OS OLHOS DELA

Por João Cândido da Silva Neto | 21/04/2011 | Literatura


OS OLHOS DELA

Não senhor! De Deusinha não se pode dizer isto que seja que intente apequenar-lhe o caráter ou denegrir-lhe o procedimento, afinal, ela sempre exibiu aquinhoados dotes morais alicerçados por belo e desempenado equilíbrio!
Era um primor de desvelada meiguice e enternecida jovialidade. Se a mim fosse concedida a gratificante oportunidade de, num mais longo relato, encarreirar tintim por tintim as qualidades que ela sobejamente ostentava, como, aliás, convém à legitimidade de um reconhecido proseador, ficaria devendo fineza por insigne tarefa.
Criatura prendada estava ali; de invulgar boniteza e inspiradas virtudes tinha a lisura como principal referência de moldura. Era um bem acabado modelo de graciosidade, esculpida sob a inspiração de afamado mestre escultor.
Quando criança vivera com os pais e irmãos lá pros lados da Guabiroba, mudando-se todos pras?Anta quando nela, embora crescidinha, a flor da juventude inda nem despregara botão.
Seus pais tiveram quatro filhos e só depois nasceu ela, caçula e única menina. Crescera rodeada pelas atenções de todos, sempre abastada de mimos e afetos. Dengos e afagos se lhes derramavam a mancheias, ao que sempre correspondia com desembaraçada solicitude, na augusta serenidade da alma pura e inocente.
Com a mãe aprendera os cuidados com a casa e o domínio das artes culinárias, sem nunca descuidar do apreço pela própria beleza e higiene pessoal.
Tinha uma visível e inquestionável nobreza de sentimentos. Enchia-se do mais vivo entusiasmo ao contemplar o nascer do Sol, quando a suave brisa matinal desviava do seu curso só pra vir acariciar-lhe as delicadas feições; ou balouçar seus louros cabelos quando seguia a caminho da escola.
Querida por todos os colegas e pelas professoras, sempre tinha uma palavra de cortesia para dispensar aos quantos dela se aproximassem, demonstrando possuir uma refinada e primorosa eloquência que pela simplicidade a todos encantava. Nada lhe deixava abusada. Era como se uma perene luz angelical estivesse sempre a percorrer-lhe as veias. Seu gosto pela vida se fazia notar a cada gesto e seu rosto exalava uma terna energia, adornado que era por alinhados requintes de inefável beleza.
Contava já dezesseis anos quando, num belo dia, ao adentrar a sala de aula, encontrou um poema manuscrito em folha de caderno brochura delicadamente dobrada, na carteira onde de costume se assentava. Curiosa, leu o poema:

Olhos que recitam poesias;
brilho do mar emprestado;
colibris esvoaçantes se buscando
lado a lado.

Visão multicolorida,
janelas abertas da alma,
o real e o sublime se defrontando
na mesma calma.

Espelhos cristalinos prisioneiros
que à moldura facial encantam;
líquidos poemas que se transformam
em canção.

Esmeraldas lapidadas
na singeleza de um sorriso cativante;
sonhos que partem rumo ao infinito,
mas retornam...


Compreendeu que o poema fora escrito para ela. Por alguém que a conhecia muito bem, pois seus olhos estavam ali retratados com palavras meigas e da mais adocicada candura. Releu-o pausadamente e, em seguida, guardou entre as folhas do caderno.
Finda a aula, dirigiu-se para a saída, mas não foi abordada por ninguém. Seu virgem coração agora batia descompassado, como que arremedando o chouto da animalada descabrestada. Aflorava-se-lhe um sentimento até então desconhecido; algo inquietante, um num-sei-quê intraduzível, misto de euforia e desejo, ou seria... Não! Era indefinível. Era sim. Mas o ritmo cardíaco se acelerara e o sangue, ao percorrer as veias, parecia aquecido por um fogo de labaredas descontroladas.
Nos dias e semanas que se seguiram o anônimo poeta não apareceu; e outro poema foi inutilmente esperado. Mas ela continuava experimentando suaves e profundas transformações. Sonhos e devaneios permeavam agora a ainda imaculada paisagem dos seus sentimentos. E o horizonte que agora enxergava parecia iluminado pela luz radiante de mil sóis cintilantes...

ANOS SE PASSARAM...

Ela se mudou para Ouro Fino, foi estudar, queria ser professora. Conseguiu. Era próprio do seu espírito educar almas e instruir intelectos. Nascera para isto. Nunca se casou. A vivacidade da sua arte preencheria totalmente a sua existência.
Avistei-a outro dia, de longe, ao passar pela Estação Rodoviária, lá em Ouro Fino, quando ela já ia embarcar no ônibus. Chamei-a. Ela olhou e reconheceu-me. Esboçou um largo sorriso, acenou-me com um gesto gracioso e entrou no veículo.
Pude notar que seus olhos ainda eram dois vivos archotes (esmeraldas lapidadas na singeleza de um sorriso cativante), que alumiavam as veredas por onde ela seguia, já que a alma estava sempre à frente, apontando o rumo de um horizonte que só ela sabia identificar, sem nunca errar a direção. Décadas transcorridas num intenso apego à vida tinham deixado registro indelével na tez agora encrespada a modos de cupinzeiro. É assim mesmo. A mão do tempo deixa calos por onde passa. Mão calosa...!
Impiedosas recordações a produzir arroubos de saudade; um poema nunca declamado ainda entalado na garganta...
Seu olhar e seu sorriso tinham reavivado uma chama ardente conservada com inusitado desvelo; e agora, frêmitos de agonia suada de bem-querer expunham os andrajos de um coração ainda fumegante. Reacendia uma antiga paixão, nascida num clima de sossego que ainda desassossega.
Sigo caminhando amuado, tentando aligeirar o passo, alinhavando mudo solilóquio que, interiormente adoça o entendimento, mas coloca em polvorosa os meus desalentados sonhos. Vem-me à mente uma das canções que ela sempre entoava, quando absorta em seus afazes domésticos:

"Hoje o meu peito está chorando,
está pedindo pra você voltar;
sua partida me deixou penando,
somente a volta pode me alegrar.

Embora triste canto este meu canto,
enquanto espero o seu retornar;
se a distância faz sentir saudade,
a sua volta me fará sonhar".

Cantando ela embalava em doce suavidade todos os seus pensamentos. Recordar seu canto é para mim uma prece que reconforta minhas mutiladas esperanças e ameniza meu desespero. O destino sempre viveu de implicância comigo...
Avia Saudade, vai-te embora. Já é bastante penar a ausência dela, que seguiu com sua admirável altivez a direção indicada pelos sempre bem definidos contornos dos seus tão acalentados sonhos.
Semana que vem vou a Ouro Fino com meu sobrinho, que vai resolver uns assuntos na Repartição Pública. Vou ficar sentado no banco da Estação Rodoviária, esperando enquanto ele vai lá. Na Repartição costuma ter muita gente, o atendimento é demorado...