13, 1968, with the introduction of the AI-5. Thereafter it explores the historicity of the groups opposed to the scheme by paths they have chosen as a protest to the hardening of the State of Exception: armed struggle, the "expropriation" of capital (bank robberies and car-payers) and the formation the main left-wing underground groups. It was found that the reaction against the Armed Forces through the legalization of torture as a method "efficient" information gathering. Rebuilt the process of prison opponent and then considered subversive, since the arrest until the events of torture chambers. After the attempt to understand the historical context of the period, it proposes a reflection on the efficiency, ethics and legality of the use of torture in emergency situations considered for national security. After the review, is valued social memory resulting from the troubled period found in the community who did not know the period of repression: the generation of the XXI century.
Keywords: dictatorship, torture, repression, military coup, socialism, totalitarianism.


SUMÁRIO
Conteúdo
INTRODUÇÃO 10
A CONCEPÇÃO DA DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL 13
JOÃO GOULART E O CONTEXTO DE 31 DE MARÇO DE 1964 16
O GRANDE COMÍCIO NA CENTRAL DO BRASIL, RJ 19
A REVOLTA DOS MARINHEIROS 21
O DISCURSO AOS SARGENTOS NO AUTOMÓVEL CLUBE, RJ 22
O GOLPE 23
CAPÍTULO 2 ? O ATO INSTITUCIONAL N° 5 E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA OS OPOSITORES DO REGIME MILITAR 26
OS ATOS INSTITUCIONAIS 26
O DIA 13 DE DEZEMBRO DE 1968 E A LUTA ARMADA 28
IMPLICAÇÕES DO AI-5 28
A ORGANIZAÇÃO DA LUTA ARMADA 31
ALN (AÇÃO LIBERTADORA NACIONAL) 37
COLINA (COMANDO DE LIBERTAÇÃO NACIONAL) 37
MR-8 (MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO 8 DE OUTUBRO) 38
VPR (VANGUARDA POPULAR REVOLUCIONÁRIA) 39
CAPÍTULO 3: A "CUNHA DE PENETRAÇÃO" DAS FORÇAS ARMADAS 42
A TORTURA COMO "CUNHA DE PENETRAÇÃO" 42
TECNOLOGIA DO TERROR 43
A PRISÃO: 43
A CHEGADA NO CENTRO DE INFORMAÇÕES: 45
AS SEVÍCIAS: 48
CONTRADIÇÕES E QUESTIONAMENTOS 50
CAPÍTULO 4 ? MEMÓRIA SOCIAL DA REPRESSÃO 52
REFLEXÃO 52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 56


INTRODUÇÃO
No período de pré-estruturação deste trabalho acadêmico fui grandemente impressionado pelo impacto que a tomada de poder e a instauração do Estado de Exceção causaram à sociedade brasileira como um todo. Através do estímulo do próprio curso de licenciatura, emulando o aluno à busca do saber, estive em contato com literatura específica do período, e assisti a dramatizações cinematográficas que retratavam essa fase de nossa história nacional, de forma casual e quase que como acidental. Ao perceber melhor a dimensão dos eventos desencadeados pela tomada de poder entre 1964 e 1985, fui levado a refletir com muita intensidade a respeito de algumas questões fundamentais levantadas sobre os efeitos da coerção em longo prazo deixados como legado à sociedade brasileira.
Para que tenhamos condições de compreender a estrutura e a proposta deste trabalho, precisamos partir da premissa que jamais teremos condições de entender satisfatoriamente um evento ou um agrupamento de eventos enquanto não dedicarmos algum esforço para visualizar a cadeia de circunstâncias que possibilitou a montagem do arcabouço estrutural do período em questão.
CAPÍTULO 1: O CONTEXTO HISTÓRICO QUE LEVOU AOS EVENTOS DOS DIAS 31 DE MARÇO E 1º DE ABRIL DE 1964
Sem uma abordagem concernente à construção da Doutrina de Segurança Nacional, a compreensão a respeito do próprio tema deste trabalho, ou do período proposto para esta análise ficaria seriamente comprometida. A Doutrina de Segurança Nacional está imbricada, sobreposta à gênese do próprio golpe de 1964. Certamente a tomada de poder pelos militares nada mais foi do que a revelação, a prática e execução de uma estrutura preposta aos eventos daquele ano. Qual foi o motivo central que levou as Forças Armadas Brasileiras a articular uma manobra de tal envergadura? De excertos da Escola Superior de Guerra e de seu maior teórico, o General Golbery do Couto e Silva espera-se solver as duas questões acima levantadas.
Serão investigados alguns aspectos do governo de João Goulart, que auxiliarão a esclarecer vários quesitos da preparação do momento histórico do golpe. As considerações se iniciam com a renúncia de Janio Quadros, em agosto de 1961, fato que desencadeou uma reação de circunstâncias até a efetivação do ex-vice-presidente no cargo oficial à frente de seu país. Em sua proposta de governo, lançada em meados de 1963, Jango oferece um pacote de medidas chamado Plano Trienal, cujo conteúdo causou muita polêmica, desestabilizando seu governo. Eram as chamadas Reformas de Base, as quais, ao serem lançadas marcaram o princípio da cadeia de eventos fundamentais que evoluíram para o golpe militar. A análise desses eventos está na proposta deste trabalho, e serão elencados de acordo com sua ordem temporal. No encerramento do capítulo, o golpe em si é analisado num aspecto mais descritivo, em ordem cronológica, com fins elucidativos. São colhidas algumas opiniões de civis de certa projeção social, testemunhas do evento, declarando seus sentimentos, opiniões e análises pessoais sobre o dia 1º de abril de 1964.
CAPÍTULO 2: O ATO INSTITUCIONAL N° 5 E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA OS OPOSITORES DO REGIME MILITAR
Será feita uma abordagem crítica com respeito ao papel dos atos institucionais, promulgados pelo Estado de Exceção. Qual o motivo que pode elucidar a existência desses decretos? Onde está a origem desses decretos? Que papel cumpriram no alvorecer da epopeia militar no Brasil? De todos os atos, o quinto, conhecido como AI-5 teve um impacto surdo sobre os opositores do Regime Militar. Quais foram suas consequências? Como foram afetados os grupos de oposição? Que tem a tortura que ver com a promulgação desse Ato?
CAPÍTULO 3: A "CUNHA DE PENETRAÇÃO" DAS FORÇAS ARMADAS
Um dos aspectos mais marcantes do período militar foi o emprego da tortura como meio rápido e seguro de se obter informações preciosas. Uma análise detida sobre a jornada do opositor que era pego no exercício de sua clandestinidade se mostra assaz importante para a construção de uma visão mais abrangente do cotidiano do suspeito de subversão, do oficial das forças armadas no exercício de sua autoridade e da subjetividade que envolvia a ambos. Será detalhada a cadeia de eventos que compunha a prisão e detenção do suspeito de ato subversivo e o que ocorria com sua integridade física ao estar sob o poder e tutela do Estado. A estrutura do capítulo conta com testemunhos pessoais de sobreviventes de episódios nos quais seus direitos humanos básicos foram gravemente desrespeitados.
CAPÍTULO 4: MEMÓRIA SOCIAL DA REPRESSÃO
A Ditadura Militar foi oficialmente desfeita em 1985. De então para cá quais foram as contribuições sociais que nos foram entregues pelo Regime? As contribuições da Dra. Soraia Ansara (PUC-SP) foram imprescindíveis para as reflexões acima bem como para a conclusão do capítulo em questão. O governo militar nos legou a influência de um regime ditatorial e repressivo, marcas negativas de um período cerceador e amordaçante. Na visão de ANSARA, recebemos da mesma forma, um excelente legado dos militares: o aprendizado da prática de resistência dos movimentos sociais.

CAPÍTULO 1 ? O CONTEXTO HISTÓRICO QUE LEVOU AOS EVENTOS DOS DIAS 31 DE MARÇO E 1º DE ABRIL DE 1964
Neste capítulo iremos refletir sobre o contexto que levou à construção da Doutrina de Segurança Nacional. Analisaremos alguns aspectos da fase preparatória do golpe de Estado, observando detalhes importantes do governo de João Goulart e os eventos de 31 de março e 1º de abril de 1964.
A CONCEPÇÃO DA DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL
Um dos principais motivos que preparou o contexto histórico necessário para a ocorrência do Golpe Militar de 31 de março e 1º de abril de 1964 foi o grau de importância que a Doutrina de Segurança Nacional teve para os altos escalões das Forças Armadas nos anos que antecederam à tomada de poder.
Nos discursos militares, já em 1930, a expressão segurança nacional era presente nas falas do General Góes Monteiro. De acordo com seu raciocínio o Estado deveria "estabelecer, em bases sólidas, a segurança nacional". Na realidade, a conceituação mais atualizada do que vem a ser a Segurança Nacional nos moldes militares pós-1964 começa a ser trabalhada após a 2ª Grande Guerra. Porém, na década de 30 do século XX constata-se uma preocupação dos militares brasileiros em formar uma mentalidade que considere os interesses da Pátria superiores a qualquer coisa.
Margaret Crahan identificou as origens da ideologia de segurança nacional na América Latina já no século 19, no Brasil, e no início do século 20, na Argentina e no Chile. [...] Com o advento da guerra fria, elementos da teoria da guerra total e do confronto inevitável das duas superpotências incorporaram-se à ideologia da segurança nacional na América Latina. A forma específica por ela assumida na região enfatizava a ?segurança interna?, face à ameaça de ?ação indireta? do comunismo. Desse modo, enquanto os teóricos americanos da segurança nacional privilegiavam o conceito de guerra total e a estratégia nuclear, [...] os latino-americanos preocupados com o crescimento de movimentos sociais da classe trabalhadora, enfatizaram a ameaça da subversão interna e da guerra revolucionária.
Nas décadas anteriores ao Golpe, houve uma aproximação entre o Brasil e os Estados Unidos, devido à 2ª Grande Guerra (1939-1945), onde os brasileiros lutaram sob o comando dos norte-americanos. Ficou preparado o contexto para a formação de uma parceria operacional que progrediu nos anos subsequentes, gerando unidade de doutrina, treinamento de contingentes e íntima ligação ideológica.
A Doutrina de Segurança Nacional foi formulada a partir de uma teoria de definição dos mais variados tipos de guerra: A Guerra Total é definida a partir da compreensão do alto poder destrutivo das armas atômicas e da impossibilidade dos norte-americanos e soviéticos travarem ativamente uma guerra, pela provável destruição completa das duas nações. Em face do iminente risco, ambos os blocos medem suas capacidades de conquistar e controlar determinados territórios e áreas. Nesse caso entra em cena o jogo de ameaças mútuas conhecido como Guerra Fria. A Guerra Clássica ou Tradicional é uma guerra de agressão externa deflagrada entre Estados nacionais, baseada na resposta de uma das partes a um ataque externo. É uma guerra de ataque e defesa, onde há um inimigo comum externo e a necessidade de união interna da população para combater o inimigo identificado. A Guerra Revolucionária é de agressão indireta, havendo a possibilidade de conflito armado no interior de um país entre parcelas de sua própria população.
De acordo com o Manual Básico da Escola Superior de Guerra Brasileira, a maior preocupação na América Latina precisa ser focada no risco da Guerra Revolucionária . "A União Soviética, de acordo com esta visão, considera a guerra revolucionária a maneira mais eficaz de levar a efeito seu próprio destino imperial, que depende do controle dos países do Terceiro Mundo".
Para que um Estado possa implantar um aparato de defesa de tal envergadura como o que é exposto no Manual Básico da ESG, torna-se indispensável um progressivo desenvolvimento econômico. Esse desenvolvimento é previsto na ideologia de segurança nacional de acordo com a visão do General Golbery. Conforme seu ponto de vista, a maior parte da riqueza mineral do país está na região centro-oeste e norte. Deve haver uma política de povoamento, servindo como "tampão" a essas vias extremas do país, dificultando a penetração estrangeira pelos locais mais longínquos da nação. Deve haver uma preocupação mais intensa com o desenvolvimento econômico dessas áreas, para que outros grupos migrantes possam ser atraídos para elas. O objetivo principal do desenvolvimento econômico das áreas periféricas não é elevar o nível de vida da população, e sim aumentar aos olhos da geopolítica internacional a capacidade de atrair capital e interesses da iniciativa privada estrangeira em commodities.

JOÃO GOULART E O CONTEXTO DE 31 DE MARÇO DE 1964
O período compreendido entre sete de setembro de 1961 e trinta e um de março de 1964 foi o do exercício da presidência da República do Brasil pelo Presidente João Belchior Marques Goulart, conhecido desde a infância pelo apelido de Jango. Nas eleições de 1960 fora eleito vice-presidente ao lado de Janio Quadros. Em 25 de agosto de 1961,
Enquanto João Goulart realizava uma missão diplomática na República Popular da China, Janio Quadros renunciou ao cargo de Presidente. [...] A renúncia de Jânio criou uma grave situação de instabilidade política. Jango estava na China e a Constituição era clara: o vice-presidente deveria assumir o governo. Porém, os ministros militares se opuseram à sua posse, pois viam nele uma ameaça ao país, por seus vínculos com políticos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Apesar disso, não havia unanimidade nas altas esferas militares sobre o veto a Jango.
Jango retornou da China e dirigiu-se a Montevidéu, capital do Uruguai, para aguardar o impasse entre os parlamentares do Congresso Nacional (que apoiavam a posse do vice-presidente) e os ministros militares (que se opunham à posse). A irredutibilidade dos militares levou o congresso a entregar uma proposta conciliatória: a adoção do Regime Parlamentarista, onde a maior parte da voz de comando ficaria com a figura do Primeiro Ministro (na época, Tancredo Neves, do PSD de Minas Gerais, ministro do governo Vargas).
A instabilidade política gerada pela renúncia de Jânio Quadros e a posse de Jango perdurou nos anos seguintes devido ao lançamento do projeto do Plano Trienal, um conjunto de medidas que deveria sanar os problemas estruturais do país. Entre as metas pretendidas pelo plano, a área econômica foi privilegiada com base na meta de controle da inflação e de melhoria de captação de recursos externos a serem empregados no próprio país, ou seja, a remessa de lucros das multinacionais seria severamente controlada, para que a maior parte dos proventos fosse usada aqui. O plano trienal previa a continuidade e o melhoramento da política desenvolvimentista , que já vinha sendo praticada no país desde o governo JK (Juscelino Kubitschek, presidente do Brasil, de 1956 a 1961). Dentro das metas do plano trienal, a maior captação de recursos tinha o objetivo de prover meios para implantar outro aspecto do plano: as Reformas de Base, medidas de caráter nacionalista que previam uma maior interferência do governo na economia e na área social. Entre as metas das reformas estava previsto:
 O direcionamento de 15% da renda produzida no Brasil para a educação. As escolas particulares deveriam ser fechadas;
 Reforma educacional: visava combater o analfabetismo com a multiplicação nacional das pioneiras experiências do Método Paulo Freire . O governo também se propunha a realizar uma reforma universitária e proibiu o funcionamento de escolas particulares. Foi imposto que 15% da renda produzida no Brasil seria direcionada à educação.
 O imposto de renda seria proporcional ao lucro pessoal;
 Reforma agrária: terras com mais de 600 hectares seriam desapropriadas e redistribuídas à população pelo governo. Neste momento, a população agrária era maior do que a urbana.
 Reforma urbana: foi estipulado que as pessoas que tivessem mais de uma casa poderiam ficar com apenas uma; as demais seriam doadas ao Estado ou vendidas a preço baixo.
A proposta das Reformas de Base causou forte impacto na estrutura política do Brasil, principalmente no Congresso, que não anuiu ao Plano Trienal. As Reformas de Base eram uma antiga exigência do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ao aderir a essa solicitação num momento delicado de nossa história, onde o país se tornava cada vez mais polarizado entre a direita e a esquerda, Jango acabou desagradando os dois lados.
O então presidente Goulart recebia críticas, tanto da direita que o chamava de "inimigo do capitalismo" ou "fomentador da luta de classes", quanto da esquerda que ansiava por reformas mais profundas. Em depoimento, Aldo Arantes, ex-presidente da UNE no período, afirma que a burguesia e as elites "não engoliam nem as limitadas reformas de base de Jango".
Além dos obstáculos de cunho ideológico, o mandato de Jango sofreu forte represália e embargo da ala militar que idealizou a Doutrina de Segurança Nacional, começando por influenciar o Congresso até a articulação do golpe de estado que derrubou o presidente.
É nesse contexto que acontecem três episódios que desencadearam o golpe, no relato posterior dos conspiradores: o comício na Central do Brasil, no Rio, a rebelião dos marinheiros e a reunião dos sargentos no Automóvel Clube ? os dois últimos vistos como claro estímulo à violação da hierarquia, base da vida nos quartéis. Para Gláucio Soares (PhD em sociologia, atual colunista do jornal O Globo), foram fatos que levaram os que estavam comprometidos com o golpe à ação e estimularam os indecisos ou neutros a apoiar os golpistas, mesmo sem participar.
O GRANDE COMÍCIO NA CENTRAL DO BRASIL, RJ
Concentração realizada no Rio de Janeiro no dia 13 de março de 1964, em frente à estação ferroviária Central do Brasil, no Rio de Janeiro, o Comício das Reformas, também conhecido por Comício da Central, reuniu cerca de 150 mil pessoas, incluindo membros de entidades sindicais e outras organizações de trabalhadores, servidores públicos civis e militares, estudantes etc. Tinha por meta demonstrar a decisão do governo federal de implantar as reformas de base e defender as liberdades democráticas e sindicais. Às 15 horas do dia 13 de março, uma sexta-feira, começaram a chegar à Central do Brasil militantes sindicais, estudantes e delegações de mulheres. Quinze oradores precederam o presidente da República. O mais aplaudido foi Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul e deputado federal pelo PTB carioca, que exortou o presidente a "abandonar a política de conciliação" e instalar "uma Assembléia Constituinte com vistas à criação de um Congresso popular, composto de camponeses, operários, sargentos, oficiais nacionalistas e homens autenticamente populares".
Goulart iniciou seu discurso às 20 horas, tendo falado por mais de uma hora. Inicialmente atacou os chamados "democratas", cuja "democracia do anti-povo, da anti-reforma e do anti-sindicato" seria a "a democracia dos monopólios nacionais e internacionais". Mais adiante, mencionou a necessidade da revisão da Constituição de 1946, "porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada" e da ampliação da democracia, "colocando fim aos privilégios de uma minoria". Referindo-se ao decreto da Superintendência da Reforma Agrária (Supra), que havia assinado no palácio das Laranjeiras , frisou que o texto ainda não era a reforma agrária, pois "reforma agrária feita com pagamento prévio do latifúndio improdutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária", mas sim "negócio agrário, que interessa apenas ao latifundiário".
Com relação à Petrobrás, afirmou que assinara pouco antes o decreto de encampação de todas as refinarias particulares, que passavam a pertencer ao patrimônio nacional. Informou também que iria enviar ao Congresso mensagem tratando da reforma eleitoral, baseada no princípio de que "todo alistável deve ser também elegível", e da reforma universitária "reclamada pelos estudantes". Denunciou por fim a existência de "forças poderosas (...) que ainda permaneciam insensíveis à realidade nacional" e que poderiam vir a ser responsáveis pelo derramamento de sangue, "ao pretenderem levantar obstáculos à (...) emancipação". No dia seguinte, Jango assinou o decreto tabelando o preço de aluguéis e imóveis em todo o território nacional e desapropriando imóveis desocupados por utilidade social.
As repercussões do comício foram imediatas e sentidas em todo o país. Manifestações antigovernamentais ocorreram em São Paulo e Belo Horizonte, enquanto a União Democrática Nacional (UDN) e parte do Partido Social Democrático (PSD) e outros partidos reclamavam o impedimento de Goulart. Carlos Lacerda, governador da Guanabara, considerou o comício "um ataque à Constituição e à honra do povo" e o discurso do presidente "subversivo e provocativo".
A REVOLTA DOS MARINHEIROS
Nome com que ficou conhecido o episódio originado pela resistência dos marinheiros, reunidos na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro no dia 25 de março de 1964, à ordem de prisão emitida pelo ministro da Marinha, Sílvio Mota. Os marinheiros realizavam uma reunião comemorativa do segundo aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, entidade considerada ilegal.
Dois mil marinheiros e fuzileiros navais liderados por José Anselmo dos Santos, o "cabo" Anselmo, compareceram à sede do sindicato naquele dia, a despeito da proibição do ministro. O ato contou com a presença de representantes dos sindicalistas e líderes estudantis, e além do deputado Leonel Brizola e do marinheiro João Cândido, líder da Revolta dos Marinheiros de 1910. Na abertura da solenidade, o cabo Anselmo afirmou a disposição da associação de lutar a favor das "reformas de base, que libertarão da miséria os explorados do campo e da cidade, dos navios e dos quartéis". O ministro Sílvio Mota emitiu ordem de prisão contra os principais organizadores do evento e enviou um destacamento de fuzileiros navais ao local da reunião. Apoiados pelo seu comandante, o contra-almirante Cândido Aragão, os fuzileiros, em lugar de prender os marinheiros, aderiram aos revoltosos, permanecendo na sede do Sindicato dos Metalúrgicos.
A adesão dos fuzileiros evidenciou a polarização existente no interior das forças armadas em torno do apoio ao presidente Goulart. A posição de Aragão, aliada à ordem emitida em seguida por Goulart proibindo as tropas de invadir o Sindicato dos Metalúrgicos, provocou o pedido de demissão de Sílvio Mota, imediatamente substituído pelo almirante Paulo Mário Rodrigues. No dia 26 de março, o ministro do Trabalho Amauri Silva conseguiu um acordo com os marinheiros, que abandonaram o prédio do sindicato e foram em seguida presos e conduzidos a um quartel, em São Cristóvão. Horas depois, contudo, foram anistiados por Goulart. Essa anistia foi muito criticada pela alta oficialidade, agravando ainda mais a crise na área militar.
O DISCURSO AOS SARGENTOS NO AUTOMÓVEL CLUBE, RJ
Às vésperas do golpe, no dia 30 de março de 1964, o presidente comparece ao grupo rebelado de suboficiais e sargentos reunido no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. Durante o governo de Goulart (1961-1964), soldados, marinheiros e sargentos iniciaram uma luta para conseguir representação parlamentar, que lhes era proibida pela Constituição de 1946. Líder do Comando Nacional dos Sargentos, Antônio Garcia Filho foi escolhido pela categoria para concorrer a um mandato de deputado federal pela Guanabara, na legenda do Partido Trabalhista Brasileiro, em outubro de 1962. Único sargento eleito e empossado participou da luta de seus colegas de farda para garantirem os mandatos dos demais sargentos eleitos e que tinham sido cassados pelos tribunais regionais eleitorais. Em setembro de 1963, quando o Supremo Tribunal Federal votou contra a elegibilidade dos sargentos, foi deflagrada a Revolta dos Sargentos de Brasília, que atingiu a Marinha e a Aeronáutica, mas que acabou sem maiores proporções pela não-adesão de efetivos do Exército.
Sem dúvida, o problema específico que fez grassar a insurreição entre os militares de baixa patente foi a restrição política imposta pelos altos escalões do exército aos suboficiais ? a restrição ao direito de elegibilidade. A presença do presidente num evento como esse referendava a postura dos revoltosos. Sem economizar no tom do discurso, Jango foi direto e falou sobre a possibilidade de um golpe. "Não admitirei o golpe dos reacionários. O golpe que nós desejamos é o golpe das reformas de base, tão necessárias ao nosso país. Não queremos o Congresso fechado. Queremos apenas que os congressistas sejam sensíveis às mínimas reivindicações populares", disse.
Na sequencia de sua palestra, o presidente disse que
"o momento que estamos vivendo exige de cada brasileiro o máximo de calma e de determinação, para fazer face ao clima de intrigas e envenenamentos, que grupos poderosos estão procurando criar contra o governo, contra os mais altos interesses da Pátria e contra a unidade de nossas Forças Armadas. Para compreender o esquema de atuação desses grupos que tentam impedir o progresso do país e barrar a ampliação das conquistas populares, basta observar que são comandados pelos eternos inimigos da democracia, pelos defensores dos golpes de estado e dos regimes de emergência ou de exceção".
O GOLPE
Na manhã de 31 de março de 1964, o país acordou sem imaginar que estavam às vésperas do início do golpe militar que empossaria os militares no governo pelo período de 21 anos de comando ilegal e ilegítimo.
O presidente João Goulart atendeu ao telefone. Era manhã de 31 de março e ele estava no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Do outro lado da linha, falava o senador Arthur Virgílio. "Presidente, o Almino (Affonso, líder do PTB, o partido do presidente) está dizendo que há movimentação de tropas." Goulart consultou seu chefe do Gabinete Militar, general Assis Brasil. "O Mourão deslocou as tropas em exercício militar", respondeu o general. O presidente então voltou ao telefone. "Isso é coisa da oposição que quer tumultuar", disse. Satisfeitos com a resposta, Virgílio e Affonso tomaram um uísque para comemorar. Ao longo do dia, as notícias só fariam colocar água na bebida dos dois políticos. Começava a ficar claro que Mourão (o general Olympio Mourão Filho) não estava liderando simples jogos militares. Suas tropas marchavam para o Rio de Janeiro com o objetivo de derrubar o governo. Nas bancas da cidade ? que apesar de não ser mais a capital, continuava sendo o termômetro das ações políticas do país e sede de seu comando militar ?, o jornal Correio da Manhã dava destaque em sua primeira página para um editorial intitulado "Basta!" ? nenhum brasileiro precisava de mais informações para saber que o destinatário da mensagem era o presidente. Entre os autores do texto, os jornalistas Carlos Heitor Cony e Otto Maria Carpeaux. O poder de João Goulart estava por um fio. Pouco antes do meio-dia, Goulart recebeu, por telefone, o pedido de demissão do ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro. Era mais um que aderia aos golpistas. Jango deixou o Rio de Janeiro e voou para Brasília. "Isso aqui está uma ratoeira", afirmou para um assessor. Estava mesmo. Logo após o presidente Goulart deixar a cidade, o I Exército, que agrupava todas as tropas do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo, aderiu ao levante. A essa altura, as tropas rebeladas provavelmente já eram mais numerosas e estavam em melhor situação de combate do que as legalistas. Para isso, elas nem sequer precisaram participar de uma troca de tiros. Mourão e Luiz Carlos Guedes, os dois militares que iniciaram o golpe, já não comandavam mais o movimento. Escondido num apartamento em Copacabana, o novo líder, marechal Castello Branco, "confiscou" a linha do vizinho e fez do telefone sua arma de combate. Ganhava praticamente uma nova adesão para cada chamada. Perto das 18 horas, deixou a clandestinidade e começou a circular livremente pelo Rio de Janeiro. A cidade estava dominada. Às 20 horas, ele e o general Arthur da Costa e Silva encontraram-se no quartel-general para discutir a divisão do butim de guerra, ou seja, quem comandaria o país dali para frente. Castello ficaria com a presidência. Costa e Silva, um até então desconhecido, seria o comandante do Exército. Cargo que, dali para frente, seria cada vez mais relevante. Na capital federal, Jango não encontrou nada que o fizesse acreditar que poderia continuar no cargo. Com o clima de fim de governo, embarcou para o Rio Grande do Sul perto das 23 horas. A viagem serviu para o Congresso Nacional considerá-lo deposto, mesmo que isso significasse passar por cima da Constituição, que declarava vago o cargo apenas quando o presidente deixasse o país. Ranieri Mazzilli, presidente do Congresso e sucessor legal de Jango, foi imediatamente empossado no Palácio do Planalto. A cerimônia começou enquanto Darcy Ribeiro ainda estava em seu gabinete e no momento em que o avião que levou Goulart pousava em Porto Alegre. Era inconstitucional, portanto. Mas isso não representou problema algum. Os tanques que guardavam o palácio presidencial pela manhã haviam deixado o local, atravessado o centro do Rio e estacionado à frente do Palácio Guanabara, dispostos a proteger o governador Carlos Lacerda, inimigo político de Jango e conspirador de primeira hora. Lacerda, ao comentar o desfecho do golpe, declarou entre lágrimas na televisão: "Obrigado, meu Deus, muito obrigado". O Brasil estava sob nova direção.
Trinta e um de março entrou para a História como o dia de oportunidades para os militares, pois se tornou realidade aquilo que já vinha sendo preparado e arquitetado, conforme reflexões já feitas anteriormente neste trabalho. O dia 1º de abril abre novos horizontes para a nação. Mas que tipo de horizontes? Horizontes truculentos, tanto para as liberdades individuais, quanto para instituições importantes, como a UNE (União Nacional dos Estudantes), o próprio PCB (Partido Comunista Brasileiro) e outras.
Alguns deixaram seu testemunho pessoal a respeito dos acontecimentos importantes do dia 1º de abril, quando o "golpe" foi efetivado.
Fernando Gabeira, hoje deputado federal:

A minha primeira reação foi de resistência. Saí imediatamente do Jornal do Brasil, onde trabalhava, e fui para a Cinelândia, no Rio, onde se organizava um protesto contra o golpe. Eu tinha claro que aquilo era um golpe da direita e que a ditadura duraria anos se não lutássemos contra ela. Na Cinelândia, houve um choque com tropas militares, que atiraram em nós, e resolvi voltar para a zona sul, onde morava. Aí me deparei com a Marcha da Vitória, uma passeata das pessoas que defendiam a ditadura. Comecei a me preocupar com um amigo que morava na mesma república que eu e havia ido até os fuzileiros navais para pegar as armas prometidas pelo almirante Cândido Aragão, contrário ao golpe. Não tinha arma nenhuma. Por sorte, esse amigo nunca foi preso.

Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo:

Em 1964, eu lecionava em Petrópolis (RJ). Estava lá no 1º de abril. Acompanhei as notícias pelo rádio e, no fim da manhã, tive a impressão de que a situação era gravíssima e poderia haver uma guerra civil. Peguei então um jipe e parti para ao encontro das tropas de Minas. Coloquei a batina para me deixarem passar e cheguei até um local perto de Juiz de Fora. Ali, os soldados disseram-me que, como bons mineiros, não pretendiam dar sequer um tiro. Na época, eu e todos da Igreja pensávamos que Jango trazia a desordem ao país e não queríamos isso. Por isso, ficamos ao lado da nova ordem que se instaurava no país. Não que quiséssemos uma ditadura, mas também não queríamos que a desordem continuasse.


José Dirceu, ministro da Casa Civil:

O que mais me chamou a atenção naquele dia foi ver os estudantes do Mackenzie, em São Paulo, em passeata pelo centro da cidade. Eu trabalha num escritório na Praça da República e era estudante secundarista. Vi de cima do edifício onde trabalhavam aqueles representantes da classe alta paulista, filhos de ricos, comemorando a derrubada de um regime constitucional. Naquela época, estava a ponto de ser eleito presidente da UNE, que se tornou rapidamente o maior símbolo de resistência à ditadura. Na noite de 1º de abril de 1964, quase não dormi. A expectativa e um terrível mal-estar me incomodaram madrugada afora, não conseguia relaxar.

Christiane Torloni, atriz global:

Eu tinha só sete anos, mas me lembro de tudo que ocorreu no 1º de abril daquele ano. Meus pais eram artistas, gente politizada, interessada nos rumos do país, então, política era um tema que se ouvia na minha casa. No dia do golpe, um clima tétrico, de medo, sofrimento e terror tomou conta do nosso país e das casas das pessoas que sabiam do que se tratava aquilo. Foi como se o mundo tivesse acabado. Mesmo criança, senti bem isso. No Rio, os tanques invadiram as ruas, ouviam-se tiros. Logo depois, os meus pais começaram a se preocupar com os amigos, gente que podia ser presa a qualquer momento. Foi um dos dias mais impactantes de toda a minha vida. Em seguida, instaurou-se a censura e assuntos antes corriqueiros, como se comentar o jornal do dia, viraram coisa de subversivo.  
CAPÍTULO 2 ? O ATO INSTITUCIONAL N° 5 E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA OS OPOSITORES DO REGIME MILITAR
Neste capítulo refletiremos sobre o contexto histórico que levou à criação dos Atos Institucionais. Analisaremos as implicações dos Atos Institucionais Nº 1 e 5, e as conseqüências diretas do Ato Institucional Nº 5 sobre os opositores do regime.
OS ATOS INSTITUCIONAIS
Foram decretos promulgados imediatamente e durante os anos após o Golpe Militar de 1964 no Brasil. Serviram como mecanismos de legitimação e legalização das ações políticas dos militares, estabelecendo para eles próprios diversos poderes extra-constitucionais. Os Atos Institucionais foram mecanismos projetados para criar um simulacro de legalidade para o regime de exceção dos militares. Sem este mecanismo, a Constituição de 1946 tornaria inexecutável o regime militar, daí a necessidade de substituí-la por decretos mandados cumprir.
Todavia, a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento efetivamente prevê que o Estado conquistará certo grau de legitimidade graças a um constante desenvolvimento capitalista e a seu desempenho como defensor da nação contra a ameaça dos "inimigos internos" e da "guerra psicológica".
No dia 9 de abril de 1964 o Ato Institucional N° 1 é assinado, somente oito dias depois do golpe. O preâmbulo indica a tentativa de constitucionalizar e justificar o movimento revolucionário:
Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo (...). Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República (...). Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes constantes do presente Ato Institucional.

Refletindo sobre a instauração do Estado de Exceção no Brasil, percebemos a necessidade por parte das Forças Armadas Brasileiras de legitimar o governo em exercício, para que houvesse respaldo ao seu discurso quando pregava a restituição da democracia no país.
Por meio do AI-1, o regime militar pôde cassar e suspender os direitos políticos de muitos cidadãos contrários à implantação da ditadura que estava se iniciando. O mecanismo do AI-1 era simples: eliminava a oposição que porventura poderia a vir enfrentar o regime, dando ao Presidente poderes para escolher os congressistas que ficariam na casa, e estes o elegeriam. Dessa forma, ganhava o regime uma suposta legitimidade democrática frente à opinião pública internacional, já que existiria uma democracia, onde o presidente seria eleito por um colégio eleitoral, composto de representantes escolhidos pelo povo.
O artigo 3º dava ao Presidente da República o poder de introduzir emendas constitucionais, limitando a 30 dias (posteriormente a 40) o prazo para debate no Congresso. (...) O artigo 4º criava a figura legislativa do decurso de prazo, pelo qual projetos considerados "urgentes" pelo Executivo seriam automaticamente aprovados se o Congresso não decidisse em contrário em prazo de 30 dias. (...) O artigo 5º outorgava ao Executivo competência exclusiva em legislação financeira ou orçamentária. O Artigo 6º transferia do Congresso ao Executivo o poder de decretar Estado de Sítio, reservando ao primeiro apenas o direito de rejeitar ou aprovar a iniciativa em período determinado. (...) O Artigo 7º suspendia por seis meses as garantias constitucionais e legais de vitaliciedade e estabilidade. Desse modo, o Estado (...) podia demitir, dispensar, pôr em disponibilidade, aposentar, transferir para a reserva ou reformar burocratas civis ou pessoal militar. Este artigo facilitou os expurgos na burocracia de Estado e manteve sob controle os setores militares que discordavam da nova política ou estavam ligados ao período anterior. Todos os funcionários públicos de nível municipal, estadual ou federal eram abrangidos por este artigo.

O DIA 13 DE DEZEMBRO DE 1968 E A LUTA ARMADA
O ano de 1968, o quarto após a instauração do regime de exceção, foi o mais intenso em manifestações populares de protesto contra as Forças Armadas. Do assassinato do estudante Edson Luis na manifestação do restaurante "O Calabouço" , no Rio, até à prisão em massa dos estudantes do Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes) em Ibiúna, foram oito meses de manifestações e lutas praticamente ininterruptas.
Embora não houvesse conexão direta ou contigüidade entre ambas, as manifestações estudantis e os grupos guerrilheiros têm a mesma fonte originadora: o golpe de Estado de 1964. Formaram desta maneira, estratégias distintas de resistência democrática: o movimento estudantil foi muito feliz na sua forma de protesto, levando às ruas multidões que de outra forma não seriam mobilizadas.
IMPLICAÇÕES DO AI-5
Na apresentação dos 12 artigos, podemos concluir sem esforço que esse Ato Institucional promoveu a castração dos direitos básicos de cidadania garantidos pela constituição de 1946, como o habeas corpus, a plena liberdade de voto, o direito pleno de ir e vir, o direito de greve e livre associação sindical, entre outros . A promulgação desse Ato dava poderes totalitários ao Estado para, por exemplo, efetuar a cassação sumária de mandatos políticos, a supressão dos direitos políticos do cidadão considerado suspeito ou culpado de crime contra a "Segurança Nacional", entre outras medidas draconianas. Como se tudo isso não bastasse, ainda estava previsto no artigo 5º a vigilância da liberdade, a proibição de freqüentar determinados lugares e determinação arbitrária de domicílio. Essas medidas poderiam ser tomadas livremente pelo Ministério da Justiça, sem nenhuma necessidade de apreciação pelo Poder Judiciário.

Apesar da implantação em 1964 de um governo de força, somente a partir do AI-5 é que a tortura se tornou uma política oficial de Estado. A vitória da chamada "linha dura", o golpe dentro do golpe instituíram o terrorismo de Estado que utilizou sistematicamente o silenciamento e o extermínio de qualquer oposição ao regime. O AI-5 inaugurou também o governo Médici (1969-1974), período em que mais se torturou em nosso país.

Chegamos a um consenso, após analisar o período em questão, que os Atos Institucionais, principalmente o quinto, deram ao governo de exceção as ferramentas para a implantação de uma política altamente controladora, dotando-o de certa onipresença, cerceando e sufocando o cotidiano do cidadão brasileiro com o miasma do terror. O suspense em relação a um levante interno originado pela esquerda deixou os escalões militares de sobreaviso, e estavam dispostos a ir até o fim para sufocar tal ameaça antes mesmo que tivesse tempo para se estruturar.

Isto por um acaso significa que o AI-5 perdeu relevância dentro da historiografia nacional? Não, mas indica que o momento deva ser considerado um marco por caracterizar-se não pelo início, mas pela institucionalização e sistematização da tortura como recurso adotado pelo Estado para garantir a segurança. Este setor, que se tornou hegemônico, valorizava a repressão, o nacionalismo, a hegemonia militar e, por incrível que pareça, possuía uma perspectiva social mais aguçada que outros segmentos envolvidos no março de 1964. Foi um grupo que procurou levar às últimas conseqüências o combate à ameaça comunista que muitos deles tinham como extremamente crível.

O dia 13 de dezembro de 1968 foi um marco para todas as classes sociais do Brasil. Para muitos significou simplesmente um dia comum, sem qualquer subjetividade em especial; para outros significou a abertura de uma nova época: a do silenciamento, da delação, da fuga, da negação da própria identidade, da clandestinidade, enfim.
Alguém deixou sua impressão pessoal sobre aquele dia.
Alfredo Sirkis, ganhador do Prêmio Jabuti, o mais importante prêmio literário do Brasil, devido ao livro "Os Carbonários", no qual apresenta sua saga como estudante revoltado contra a repressão, em seguida como "subversivo" de esquerda, quando esteve clandestino, até sua fuga para fora do país. Sirkis relata o que se passou entre o seu grupo de amigos naquele dia:

"Foi no dia 13 de dezembro de 1968 a formatura-livre dos alunos de 4º ginasial e 3º colegial, promovida pelo grêmio como no ano anterior, foi realizada no Colégio São Vicente de Paulo, sob a asa protetora dos padres progressistas.
(...) A grande estrela da noite era o Franklin, agora presidente do DCE, que acabava de sair da prisão, por habeas corpus do STF, depois de ter dançado, meses antes, no malfadado congresso da UNE, em Ibiúna.
Compridão, a barba por fazer, as pernas longuíssimas cruzadas debaixo da mesa, fez um discurso eletrizante. A situação política era braba, sim senhores.
? Podem arrancar uma flor, muitas flores, mas não deterão a primavera.
(...) Eu ouvia atento, quando um companheiro da segurança me veio cochichar ao ouvido:
? Negão... Pessoal escutando rádio diz que tá tendo golpe...
Mandei-oele saber de detalhes. Voltou dez minutos mais tarde. Dera no rádio a decretação do Ato Institucional n° 5.
(...) Uma coisa era certa. Costa e Silva ia abrir as pernas para a linha dura que galgava o poder. Havia versões de que este xeque ao rei, no Planalto, coincidiria com uma noite indonésia, um massacre de lideranças estudantis, jornalistas e oposicionistas de variada espécie. Sabíamos de fonte segura, que no segundo semestre de 1968, um grupo do PARASAR planejara seqüestrar o Vladimir e outras lideranças estudantis e jogar no mar, de helicóptero".

A ORGANIZAÇÃO DA LUTA ARMADA
Desde o princípio (1964) o regime contou com oposição. Na verdade a oposição sempre foi presente em qualquer tipo de regime. O próprio presidente João Goulart também tinha séria oposição em seu governo, os generais "linha dura" que estavam a levedar o fermento golpista, desestabilizando seu governo.
Começaram, então, a surgir, mesmo que de forma incipiente, alguns grupos de resistência à ditadura, os primeiros a partir dos militares de esquerda, notadamente dos grupos de sargentos e cabos, que esboçaram formas de lutas com base nas armas. O movimento brizolista começou também a se organizar a partir do Sul e, começando a atuar contra a ditadura, tentava mostrar o caminho das armas como uma opção .
A primeira iniciativa de grande porte da luta armada contra o regime partiu do ex-governador gaúcho Leonel Brizola. Após o golpe militar, em 1º de abril de 1964, ele se exilou no Uruguai. Estabeleceu uma conexão estreita com o líder cubano Fidel Castro e criou o Movimento Nacionalista Revolucionário. Mandou guerrilheiros para treinar em Cuba e iniciou um plano de tomada do poder. Em março de 1965, uma coluna organizada pelo ex-coronel Jefferson Cardim partiu da cidade gaúcha de Três Passos rumo ao Mato Grosso. Depois de três dias, chegaram a Cascavel, no Paraná, onde foram dispersos a tiros pelo Exército. Em 1967, Brizola apoiou mais duas iniciativas. Na primeira, na serra do Caparaó, em Minas Gerais, todos os 22 guerrilheiros se renderam sem lutar, em abril. Já no Bico do Papagaio, no atual Tocantins, os 20 militantes debandaram em agosto, quando o organizador do movimento, o jornalista Flávio Tavares, foi preso. Brizola desistiu de tomar o poder. O vácuo deixado por ele foi preenchido por organizações que haviam nascido do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Enquanto o "Partidão", clandestino desde 1947, defendia o combate pacífico à ditadura, a maioria das dissidências queria pegar em armas para iniciar uma revolução. "Todas elas queriam o socialismo", diz Flávio Tavares, que voltou para a luta armada em 1969. Inspirados nas revoluções chinesa e cubana (e na canseira que as tropas americanas estavam levando nos campos do Vietnã), os grupos armados queriam montar guerrilhas rurais, sustentadas pelo dinheiro adquirido em "expropriações" nas cidades.
A possibilidade de resistência armada vinha sendo debatida pelo menos desde 1967. Somente a partir do AI-5 e suas medidas de extrema violência desencadearam o que antes estava apenas em projeto temerário. Em 1969 houve a eclosão da guerrilha urbana e ocorreram os preparativos para a guerrilha rural do Araguaia que nos próximos cinco anos haveria de trazer grandes movimentações das Forças Armadas.
A massa estudantil que se posicionara contra o poder usurpador após os eventos de 1964 fora profundamente impressionada pela guerrilha cubana contra Fulgêncio Batista e pela investida do Che nas plagas bolivianas . Além do mais, o caráter excessivamente truculento da ditadura pós-AI-5 levou os simpatizantes da luta armada a uma decisão definitiva pela forte impressão de que somente esse tipo de resistência poderia desintegrar o governo ilegítimo.
Nas grandes cidades, a guerra não era visível ? não havia batalhões nas ruas. Mas o conflito vinha à tona com freqüência. Assaltos e atentados atribuídos a "terroristas" apareciam em manchetes de jornal, assim como fotos de militantes procurados pela polícia. Qualquer cidadão de classe média podia ser vizinho de aparelhos ? o nome dado a residências que serviam de abrigo para os guerrilheiros. Cedo ou tarde, esses locais acabavam cercados pelas autoridades e invadidos com diferentes graus de violência. As barreiras policiais, os tiroteios nas ruas e as perseguições de automóveis eram comuns. Por mais que a ditadura se empenhasse em esconder o que estava acontecendo, o cheiro de pólvora estava no ar.
A partir do Ato Institucional N° 5 o estilo de vida dos opositores do regime precisou de adequações urgentes. "O povo brasileiro sofreu um dos mais duros períodos de repressão, tortura e perseguição política de toda a história do Brasil. Foram os chamados ?anos de chumbo?, nos quais os militares passaram a impor a Doutrina de Segurança Nacional com toda a força e sem nenhuma ambivalência. (...) No Brasil, a resistência foi organizada por dois caminhos: alguns tomaram as armas para combater um brutal regime de repressão. Outros organizaram, pouco a pouco, dentro das fábricas, no campo, nas igrejas, nas escolas, nas universidades, um imenso movimento popular enraizado nas bases, o qual, finalmente, em 1978 desaguou nas famosas greves dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, liderados por um jovem sindicalista conhecido pelo apelido de Lula".
O fechamento progressivo dos espaços de exercício democrático, a censura à imprensa e aos meios de comunicação, aos artistas e às produções em toda a sua extensão, determinaram o colapso democrático e geraram uma força contrária: a férrea resistência aos ditadores. Para combater os militares, restavam poucas alternativas para os opositores: uma delas foi a clandestinidade política. A clandestinidade não é uma alternativa de luta. Ela foi, no primeiro momento, uma alternativa de defesa da própria vida e das organizações às quais pertenciam os militantes. Imediatamente após, tornou-se uma possibilidade de luta e de resistência política; era uma determinação das organizações e partidos revolucionários. Quem quisesse continuar a pertencer a estes segmentos de luta e às suas orientações deveria, majoritariamente, se tornar clandestino.
O jornalista Alfredo Sirkis, líder secundarista em 1968, aderiu à guerrilha urbana em pleno governo Médici, após a promulgação do AI-5, vivendo bem de perto o drama de ter de "ir se esconder do DOPS".

? Como disse o companheiro: podem podar muitas flores, não podem podar a primavera! Abri de novo o zíper para enfiar mais dois livros comprometedores, que não reparara antes. Por via das duvidas, também o "Guerra e Paz", do Tolstoi, podia parecer um manual de Guerra Psicológica Adversa e Paz falaciosa do comunismo ateu. Então os homis já não tinham apreendido "A Capital" de Eça de Queiroz, por confundir com o homônimo masculino do "subversivo Marques"? Gozei a situação e fiquei zanzando nervosamente pelo quarto. "A policia pode chegar a qualquer momento. Não convém facilitar". Olhando o meu quarto velho de guerra, a cama onde cresci noite após noite, os mil e um objetos que ia deixar para trás. A nevoa de fluidos familiares, neurótico-aconchegantes. O útero no 10º andar da barulhenta artéria do Flamengo. Sumira aquela sensação fulgurante, maravilhosa do sair-de-casa que antegozara, tantas vezes, nas ultimas semanas. A emoção de ir se esconder do DOPS em nome de uma causa mais elevada. Trocar o conforto pequeno-burguês do lar pela misteriosa clandestinidade da luta junto ao povo. Fazer a minha opção de classe sob a escalada da repressão. Mas o antegozo, pleno de predisposições heróicas, se escondera alhures na minha cuca e sentia apenas o cansaço do dia, tenso e abafado. E uma preguiça sem mais tamanho diante da mão de obra que era esconder a papelada numa casa, depois rumar para outra, de uma família desconhecida que devia me abrigar.

Já para Frei Betto, a questão da clandestinidade assumia uma forma de liberdade, ou de simulacro da mesma, fazendo com que os conhecimentos teóricos da filosofia religiosa que seguia assumissem um ar diferente, mais inusitado:
Viver na clandestinidade é como tornar-se invisível para os outros. As pessoas nos vêem, mas não conhecem, e os que conhecem não podem nos encontrar senão por acaso. Como toda situação de completo despojamento, faz-nos sentir mais livres. Trocar de nome dá sensação de vida nova ? só então compreendi por que os institutos religiosos adotavam esse costume ao receber seus noviços. O meu era "Vítor" e exigia-me estar sempre atento para não pensar que chamavam outra pessoa.
Os militantes se dividiam em dois grandes grupos, um para a ação e outro para o apoio. Na equipe da ação ficavam os mais combativos, que pegavam em armas, sabiam atirar, montar explosivos, planejavam assaltos e ações violentas, como assassinatos premeditados. Largavam seus empregos e imóveis e viviam na clandestinidade, em aparelhos ? moradias de fachada. Já as pessoas do apoio mantinham sua vida "normal". Durante o horário do expediente, trabalhavam para pagar suas contas. Nas "horas vagas", fabricavam documentos falsos, preparavam material de propaganda, convenciam pessoas a participar da luta, roubavam carros que seriam utilizados nas ações, abrigavam guerrilheiros em suas casas, conseguiam médicos para atender os feridos, escondiam armas, munição e dinheiro. Mas o risco e o perigo eram reais para todos.
Tornar-se clandestino e permanecer clandestino, durante cinco anos, dez anos ou mais, foi mais do que uma alternativa de sobrevivência, envolveu uma escolha, uma escolha que não era livre, porque era uma escolha dentro de uma situação de catástrofe política. Não é necessário ser clandestino político, na vigência de um regime democrático. Esta alternativa, a da clandestinidade, ocorre dentro de um colapso democrático. Logo, não é uma escolha feita em condições favoráveis de luta política. É feita exatamente em condições desfavoráveis, e por isso não é uma livre escolha e nem uma escolha livre. É uma escolha, no sentido político, determinada pela situação de excepcionalidade do país, e de perseguição declarada pelo poder militar".
A partir de 1969 houve uma combinação de forças, multiplicando o poder repressivo. A exploração econômica, a repressão física, o controle político e a rígida censura, de mãos dadas, conseguiram implantar efetivamente uma atmosfera sufocante, de constante presença sobre a população ? a cultura do medo, agindo em vários setores sociais. O silêncio imposto se tornou parte do cotidiano das massas com a rigorosa censura de todos os veículos de informação e o fechamento de alguns destes. Os estabelecimentos superiores de ensino eram rigorosamente controlados, bem como o teatro, o cinema a TV, os programas de rádio, os periódicos e jornais, e as próprias editoras eram investigadas minuciosamente pelo crivo estatal. Todo material produzido precisava estar de acordo com o padrão militar para ser liberado às massas. Essa pressão governamental fez proliferar um sentimento de desânimo e de conformismo. Na parte menos favorecida da população, que sofria mais diretamente a exploração das grandes empresas multinacionais protegidas pelo golpe militar, houve uma perda generalizada da esperança, e um retraimento, um recolhimento à vida particular. Essa era uma maneira de se esquivar da vingança do "Grande Irmão" militar.
Após um exame mais atento, podemos perceber que a estrutura global daqueles anos era muito diferente da atual. Um em cada três homens vivia, então, num país socialista. Quanto à União Soviética, não só estava de pé, como vinha de humilhar os norte-americanos ao colocar o primeiro homem no espaço. Se a terra era azul, como dissera Yuri Gagarin , o futuro parecia vermelho. A Revolução estava na ordem do dia.
Anos antes, um punhado de jovens guerrilheiros barbudos entrara em Havana, e, algum tempo depois, proclamara a primeira república socialista da América Latina. A lenda do Che Guevara, morto nas selvas bolivianas, corria solta pelo Terceiro Mundo. No Vietnam, um pequeno país de homens pequenos derrotava o mais sofisticado e poderoso exército do mundo. Um vento de contestação soprava pela Europa. Na África, o colonialismo chegava ao fim. Eram tempos de mudança.
Quando a atmosfera revolucionária explorada por Franklin Martins no prefácio acima citado grassou naquele período histórico, é óbvio que instigou os opositores do regime a lançarem mão da luta armada. O conflito durou oito anos, de 1966 a 1974. Apenas 1416 civis pegaram em armas, mas sua ousadia fez a ditadura tremer. No auge dos embates, entre 1968 e 1971, eles assaltaram 154 bancos e carros-fortes. Durante toda a luta, roubaram 3,8 milhões de dólares ? valor que fez da guerrilha brasileira a mais rica do mundo na época. Também realizaram cerca de 40 atentados a bomba, seqüestraram oito aviões comerciais e quatro diplomatas (nunca antes, nem depois, um embaixador seria seqüestrado no Brasil). Um foco de guerrilha fez o Exército levar para a região do Araguaia, no atual Tocantins, 3200 homens em uma única operação. Foi o maior movimento de tropas em território nacional desde a Guerra de Canudos, no fim do século 19. Dentre as organizações clandestinas que optaram pela luta de guerrilha urbana e rural, as quatro principais foram:
ALN (AÇÃO LIBERTADORA NACIONAL): A ALN foi uma organização revolucionária comunista que surgiu no final de 1967, depois da saída de Carlos Marighela do Partido Comunista do Brasil. Ela defendia a ação armada e a guerrilha como instrumentos de ação política. Para sua estruturação, iniciou ações como assaltos a bancos e carros pagadores. A ALN participou do sequestro do embaixador norte americano Charles Burke Elbrick , em setembro de 1969, que foi trocado por 15 presos políticos. Também participou do seqüestro do embaixador alemão Ehrefried Von Hollebem, trocado por 40 presos políticos.
COLINA (COMANDO DE LIBERTAÇÃO NACIONAL): A Colina, de inspiração soviética, foi criada em 1967. Desde 1968 executou ações armadas para levantar recursos para guerrilha no campo. Foi desmantelada pela repressão.
MR-8 (MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO 8 DE OUTUBRO): Conhecido inicialmente como "DI da Guanabara" (DI-GB), ou Dissidência da Guanabara do PCB, o grupo atuava desde 1966 no meio universitário. O nome MR8 foi adotado a partir do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick em setembro de 1969, realizado em conjunto com outro grupo revolucionário, a Ação Libertadora Nacional (ALN). As operações armadas do MR8, com roubos, assaltos a bancos e supermercados, prosseguiram no Rio, bem como a repressão por parte do governo. Em 1971, o grupo passou a contar com a militância de Carlos Lamarca , já que a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de Lamarca, tinha sido desmantelada pelo governo militar. Pouco tempo depois, Carlos Lamarca foi morto, na Bahia, ao tentar se refugiar dos militares com uma companheira do partido, Iara Iavelberg . A maioria dos militantes se retirou para o Chile em 1972, sendo o grupo reestruturado posteriormente com outras orientações. A preferência por ações armadas deu lugar à atuação política, e o MR8 foi abrigado no MDB, tendo Orestes Quércia como principal liderança. O grupo passa a editar o periódico "Hora do Povo".
VPR (VANGUARDA POPULAR REVOLUCIONÁRIA) - foi uma das organizações de esquerda que mais se destacou na luta contra a ditadura, no período entre 1968-1971. Foi uma organização formada por dissidentes da POLOP (Política Operária) e antigos militares brizolistas do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário). Seu agrupamento inicial começou em 1966, com o ex-sargento do exército Onofre Pinto por trás de sua articulação. Foi Onofre quem comandou a execução do capitão norte-americano Charles Rodney Chandler , em 12 de outubro de 1968. O ano de 1969 começa. E no já no inicio do ano a VPR conta com um belo reforço. É o capitão do exército Carlos Lamarca. A VPR era de ideologia Marxista, e seus militantes eram muito disciplinados (talvez por haver muitos militares no grupo). Os assaltos a bancos, e as expropriações feitas pela VPR no começo de 1969, fazem com que a organização fique já bem conhecida da repressão, que por sua vez está com as prisões cheias depois da decretação do AI-5. E aspirando a um alcance maior, a VPR numa fusão com o COLINA (Comando de Libertação Nacional), e formam a VAR-PALMARES (Vanguarda Armada Revolucionária - Palmares). Essa fusão foi feita num congresso realizado em julho de 1969. Criada a VAR-PALMARES, os militantes foram cuidar de fazer a revolução, e foi o que aconteceu. Já no dia 18 de julho, alguns dias após a formação da VAR-PALMARES, esta conseguia realizar o maior ação de expropriação já feita por um grupo armado. Eles roubaram 2,5 milhões de dólares, na casa da amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros. Em setembro de 1969, houve o "rachão", congresso que trouxe de volta a VPR. No comando da nova organização ficaram: Carlos Lamarca, Ladislau Dowbor e Maria do Carmo Brito. Tendo como base os trabalhos teóricos de Ladislau Dowbor (alcunhado "Jamil"), a VPR passa para uma nova fase, bem estruturada, com dezenas de militantes e centenas de simpatizantes. Ela também conta com um belo grupo, com quadros experientes, tanto em teoria marxista, como em experiência militar. A VPR defendia a idéia de um foco guerrilheiro e inicia os seus trabalhos no Vale do Ribeira. E assim começa 1970. A VPR já havia iniciado o treinamento de seus militantes para atuarem na guerrilha rural. A área de Registro (SP) já estava em pleno funcionamento e a sua localização e existência era alvo do mais absoluto sigilo. Em maio de 1971, Lamarca se desliga da VPR e vai para o MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), e o resto da VPR é presa e morta no Rio de Janeiro. Herbert Daniel consegue fugir e vai pra Minas Gerais, Innes Ettinene Romeu é presa e barbaramente torturada, Alex Polari é preso e também sofre torturas nas mãos dos militares. Alfredo Sirkis, sentindo que o perigo era iminente, foge pra Argentina e Gerson Theodoro é metralhado. E para completar o extermínio da VPR, a repressão consegue um forte aliado conhecido como "Cabo Anselmo". Ele se infiltrou na organização e foi responsável pela morte de vários militantes. Carlos Lamarca é morto em setembro de 1971 no sertão da Bahia, e dias antes Yara Iavelberg é morta em Salvador. Em julho de 1974, Onofre Pinto e mais cinco militantes, entre eles os irmãos Daniel e Joel José de Carvalho, "desapareceram" quando retornavam clandestinamente ao Brasil pela fronteira com a Argentina. Eles foram os últimos integrantes da VPR a serem mortos pela repressão .

CAPÍTULO 3: A "CUNHA DE PENETRAÇÃO" DAS FORÇAS ARMADAS
Neste capítulo abordaremos a especificidade da tortura na estrutura repressiva do Estado de Exceção. Analisaremos os limites de sua funcionalidade e eficiência para o levantamento de informações consideradas fundamentais para o desmantelamento de estruturas subversivas às Forças Armadas, bem como uma análise superficial de seus efeitos físicos e psicológicos sobre o supliciado. Disponibilizaremos alguma descrição dos métodos de tortura empregados durante o período do regime militar em análise.
A cunha tem um uso específico no ferramental de trabalho do homem do campo, como a enxada e o machado. Na parte de trás dessas duas ferramentas fica um orifício chamado "olho", por onde deve passar o cabo de madeira. Para que não fique frouxo, o que se mostraria um grande perigo no uso cotidiano, a cunha é introduzida em uma rachadura preparada para esta finalidade na ponta do cabo da ferramenta. Com golpes de outra ferramenta, a cunha é ali introduzida à força, e tem a função de fixar o cabo, de modo que não deixe escapar a enxada ou o machado por ocasião dos choques e vibrações decorrentes do seu uso.
Há um segundo uso da cunha, e especificamente é essa aplicação que usaremos como comparação neste parágrafo. É uma peça de ferro ou de madeira, "em forma de diedro sólido, bastante agudo, que se introduz em uma brecha para fender pedras, madeira, ou outro material rígido e duro". Essa é a chamada "cunha de penetração", ferramenta indispensável para partir estruturas sólidas.
A TORTURA COMO "CUNHA DE PENETRAÇÃO"
A tortura é ferramenta antiga na história da humanidade. Dela se apoderaram civilizações clássicas que nos legaram importantes códigos de justiça e de Direito, como Roma, por exemplo.
Conforme os registros históricos, os gregos foram os primeiros a utilizar sistematicamente a tortura na instrução criminal, ou seja, no "conjunto de atos praticados com o fim de ofertar elementos ao juiz para julgar" (CAPEZ, 2008, p. 451). Na época definida como "um tormento que se aplicava ao corpo, com o fim de averiguar a verdade" ou simplesmente um "meio seguro de obter evidência", a tortura, inicialmente reservada aos escravos e estrangeiros, era utilizada sempre que não se conseguia encontrar provas da autoria do crime ou simplesmente se quisesse obter uma rápida resolução do caso (BIAZEVIC, 2004, p. 04). Os romanos, como absolveram grande parte dos costumes gregos, passaram a utilizar a tortura nas mesmas circunstâncias do povo que os precedeu. Entretanto, com o avanço do Direito na sociedade romana, existiu a necessidade de se regular a prática dos métodos de tortura, o que culminou com o surgimento dos códigos Teodosiano e Justiniano. Nasciam assim as primeiras legislações escritas do mundo com previsão legal acerca da licitude da tortura e do seu uso como forma de obtenção de prova.
TECNOLOGIA DO TERROR
Ser preso pela ditadura era conhecido pelo jargão "queda". Alguém podia "cair", ser preso no exercício da sua clandestinidade, ou fazendo parte da cobertura de apoio de uma organização clandestina de luta armada.
No período de 1969 a 1974 organizações internacionais de vários setores da sociedade, tais como as religiosas e de direitos humanos conseguiram levantar e mapear provas da existência de centros secretos de suplícios e tormentos no Brasil, nos quais em muitos casos havia desaparecimento de presos. Durante todo o período mencionado essas organizações recebiam denúncias de maus tratos. Portanto a questão da tortura não era um assunto fechado e circunscrito ao nosso país .
A PRISÃO: A primeira fase da trajetória rumo aos porões de tortura era o ato prisional. Podia ocorrer a céu aberto, em praça pública, em pista de rolamento, ou mesmo na individualidade de um "aparelho" clandestino (residência de fachada que ocultava grupo armado clandestino). Geralmente a prisão tinha um caráter de seqüestro: o preso era encapuzado, colocado na viatura, em geral um fusca ou uma Veraneio C-10, da Chevrolet. Um exemplo típico de "queda" foi a prisão do jornalista Antônio Carlos Fon, em 29 de setembro de 1969. Foi preso às 6h30min. Na época era funcionário do Jornal da Tarde, de São Paulo. Cobria área policial e na noite anterior ficara até altas horas conversando com dois policiais, identificados como o Escrivão Waldemar de Paula e o delegado Luiz Orsatti, ambos integrantes do DOPS. Após o dialogo, chegou em seu apartamento, que ficava na esquina da S. João com a Duque de Caxias às 4h30min. Deitou-se no quarto de seu irmão Aton Fon Filho, que se encontrava viajando. Após duas horas de sono profundo foi acordado com um cano de pistola encostado no rosto, e viu o quarto coalhado de homens armados de fuzis e metralhadoras. A referida arma de fogo era empunhada pelo então delegado Raul Nogueira, vulgo Raul Careca, que era um dos principais componentes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas ? organização para-militar de extrema direita). Mandaram vestir-se e se dirigir à sala de estar ? onde seus pais e irmãs já estavam detidos ? onde seria acareado com um homem chamado David, cujo nome real era Francisco Gomes da Silva. As equimoses daquele homem eram visíveis e um curativo na testa testemunhava o longo processo brutal de sevícias a que fora submetido. O capitão Mauricio Lopes Lima queria que David o identificasse, mas deu muita ênfase ao afirmar que não o conhecia, e dizia a verdade.
Para Carlos Sarno , filho de imigrantes italianos, o momento da "queda" foi um pesadelo, pois foi rendido junto com sua companheira Jurema em 1970. Militante da VAR-Palmares, (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares), foi por ordem do alto comando da organização transferido da Bahia para o Rio de Janeiro, por motivos de segurança, já que a organização estava sendo trucidada pelos poderes do Governo. Após contatar a estrutura da organização no Rio, foram novamente deslocados, agora para São Paulo, (o grande centro do Movimento Político no país). Lá chegando, os dois se separaram cada um indo para um aparelho diferente passar a noite. Carlos recorda os momentos de angústia e tensão queimando documentos à espera do companheiro da organização, que não chegava. Temendo ser preso (já que nessa época dezenas de militantes da Var-Palmares haviam caído nas mãos da repressão, dando início a um processo de desestruturação da organização), ao amanhecer Sarno decidiu sair da casa da família de operários, onde passara a noite. Sem notícias de sua companheira, com a "queda" do seu contato em S. Paulo e sem querer voltar para o Rio de Janeiro sozinho, Carlos decidiu procurar Jurema, sem saber que ela fizera exatamente a mesma coisa: saíra à sua procura. Novamente juntos, decidiram voltar para o Rio de Janeiro com o objetivo de obter, junto à organização, novos contatos em São Paulo. Feito isso, retornaram à capital paulista, dando continuidade ao trabalho da Var-Palmares: Carlos nas bases da Capital, e Jurema em Osasco.
Era o dia 13 de setembro de 1970. Sozinha em casa, Jurema foi surpreendida com a chegada de dez policiais da Oban (Operação Bandeirantes). "Vamos, diga! Quem mora aqui com você?", "Vai chegar mais alguém?", perguntavam os policiais, aos gritos. Sem perder o controle e bastante preocupada com seu companheiro que, a qualquer momento, poderia chegar, Jurema perguntou a um dos policiais: "Posso ir ao banheiro?". Autorizada, na passagem conseguiu acender a luz externa da casa, código estabelecido entre ela e Sarno para indicar a presença de policiais. Por volta das 19h, Sarno retornou para casa, depois de mais um dia de trabalho. Ao se aproximar, viu que a luz (que até então sempre ficara apagada) estava acesa. Era o sinal de que algo estranho acontecia. Preocupado com Jurema e para se certificar da real situação, aproximou-se um pouco mais, sendo cercado pelos policiais, que haviam se posicionado em toda a área. "Não se mexa ou vou atirar", gritava um dos policiais, tenso e nervoso, com a arma na mão. Em seguida, Carlos foi levado até à casa.
Logo depois, Carlos e Jurema acabaram algemados e jogados numa caminhonete fechada, onde, por um breve momento, tiveram a chance de trocar algumas palavras e acertar dados importantes para dar coerência à história que iriam manter durante os interrogatórios no maior centro de tortura de São Paulo, a Oban.
A CHEGADA NO CENTRO DE INFORMAÇÕES: A chegada no Centro de Informações, que podia ser o DOI-CODI ou o CENIMAR , ou mesmo uma delegacia mais próxima era sempre um momento de muita tensão. Freis Ivo e Fernando , no mês de novembro de 1969 desembarcaram no Rio de Janeiro, cada um com um objetivo distinto. Frei Ivo iria passar o fim de semana com sua família, enquanto Frei Fernando, que era editor da livraria Duas Cidades (SP) pretendia encontrar outro editor, de nome Sinval, da Editora Vozes (RJ), para debaterem questões profissionais. Após o almoço, tomaram o ônibus para ir à casa de Sinval, no Catete. Desceram defronte ao antigo palácio presidencial, cercado pelas grades de lanças de ferro. Às duas da tarde, o mormaço caía como chumbo. Os dois religiosos caminhavam pela Rua Silveira Martins quando os seguraram por trás, empurrando-os para o interior de uma perua que, de motor ligado, aguardava. Os três policiais traziam à mão suas armas. Ao indagarem o motivo da prisão, ouviram como resposta que uma senhora havia sido assaltada no mesmo ônibus que haviam tomado, e os havia apontado como autores da ação. Ao entrarem no CENIMAR, foram separados em salas diferentes. A tensão aumenta. Em seguida, o Delegado Sérgio Paranhos Fleury apontou o dedo para o prisioneiro acuado entre os policiais, dizendo: "Vocês são base fixa de Marighela!" Fernando negou, dizendo que nada tinha a ver com lideranças políticas. E a tensão só aumentava para o interrogado.
Maria Amélia Telles, o esposo Cesar Augusto Telles e o colega Carlos Nicolau Danielli foram presos no dia 28 de dezembro de 1972, às 18h30min, na Vila Mariana, em São Paulo. "Fomos presos e jogados num carro. Ao som de sirenes, chegamos ao DOI-CODI, onde nosso anfitrião nos aguardava. Quando chegamos, ali mesmo no pátio, os agentes tiraram César e Danielli do carro e começaram a espancá-los. Eu, ao ver aquela cena, saí do carro e fui ao encontro daquele homem que, do alto da escada que dava no pátio aonde havíamos chegado, berrava: ?Levem esses comunistas. Dêem a eles o que merecem?". Esse foi o primeiro contato de Maria Amélia com Ustra , que seria o responsável pelas dezenas de sessões de tortura que ela e o marido sofreriam durante o período em que ficaram presos nas instalações do DOI-CODI. "Vendo César e Danielli sendo espancados e quase desfalecidos, decidi fazer alguma coisa e me dirigi àquele homem que, ensandecido e aos gritos, incitava os agentes a espancar selvagemente meu marido e o companheiro Danielli", recorda Maria Amélia. "O senhor não vai fazer nada contra isso? Vai deixar que esses homens indefesos continuem sendo espancados dessa maneira?", perguntou ao homem que, mais tarde, ela saberia tratar-se do "major Tibiriçá", o chefe do DOI-CODI paulista.
AS SEVÍCIAS: A primeira tentativa de arrancar informações do detido era na pressão psicológica, com perguntas intimidadoras, e mesmo com ameaças. Falhando a primeira abordagem, a situação mudava completamente.
Na opinião de Antonio Carlos Fon o criminoso político "é sempre o mais difícil de interrogar. O subversivo não aceita a autoridade que você representa. Então, você tem de demonstrar para ele que o Estado possui meios de coagi-lo eficazmente" . E entre os "meios" mencionados, a essência estaria na carga de dor, cansaço e fadiga infligida, que levasse o subversivo à ruptura da própria força de vontade, colaborando submissa e voluntariamente com o interrogador.
Retornando à experiência da família Telles, a própria Maria Amélia conta que após ter dirigido a palavra ao Coronel Ustra, o "Major Tibiriçá", este lhe respondeu com uma agressão, um tapa no rosto, gritando simultaneamente: "Você está na Oban (Operação Bandeirantes) . (...) Sempre aos berros, o "Major Tibiriçá" mandou seus agentes levarem "a subversiva para dentro". "Para dentro" era sinônimo de sala de torturas. Ali, os três companheiros foram seviciados de inúmeras formas no período que permaneceram na Oban. Maria Amélia conta que, a exemplo do marido e de Danielli, foi levada a uma sala, onde teve início a série de torturas, que incluiu situações de humilhação e atos obscenos.
Após sua prisão, Antonio Carlos Fon também ficou detido na Oban, e ele mesmo relata os acontecimentos:
O carro estacionou no pátio dos fundos do 34º Distrito Policial e eu fui levado aos empurrões para a porta do pequeno prédio de três pavimentos onde funciona até hoje a "Operação Bandeirantes" [1979]. Eu ainda tinha alguma esperança de que aquela situação se esclarecesse rapidamente, mas ela se desvaneceu logo: "Esse é daqueles que não sabem de nada", explicou o Delegado Raul "Careca" ao entregar-me a dois homens que esperavam na porta. (...) Fui levado para a câmara de torturas, no 2º andar, e durante três horas submetido a pau-de-arara , espancamentos e choques elétricos. De tudo isto, lembro-me de que nada era mais terrível que os choques elétricos na cabeça com um fio preso ao lóbulo da orelha e outro percorrendo os lábios, o pescoço ou o nariz. Esses choques provocam uma contração tão forte dos músculos da face que a língua é mordida e estraçalhada pelos dentes. Fiquei vários dias sem poder comer até que um enfermeiro do exército obteve autorização para levar-me um pouco de gelo, que anestesiava momentaneamente a língua, permitindo que eu me alimentasse.
Frei Fernando, acuado entre os agentes do Dops que o levaram junto com Frei Ivo ao 5º andar do Arsenal da Marinha, o CENIMAR do Rio de Janeiro, é interrogado pelo Delegado Fleury. "Tire a roupa", berrou o delegado paulista. Congelado pelo clima de terror, Frei Fernando fica imóvel. A mão do delegado atinge seu rosto com força. É despido, ficando somente de cuecas, sendo pendurado imediatamente no pau-de-arara. "Como é que Marighela entra em contato com vocês?", indaga o delegado. Não há resposta de retorno. Fios desencapados, ligados a eletrodos com pequenas garras são conectados ao corpo do prisioneiro, e a corrente elétrica da "pimentinha" é ligada, sendo inoculada nos músculos. O corpo de Frei Fernando se contorce em espasmos e dor, como se mil agulhas em brasa fossem fincadas ao mesmo tempo no seu corpo. A mesma pergunta é insistentemente repetida, até que o processo muda. A resistência do dominicano parece ser inquebrável. Um dos fios desencapados é lentamente introduzido na uretra, enquanto um barbante é amarrado no seu pênis, ajustando mais o fio dentro das suas entranhas, com a finalidade de multiplicar o suplício do indefeso ser ali dependurado.
Os relatos acima descritos têm por objetivo demonstrar alguma coisa dos indescritíveis sofrimentos suportados pelos opositores do regime. Embora sejam testemunhos fortes e produzam certa revolta e comoção, pouco espaço temos neste trabalho para abordar todos os aspectos físicos e psicológicos abrangidos por assunto tão amplo como a tortura naquele período.
CONTRADIÇÕES E QUESTIONAMENTOS ? Entretanto, surge uma questão, uma indagação necessária pertinente ao assunto em pauta: "seria a tortura um método eficiente de revelação de verdade(s), de obtenção de informações confiáveis e precisas? Qual a eficiência da tortura no mecanismo de segurança de uma sociedade, de um país?" Na verdade a tortura busca introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente. E, mais do que isso: ela procura, a todo preço, semear a discórdia e a guerra entre o corpo e a mente. O projeto da tortura implica numa negação total da pessoa enquanto ser encarnado. O discurso que ela busca através da intimidação e da violência, é a palavra aviltada de um sujeito que, nas mãos do torturador, se transforma em objeto. Tendo estado consciente, capaz de resistir à indução ideológica dos agressores, ele vai aos poucos se transformando em razão da degradação corporal e da intolerabilidade da dor. Em certo ponto, o ponto extremo em que seus valores foram atingidos e sua relação consigo mesmo foi inteiramente desorientada, o sujeito não se reconhece mais como a si mesmo, mas como a outro. E este outro, ao contrastar o vazio de sentido do próprio corpo e a imagem composta do inimigo à sua frente, vê neste a possibilidade de resgate de uma organização de sua constituição como sujeito. Por isso passa a dirigir-se a si mesmo com um pensamento equivalente ao do torturador. Essa inversão, caracterizada como "queda em um buraco sinistro", seria o resultado esperado pelo torturador. O objetivo específico do crime de tortura é usar a violência extremada para reduzir, anular e quebrar a resistência do indivíduo, com a intenção de obter informações ou a própria confissão forjada, à força física, provocando dor e sofrimento, mediante ameaças, mentiras e promessas, quaisquer que sejam os meios empregados, cujo fim último é viciar a vontade e a liberdade do indivíduo.
Além de moralmente inaceitável, a tortura é um método pouco eficiente, pois faz com que as vítimas criem falsas memórias. De acordo com um artigo publicado na revista "Trens in Cognitive Science", as técnicas coercitivas de interrogação podem levar a vários danos, até mesmo à perda de tecido cerebral. Em abril deste ano (2009), o Departamento de Justiça dos Estados Unidos divulgou memorandos contendo detalhes sobre o uso das chamadas técnicas de interrogação aperfeiçoadas" para extrair informações, apesar das fortes objeções éticas. Segundo a pesquisa, os métodos causariam ansiedade e estresse prolongados no prisioneiro, reduzindo sua habilidade de lembrar fatos e dar informações detalhadas sobre eles. Isso poderia fazer com que o interrogado criasse falsas memórias - e até mesmo acreditasse nelas - para se livrar da tortura. Gorete de Jesus, pesquisadora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), aponta que pesquisas como essa são importantes para alertar a sociedade sobre as graves consequências psíquicas da tortura. "A tortura é um processo de desintegração do indivíduo, de exposição da sua fragilidade", conta. A socióloga ressalta que a tortura continua sendo praticada ao redor do mundo. (...) Não podemos esquecer que a tortura procura por culpados - e nunca pela verdade.
CAPÍTULO 4 ? MEMÓRIA SOCIAL DA REPRESSÃO
Neste capítulo, o último, vamos buscar uma reflexão sobre a memória da ditadura num Brasil pós-militar. Por conseguinte, iremos refletir sobre a memória social de um país que não conheceu o regime de exceção: a geração do século XXI.
REFLEXÃO
Depois de 44 anos do Golpe Militar no Brasil, a memória da ditadura ainda carece de uma ampla discussão política. Devemos pensar como vem sendo preservada esta memória? Que uso político está sendo feito dela? A política de preservação da memória e do patrimônio deve ser entendida em sua concepção mais ampla, como o resultado de uma prática social e cultural de diversos e múltiplos agentes.
Portanto, nos interessa pensar de que forma podemos construir a memória e seus suportes como o patrimônio. A noção de patrimônio, tal qual a compreendemos na contemporaneidade, engloba uma discussão mais ampla, sobre o que "deve" e "pode" ser memorável. A superação deste trauma exige a existência de uma superfície adequada de inscrição dos sujeitos envolvidos. Essa é a função dos monumentos, das comemorações etc. Não é isso o que vem ocorrendo. As marcas da ditadura ainda se fazem presentes na cidade. É nesse contexto que devemos questionar a atual política oficial de preservação da memória da ditadura no Brasil, através dos monumentos, comemorações, coleções, arquivos, museus, Leis e Decretos. Esta política de preservação, tal como vem sendo estabelecida hoje pelos veículos oficiais, revela uma precária inscrição dos sujeitos envolvidos. Assim como há grande dificuldade no arquivamento dos documentos desse período.
Os arquivos do período da ditadura dependem muito mais de ações individuais do que de uma política governamental séria de preservação e arquivamentos. Isto fica claro quando verificamos as diferenças entre o Arquivo Edgard Leuenrothh (na UNICAMP) , por exemplo, e os Arquivos do DOPS custodiados no Arquivo do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) . Da mesma forma, não há um movimento sério, por parte da ação estatal, em âmbito federal, de criação de um monumento em memória dos mortos e desaparecidos políticos.
A memória é um item importantíssimo em nível de sociedade. Ela funciona, nesse caso, como estratégia de resistência e luta política , ou seja, como um campo de disputa entre versões antagônicas sobre um período político ditatorial que marcou a vida dos sujeitos e a história da sociedade brasileira. Quando nos reportamos aos tempos hodiernos, surgem-nos à mente algumas indagações específicas: Qual seria o significado da repressão e das lutas de resistência para as novas gerações? Qual o impacto desses acontecimentos para a vida dessas gerações?
A ditadura militar brasileira, com todo o seu aparato repressivo, deixou muitos legados para as gerações que a sucederam, tanto negativos ? que permanecem na sociedade brasileira, como resquícios de um governo autoritário e repressivo, e que representou um retrocesso para o avanço da democracia ? quanto positivos ? que se manifestam nas práticas de resistência dos movimentos sociais. Soraia Ansara, Mestre (2000) e Doutora (2005) em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no seu livro Memória Política, Repressão e Ditadura no Brasil, realizou ampla pesquisa em alguns setores da sociedade politicamente ativa do nosso país, entre eles os estudantes e os movimentos sindicais e comunitários. De acordo com alguns dados dessas pesquisas, ela afirma que
As lideranças comunitárias e sindicais reconhecem que esse passado repressivo ainda permanece nas formas autoritárias que se manifestam na nossa sociedade de maneira camuflada, nos meios políticos e nos próprios movimentos em que participam, por meio das atitudes de certos lideres. E apontam que ainda temos muito que caminhar para chegar a uma consciência política democrática com maior autonomia, em que o povo brasileiro, efetivamente, possa definir os rumos do país. (...) a ausência de uma consciência política democrática é resultado da própria vivência numa falsa democracia ou numa "democracia entre aspas", como os entrevistados se referem. (...) Apesar de vivermos numa democracia, existe hoje, segundo nossos sujeitos, um medo de falar, de participar, de se envolver em ações coletivas, que é proveniente do medo da repressão. O fato de se punir aqueles que se opunham, que escreviam ou falavam criticando o regime militar, faz com que, ainda hoje, muitas pessoas tenham receio de fazer suas críticas, de expressar suas opiniões, de participar, de inclusive lutar pelos seus direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Necessitamos de uma séria reflexão a respeito das opiniões sociais dos nossos dias em relação ao período militar. As reflexões dos autores citados sugerem que a herança histórica que recebemos são muito mais presentes e palpáveis do que parecem principalmente em nível de comportamento e atitude.
Embora não pareça ser um período tão longo em comparação com outros períodos e fases da História, a ditadura militar se mostrou muito intensa, influenciou muito o país e ainda continua a influenciar indiretamente, através de sua política conciliatória de distensão para um "Estado Democrático", cuja transição até hoje não logrou alcançar um franco reconhecimento das atrocidades cometidas contra os opositores. A omissão e o comportamento de "auto-anistia" prepararam o terreno para a continuidade da impunidade, da corrupção, do autoritarismo. O simulacro de democracia está aí exposto, onde percebemos o direcionamento do aparato repressivo deslocado da repressão política para as classes pobres da sociedade brasileira. Será que teremos condições de construir uma identidade política de visão abrangente no nosso país? Terá fim o período de reclusão e silêncio das Forças Armadas em relação aos eventos ocorridos entre 1964 e 1985? São perguntas que devem nos instigar a uma análise mais séria a respeito da sociedade em que vivemos.

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Acervo digital do periódico "Revista Época", editora Globo. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/
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