Os Primeiros na Índia – Árabes ou Europeus?

Por Julio Cesar Souza Santos | 02/11/2016 | Sociedade

Qual Era o Nível de Conhecimento Árabe Sobre as Ciências da Navegação? Por Que Se Criou o Estereótipo de Que os Árabes Não Eram Navegantes Bem Sucedidos? Como Era a Tecnologia de Construção Naval dos Árabes?

   

Se a África era uma península, se havia realmente uma passagem marítima aberta do Oceano Atlântico para o Índico, então obviamente também deveria haver uma passagem marítima do Oceano Índico para o Atlântico. Os árabes que viviam nas fronteiras ocidentais do Oceano Índico estavam tão avançados nas ciências da navegação (astronomia, geografia e matemática) como os seus coevos (ciências da navegação (astronomia, geografia e matemática) como os seus coevos ([1]) europeus. Por que os árabes não utilizaram a passagem marítima para ocidente?

Quando Vasco da Gama chegou à Malabar foi saudado por árabes de Tunes, os quais eram de uma comunidade de mercadores e proprietários de navios que já dominavam o comércio em Calecute. Muito antes de ser descoberta uma passagem marítima entre o Ocidente e o Oriente, árabes do Norte da África já estavam enraizados na Índia.

Ao que parece, os tabus de casta impediam hindus de participar do comércio ultramarino e alguns eram proibidos pela sua religião de passarem sobre água salgada. Entretanto, a expansão do Islã nas gerações que se seguiram a Maomé, levou o Império Muçulmano através do rio Indo e até a Índia antes do século VIII e, por isso, as cidades da costa de Malabar fervilhavam de mercadores árabes.

Mercadores árabes eram comuns na Índia muito antes da expansão do Islã para o interior, mas depois do profeta Maomé ao motivo da Cruzada foi acrescentado o motivo comercial. Em meados do século XIV, constatou-se que mercadores árabes já eram transportados da costa de Malabar para a China em barcos chineses. Em Cantão – no século IX – já existia uma comunidade muçulmana e também existem registros de muçulmanos ao norte da Coreia.

Da perspectiva europeia criou-se o estereótipo de que os Árabes nunca foram viajantes marítimos bem sucedidos e, a história dos Árabes no Mediterrâneo, nos fornece algum conteúdo a essa ideia. O califa Omar, que organizou o poder muçulmano e expandiu o Império Muçulmano para a Pérsia e Egito, tinha tanto temor do mar que negou autorização ao governador da Síria para atacar o Chipre.

Quando proibiu essa incursão, Omar expressou a tradicional desconfiança árabe pelo mar. Em arábico “monta-se um barco” como se monta um camelo e, quando os Muçulmanos chegaram à praia à volta da Península Arábica, viram o mar como um deserto a ser atravessado de caminho para assaltar ou negociar. Aí os árabes raramente se sentiam em casa. 

 

Mas, até mesmo no Mediterrâneo os Árabes foram obrigados a fazer-se ao mar e, depois de uma frota bizantina retornar a Alexandria (em 645 d. C.), tornou-se claro que o Império Muçulmano não podia passar sem uma marinha. Alexandria se tornou o seu centro marítimo, um novo quartel-general de treino naval e construção de barcos com madeira trazida da Síria.

O Império Arábico-Muçulmano se alastrou para o interior do Mediterrâneo e, a Península Ibérica, onde a Europa quase se encontrava com a África, foi a parte do continente europeu que caiu sob o domínio muçulmano. Foi a força dos árabes fixados em terra que controlou ambos os extremos do Mediterrâneo, quer eles tenham dominado o tráfico no seu interior quer não, que moldou o futuro das viagens marítimas na e da Europa. 

Com as exceções das Ilhas de Chipre, Creta e Sicília os Árabes não precisavam atravessar um mar para irem de uma parte a outra no seu império. Se os Árabes – que colonizaram e se expandiram à volta das costas do Mediterrâneo – tivessem sido mais como os Romanos, competentes e à vontade no mar, a história e até a religião da Europa poderiam ter sido diferentes. Alexandria talvez tivesse se tornado uma Veneza muçulmana, mas em vez disso, essa outrora grande metrópole que no seu apogeu chegou a ter 600 mil habitantes, tinha apenas 100 mil no fim do século IX. 

Mas no Mediterrâneo conquistavam-se e perdiam-se impérios nas águas e aí os barcos eram a espada dos construtores de impérios. Durante os séculos em que o império de Alá recuava no Ocidente, o Oceano Índico se manteve pacífico. Foi aí que a aventura marítima árabe se desenrolou livremente. A personificação dessa aventura (Ibn Majid, filho de navegadores árabes) alcançou fama como o homem mais sabedor de navegação no temível Mar Vermelho e Oceano Índico. 

Uma providência divina deve ter acompanhado Vasco da Gama na sua 1ª viagem e, graças a uma espantosa coincidência, ele conseguiu arranjar um piloto árabe competente e merecedor de confiança (Ibn Majid) para guiar sua frota através do Índico. O capitão português nem soube a sorte que teve e tampouco poderia ter passado pela cabeça de Ibn Majid que, ao entrarem no porto de Calecute, seriam protagonistas de uma das maiores ironias da história. 

Sem saber, o grande mestre da navegação árabe guiou o capitão europeu para um êxito que viria traduzir-se na derrota da navegação árabe no Oceano Índico. Pois, historiadores árabes têm tentado explicar o papel de Ibn Majid dizendo que ele devia estar bêbado para confiar a Vasco da Gama a informação que o conduziria em segurança ao seu destino na Índia. 

Muito antes de o Infante D. Henrique ter se aventurado pela costa africana abaixo, os Árabes já conheciam a costa africana até a Ilha de Madagascar e a menos de 1600 km a norte do cabo. Aí, no canal de Moçambique eles encontraram o seu cabo Bojador. O fato que alargou a visão dos muçulmanos foi a peregrinação – o dever que todos os muçulmanos têm de visitar Meca, antes de morrer. 

Mas, embora a tradição da peregrinação fosse ponto fulcral da viagem árabe-muçulmana, não encorajou a navegação exploratória. Apesar disso, a geografia árabe floresceu e, enquanto os cosmógrafos europeus repousavam numa sonolência dogmática, os geógrafos árabes se moviam à vontade nas obras de Ptolomeu, as quais o Ocidente manteve sepultados durante mil anos. Os árabes começaram a rever Ptolomeu, sugerindo que o Oceano Índico não era o mar fechado de Ptolomeu, mas que, ao contrário, ele corria para o Atlântico. 

Naquela era anterior à chegada dos Portugueses, a tecnologia da construção naval árabe no Oceano Índico era uma curiosa combinação de forças e fraquezas. A vela latina, que os Árabes levaram para o Mediterrâneo, tornara – pela sua faculdade de navegar contra o vento – possíveis as aventuras marítimas dos Portugueses. Os árabes foram os pioneiros no aperfeiçoamento do leme de popa, que tomava qualquer barco mais manobrável. Eram peritos na utilização das estrelas para a navegação. 

Por razões ainda desconhecidas, em vez de utilizarem pregos nos seus barcos, os Árabes costuravam as tábuas umas às outras com cordas feitas de fibra de casca de coco. Assim unidos, não duravam muito sob a ação dos ventos ou das rochas contra as quais roçavam. Por que construíam seus barcos dessa forma? Havia uma lenda de que rochas magnéticas do mar atrairiam o ferro e desmantelariam os barcos unidos por pregos. E o elevado preço e a escassez de pregos também devem ter tido algo a ver com o caso. 

Algumas características da península Arábica – pátria dos Árabes e do Islã – nos recordam as dificuldades enfrentadas pelos seus marinheiros. A Arábia não possui quase nenhum dos materiais (madeira, resina, ferro ou têxteis) necessários para a construção naval. Não havia rios navegáveis, os bons portos eram poucos e um interior populoso e hospitaleiro também primava pela ausência. Os recifes de coral que rodeavam as costas causavam naufrágios, além de não haver qualquer fonte de água doce. E os ameaçadores ventos sopravam todo o ano sem descanso. 

Todas essas características das terras e da civilização árabes nos ajudam a compreender por que motivo não se sentiam inclinados a conduzir seus barcos a volta da África e a subir a costa ocidental da Europa. Talvez, a melhor explicação seja a mais óbvia: _ Para quê organizar uma aventura ao desconhecido?

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([1]) Que se enquadram numa mesma época; contemporâneos.