OS INDÍGENAS E SUA LUTA PELA TERRA: UM ESTUDO COMPARATIVO COM O MST
Por Mauro André Damasceno Pereira | 15/02/2013 | DireitoOS INDÍGENAS E SUA LUTA PELA TERRA: UM ESTUDO COMPARATIVO COM O MST
Mauro André Damasceno Pereira[1]
Meirislei Gama Paiva[2]
RESUMO
Um estudo comparado entre o movimento dos sem-terra e os indígenas; mostrando que apesar de algumas semelhanças, a luta dos indígenas por direitos de propriedade encontra fundamento em uma fundamentação diversa da vista pelos trabalhadores rurais, de cunho antropológico.
PALAVRAS-CHAVE
Novos Direitos. Antropologia. Sociedades Indígenas. MST.
Introdução
O Brasil é um país marcado historicamente por conflitos no campo. Mesmo com as garantias constitucionais à reforma agrária e da função social da propriedade, a grande herança latifundiária do país impede uma democratização do campo. Nos últimos anos o MST, a CPT dentre outras organizações têm lutado para conquistar a tão sonhada reforma; é uma luta também jurídica.
Mesmo com as garantias constitucionais à reforma agrária e da função social da propriedade, a grande tradição latifundiária e o conservadorismo das autoridades estatais – principalmente o judiciário – o problema continua sem uma solução eficaz.
Porém, não há de se confundir a luta dos movimentos sociais – pela reforma agrária - com a reivindicação de direitos à propriedade fundiária dos indígenas. Diferenças pontuais, principalmente de cunho cultural – a relação dos indígenas com essa terra – é de fundamental importância; o objetivo desse trabalho é justamente pontuá-las, por meio de uma análise antropológica.
Para tanto, faz-se relevante um levantamento histórico da estrutura fundiária no Brasil, das lutas travadas pela terra. Permite-nos analisar as dificuldades enfrentadas para a garantia da democratização do campo, possibilita perceber as conquistas e reconhecer os defeitos nas ações empreendidas para que, através dessa análise, outros caminhos sejam propostos a fim de se efetivar os direitos humanos e de se construir uma ordem jurídica justa.
1 LEVANTAMENTO HISTÓRICO DA ESTRUTURA FUNDIÁRIA NO BRASIL
A distribuição de terras pela coroa portuguesa se deu através de grandes extensões chamadas capitanias hereditárias em que os donatários tinham como responsabilidade povoá-las, explorá-las e governá-las com recursos próprios e em nome da coroa. A coroa, aos poucos, retomou as capitanias extinguindo-as em 1759. Essas terras passaram a ser doadas em forma de sesmarias para aqueles que se comprometessem a explorá-las de forma produtiva e ainda em nome da Coroa. A questão da produtividade da terra foi sendo deixada de lado e o sesmeiro foi se tornando fazendeiro, senhor de engenho e assumindo posição cada vez mais privilegiada.[3]
No século XVIII os latifúndios ocupavam todas as regiões mais próximas das cidades e dos portos, regiões estas, economicamente importantes. Quando o Brasil se tornou independente, quase todas as terras já estavam repartidas, excetuando as habitadas pelos índios. Os donos da terra não permitiam lavradores que não fossem seus dependentes e, dessa forma, surgiram os posseiros que ocupavam pequenas extensões de terras entre uma propriedade e outra. À medida que a terra ia sendo valorizada seja por uma construção de uma rodovia, ferrovia ou outro empreendimento, os proprietários expulsavam os posseiros, independentemente do que eles tinham construído, independentemente do tempo ali vivido. Estes não tinham condições de acesso ao judiciário devido aos altos custos processuais, e devido ao grande prestígio dos latifundiários.[4]
Os conflitos por questões de terra se intensificaram, mais ainda, com a formulação da Lei de Terra (601) em 1850, uma vez que esta trouxe restrição à posse da terra. Segundo esta Lei, somente teria terra aquele que comprasse ou legalizasse as áreas em uso nos cartórios, pagando as devidas taxas. Dessa forma, a terra se transformou em mercadoria e os pobres, os ex-escravos, os posseiros e os imigrantes estavam, cada vez mais, distantes da possibilidade de terem terra e não lhes restava outra opção a não ser a de se submeter ao trabalho mal remunerado oferecido pelos latifundiários.[5]
Por toda a história brasileira, os camponeses lutaram pelo direito de viver, de ter dignidade, de possuir terras, de se desenvolver, mas as lutas, uma a uma, foram reprimidas, duramente, pelas forças dominantes e ainda hoje as lutas não cessaram. Assim, “na organização fundiária brasileira, o latifúndio, marca do Brasil colônia e do Brasil monárquico, foi mantido como marca da república. Dessa forma, acontecimentos como a guerra de Canudos ocorrem em momento histórico de resistência camponesa.” [6]
Considerando que não existe uma ordem vigente que não tenha dentro dela mesma uma forma de resistência, somado aos grandes desmandos da política, surgiram movimentos populares que ansiavam melhores condições de vida e com muita luta e derramamento de sangue estes foram“ abafados” pelos goverantes.
O maranhão, no primeiro período republicano, foi palco de insatisfações e tensões sociais, principalmente no meio rural. Logo no alvorecer da república, irrompeu um grave conflito no sertão, na cidade de Barra do Corda, envolvendo colonos, religiosos e indígenas esse conflito ficou conhecido como o “massacre de Alto Alegre” fato em que os índios Guajajaras revoltados com o avanço da colonização , com a ocupação de suas terras, massacraram padres que tentavam desenvolver o trabalho de catequese entre os ameríndios. Outro conflito de grande relevância no cenário maranhense foi o ocorrido em Codó, onde camponeses liderados por Manoel Bernardino reivindicavam melhores condições de vida no campo. Estes foram massacrados por tropas militares enviadas pelo governador Urbano Santos.[7]
A ausência do Estado na promoção de políticas públicas, aliada às péssimas condições vividas pelo trabalhador, além de provocar os já referidos conflitos sociais possibilitou a expansão de doenças e epidemias em conseqüência das precárias condições sanitárias da capital e de cidades do interior dentre elas a peste bubônica, varíola, gripe espanhola e impaludismo que alcançaram grandes proporções atingindo principalmente as camadas mais pobres da sociedade maranhense.[8]
Assim, apesar dos anos de luta, a estrutura fundiária no Brasil não teve, ainda, mudanças significativas. Há o predomínio da concentração de terras nas mãos de poucos em detrimento da miséria da grande maioria imperando, assim, as injustiças sociais.
2 AS LUTAS PELA TERRA
Basicamente as lutas pela terra são classificadas em três formas: as lutas messiânicas, as lutas radicais localizadas e espontâneas e as lutas organizadas com caráter ideológico e de alcance nacional. As messiânicas geralmente estavam ligadas às questões de fé em que um religioso liderava os seus seguidores. Um exemplo foi o movimento liderado por Antônio Cândido Conselheiro, em canudos, Bahia (1893-1897). Quanto às radicais localizadas e espontâneas ocorreram entre 1930 e 1954. As mais expressivas foram as dos posseiros da rodovia Rio - Bahia que se reuniram e fundaram uma entidade que os representasse. Eles exigiram do governo a desapropriação de uma fazenda do governo que havia sido invadida por fazendeiros. A desapropriação foi feita, mas logo em seguida houve o golpe militar e muitos dos trabalhadores foram presos e torturados. O MST (Movimento dos trabalhadores Rurais Sem terra) iria, 30 anos depois, ocupá-la novamente. Ainda, dentro desta categoria de lutas, houve a dos grileiros e governo contra posseiros em Espírito Santo no município de Ecoporanga. Com a ajuda das tropas militares, cedidas pelo governo, os grileiros queimaram as casas e roças dos posseiros e mataram alguns deles. Por sua vez, as lutas organizadas com caráter ideológico e de alcance nacional vieram a ocorrer entre os anos de 1950 e 1964 formadas a partir de três grandes organizações camponesas que lutavam pela reforma agrária: a Ultab (União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil), as Ligas Camponesas contavam com a representação do advogado e deputado Francisco Julião; e o Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra).[9]
A Ultab (União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil), criada pelo PCB em 1954, coordenava as associações camponesas e buscava alianças políticas entre operários e trabalhadores rurais. O Master (Movimento dos trabalhadores sem terra) surgiu a partir da resistência de 300 famílias de posseiros no município de Encruzilhada do Sul, no Rio Grande do Sul. Cresceu e se estendeu por toda a região gaúcha. Uma das formas de ação desse movimento é o estabelecimento de acampamentos, que hoje é uma das formas de luta do MST.[10]
A luta através da sindicalização rural, legalmente reconhecida, veio a partir de 1962. A primeira Convenção Brasileira de Sindicatos de Trabalhadores Rurais foi realizada em Natal, em julho de 1963. Dela participaram os sindicatos ligados à Igreja Católica. Houve a proposição da fundação da confederação dos Trabalhadores na Agricultura - Contag.[11]
A partir de 1964, foi instalada a ditadura militar na qual predominou o desrespeito à constituição, perseguições policial, prisões torturas, repressões, mas, mesmo assim, este quadro político não foi suficiente para barrar as lutas pela terra. Neste período a Igreja Católica foi de grande relevância nas lutas pela terra. [12]
No ano de 1970, houve várias revoltas camponesas o que levou o governo a criar o Grupo Executivo das Terras do Araguaia - Tocantins e o Gebam (Grupo Executivo do Baixo Amazonas) que prendiam os camponeses revoltosos, o que significou a militarização da questão da terra. Muitos conflitos travados entre fazendeiros e posseiros eram resolvidos a bala sem que houvesse nenhuma interferência desses órgãos. Estes acontecimentos fizeram surgir a Comissão Pastoral da Terra - CPT que veio a se tornar uma instituição de alcance nacional; e a partir de sua atuação no sul do país, surgiu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra- o MST em 1985, ano em que se começava um “novo” tempo com o fim do regime militar e o retorno do sonho da reforma agrária.[13]
3 A FORMAÇÃO DO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST) E A LUTA PELA REFORMA AGRÁRIA
O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) é um movimento social que surgiu da própria luta pela terra. A partir dos debates e encontros promovidos pelo CPT, nos quais se reuniram as diversas lideranças, surgiu a proposta de organização própria do MST que se concretizou em 1985. O movimento atingiu grandes proporções de forma que em 1990 encontrava-se organizado em 23 estados brasileiros. A sua consolidação e expansão não se deram pacificamente. O movimento tem enfrentado várias formas de resistência, principalmente da UDR (União Democrática Ruralista) que luta a favor dos latifundiários financiando, inclusive, campanhas eleitorais para manter no Congresso Nacional uma bancada conservadora que crie obstáculos à reforma agrária. Mesmo assim, continua crescendo e tem sido reconhecido como um movimento de organização jamais visto na história brasileira. Ele tem promovido congressos, encontros como um meio de fortalecer o movimento, discutir estratégias de ação e divulgar seus objetivos e a sua luta pela reforma agrária.[14]
O MST, dentre seus objetivos, tem a proposta de lutar por uma sociedade mais justa e sem exploradores, em que haja terra para todos e que esta seja utilizada para o bem da sociedade, além de buscar igualdade de direitos econômicos, políticos, sociais e culturais, combater todas as formas de discriminação. Quanto à reforma agrária, propõe uma modificação na estrutura da propriedade da terra, subordinando-a a justiça social de forma que venha atender às necessidades do povo, garantindo a produção de alimentos para que a fome seja erradicada. Lutam pelo desenvolvimento rural, pela educação, saúde e lazer para todos.[15]
O Estado Democrático de Direito é fundado na dignidade da pessoa humana. Tem como objetivos, dentre outros, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos. (CFB/1988, artigo 3º III e IV). As finalidades políticas de todo o ordenamento jurídico devem ser encaradas sob a perspectiva da consecução do bem comum.
As estratégias de ação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que visam promover pressão social são a ocupação, acampamentos permanentes, marchas pelas rodovias, jejuns e greves de fome, ocupação de prédios públicos, acampamentos nas capitais, acampamentos diante de bancos, manifestações nas grandes cidades dentre outros.[16]
Mas, apesar de todo o esforço e da luta legítima do movimento, como bem observa a Profa. Delze dos Santos, infelizmente:
A imagem que muitas pessoas têm do MST é ainda aquela produzida pela mídia – via de regra defensora iníqua da estrutura fundiária no Brasil -, marcada, ora pelo rótulo da violência, ora pelo preconceito e pelo descaso com o qual os trabalhadores rurais foram, e ainda hoje são, no Brasil.[17]
Uma das grandes lutas do MST e de outros movimentos sociais legítimos é justamente contra a criminalização. E, apesar da mídia e o senso comum da população, aliadas a uma idéia de inviolabilidade da propriedade privada, o ordenamento jurídico brasileiro consagra direitos à reforma agrária e a desapropriação de terras “a própria constituição federal expressa a necessidade de uma reforma agrária e exige que a propriedade cumpra a função social” [18].
No que diz respeito à função social da terra, o inciso XXIII do art. 5º e os artigos 184 e 186 da Constituição Federal, preceituam que o proprietário da terra deve usá-la de forma adequada e racional, tendo o cuidado de preservar os recursos naturais e o meio ambiente; além de observar as leis trabalhistas garantindo que o trabalhador seja beneficiado, também, com a produção. A propriedade que não estiver dentro deste parâmetro deve ser desapropriada e destinada ao Programa Nacional de Reforma Agrária.
4 A LUTA DOS ÍNDIOS PELA TERRA E SEUS NOVOS DIREITOS
O conflito entre índios e brancos, no Brasil, tem origens seculares. Iniciou-se com o Brasil Colônia, em que as ações dos brancos em relação aos índios eram de busca, localização e transladação destes para um determinado local, missões, onde se organizavam em aldeias.[19]
No período imperial, houve o sistema de diretorias. Da mesma forma, os índios eram removidos de seu lugar para serem agrupados em aldeias, que seriam administradas por diretores parciais. Nos dias atuais, não tem sido diferente. Percebe-se o sistema de terras indígenas e com ele, a continuidade e aprimoramento da tentativa de retirar os índios de seus territórios tradicionais.[20]
A partir dessas relações que visam dissociar o índio da terra é que surgem os constantes conflitos no cenário das relações interétnicas no Brasil. Portanto, a luta pela terra é, e sempre foi, o foco principal das disputas entre índios e brancos.[21]
Conforme Kátia Núbia:
O Estado do Maranhão destaca-se por ser uma região marcada por conflitos interétnicos relativos à disputa pela terra, além de possuir uma significativa presença indígena. São cerca de aproximadamente 15.000 índios, pertencentes a 08 nações indígenas: Os Tenetehara(Guajajara), os Awa(Guajá), os Kaapor(Urubu), os Krikati, os Pukobiê(Gavião), os Ramkokamekra e Apaniekra(Canela) e os Kre pu’m Kateyê.[22]
Os índios têm sido expulsos de suas terras de forma legalizada, com política de “proteção” implementada pelo Estado que, na primeira República, criou o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) hoje extinto, e com a instituição da FUNAI em 1967, órgão ainda, atuante. Segundo o Professor Joan Botelho, estes órgãos não foram capazes de proporcionar vida digna aos primeiros habitantes e nem garantiram seus direitos, ao contrário, muitas vezes até corroboraram ilegalmente com os brancos, por exemplo, com a expulsão dos ameríndios de suas terras.[23]
A expulsão dos índios, de suas terras, nem sempre se deu de forma pacífica, muitos grupos indígenas maranhenses resistiram, é o caso dos Guajajaras de Grajaú e de Barra do Corda. A história registra que em 1901 ocorreu um grande conflito conhecido como o “Massacre de Alto Alegre”, anteriormente referido, no qual muitas vidas se perderam dentre elas vidas de religiosos capuchinhos, colonos e índios, agravando, mais ainda, as relações interétnicas.
Segundo Joan Botelho:
Os índios lutando em defesa de suas terras, geralmente são presos, e até mortos. Só no ano de 1991, foram assassinados no Maranhão sete índios em decorrência da invasão de suas terras por madeireiras e grupos econômicos. O INCRA tem contribuído para aumentar o conflito entre brancos e índios, a partir da implantação de projetos de colonização em área indígena, promovendo a expulsão destes de seu território. Somado a tudo isso, há em marcha, a constante invasão de madeireiros nos territórios, mesmo os demarcados, transformando totalmente o habitat natural do silvícola.[24]
É sobretudo a questão de demarcação de limites e de reservas indígenas, o cerne desta problemática. As terras são invadidas por fazendeiros, lavradores, grileiros, madeireiros, inclusive pelo Projeto Carajás, já que a ferrovia corta as reservas indígenas. Duas áreas indígenas não foram, demarcadas: dos Guajás e Krikatis.[25]
Segundo Kátia Núbia, a área dos Krikatis foi demarcada em 1997, no entanto, não foi homologada, constituindo, dessa forma, palco de conflitos entre índios e segmentos da sociedade regional, há mais de um século. Ainda destaca a referida professora que a não demarcação da terra favorece a entrada de não–índios na região, agravando os conflitos. Ela, ainda, reconhece que a demarcação, não constitui, por si mesma, garantia de não invasão do território por parte de não-índios, o que coaduna com os relatos do professor Joan Botelho, quanto à invasão das terras indígenas demarcadas.[26]
A professora Kátia Núbia desenvolveu pesquisa criteriosa, que analisa a questão da demarcação de terras dos Krikatis. O levantamento histórico do conflito entre os índios e os fazendeiros da região revela o forte jogo de poder e atuação deficiente da FUNAI, que ora defendia os interesses dos índios, ora favorecia aos fazendeiros. A grande questão estava relacionada com a quantidade de terra que deveria ser demarcada, considerada pelos fazendeiros ser terra demais para poucos índios. Os índios por sua vez, lutavam por uma área que lhes permitissem o desenvolvimento de suas atividades de pesca, caça, cultivo agrícola, além de suas atividades ritualísticas enfim, assegurar o desenvolvimento e a manutenção de sua cultura.[27]
A despeito do que prega a Constituição Federal, que estabeleceu prazo máximo para demarcação das terras indígenas em 5 anos, vê-se claramente que o direito, constitucionalmente garantido, não foi efetivamente concretizado, mesmo depois de duas décadas da CF/88. Convém mencionar, que as constituições anteriores à de 1988 tratava a questão indigenista com visão integralizadora, com base na inferioridade do índio e na necessidade de sua adequação às condições nacionais. O grande diferencial da Constituição de 1988 é que houve ampliação dos direitos indígenas, suprimindo essa idéia integralizadora em favor do reconhecimento, valorização e promoção da preservação da identidade cultural, mudanças estas provenientes das lutas dos movimentos sociais, entre 1960 e 1980, que reivindicavam o reconhecimento das diferenças. Portanto, a luta pela terra, aqui, não está centrada a fatores econômicos, melhor distribuição das riquezas, vai além, visa ao direito de preservação da cultura e identidade do índio, enquanto sujeito de direito, bem como do grupo social do qual faz parte respeitando-lhe as diferenças.[28]
A partir do exposto, pode-se perceber a carência, no que diz respeito, à efetivação dos direitos conquistados pelos movimentos sociais e assegurados constitucionalmente. Portanto, ainda há muito que mudar, não se pode negar a importância do papel desses novos atores, uma vez que foi fundamental para o rompimento com a cultura jurídica monista que desconhecia as diferenças, a pluralidade manifesta na sociedade, e seguia critérios de legitimidade meramente formais.[29]
Portanto, conforme assevera Paulo Suess:
Não tem cabimento algum propor ações indigenistas que não busquem a ruptura radical da situação presente: liquidação das relações coloniais externas e internas, rompimento do sistema classita da exploração e de dominação étnica, deslocamento do poder econômico de uma minoria oligárquica para as massas majoritárias, criação de um estado verdadeiramente multi-étnico no qual cada etnia tenha direito à autogestão e à livre escolha de alternativas sociais e culturais.[30]
5 OS ÍNDIOS E SUA RELAÇÃO COM A TERRA
A relação das sociedades indígenas com a terra é assentada em preceitos essencialmente diferentes dos utilizados pelos movimentos sociais – especificamente, o MST. Como a própria Constituição federal define, no §1º do art. 231:
São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Portanto, é notório que a terra para os índios não tem um sentido de proveito principalmente econômico, na verdade quer-se garantir a reprodução e perpetuação de seus usos e costumes culturais. Garantir a preservação dos indígenas enquanto sociedades autônomas, dotada de Direitos.[31] Não é apenas reconhecer a posse de terras para o plantio. Dessa forma, pode-se dizer que:
A nova Constituição inovou em todos os sentidos, estabelecendo, sobretudo, que os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam são de natureza originária. Isso significa que são anteriores à formação do próprio Estado, existindo independentemente de qualquer reconhecimento oficial.[32]
Nesse sentido, percebe-se que a relação dos indígenas com terra é muito mais profunda, perpassando os interesses econômicos ou políticos. É garantia de sua identidade enquanto sociedade uma porção de terra. Por isso não que se confundir a legítima luta dos trabalhadores sem terra com a luta indígena pela demarcação de suas terras – que são originárias, conforme visto acima.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A democratização do campo é uma necessidade. Mas, apesar de um amparo legal e, principalmente, constitucional; dos inúmeros esforços de movimentos sociais – os quais o MST é o grande representante - vimos que muitas são as dificuldades para a efetivação de políticas eficazes de reforma agrária no Brasil.
A conscientização da população e do próprio judiciário deve acompanhar as leis e políticas que visem esse fim. Afinal, é uma reivindicação legítima. A propriedade não é um bem de todo inviolável. Se esta não cumpre a sua finalidade, por que não permitir que pessoas em uma busca legítima pela sobrevivência não possam usufruí-la?
Relevante é, todavia, destacar que a luta (legítima) pela reforma agrária não deve se confundir com a demanda indígena pela terra, haja vista sua relação peculiar com esta. As sociedades indígenas reivindicam algo que sempre foi seu, sendo inclusive um direito reconhecido expressamente pela Carta política de 1988.
O Direito à demarcação de suas terras é a garantia de perpetuação de seus costumes, sua cultura, e seu modo de vida. É a garantia de seu reconhecimento enquanto sociedade, dotada de características e identidade – em sentido antropológico – próprias. O Estado brasileiro, formado pela uma variada gama de povos diferenciados não pode fechar os olhos para essa realidade.
O estudo do direito não se limita a mera utilização e aplicação de normas. Diz respeito à efetivação, a realização dos direitos e o acesso á justiça, ou seja, à ordem jurídica justa. O papel de Estado-juiz não deve ser de um mero aplicador do Direito, a “boca da lei” como dizia a exegese do código de Napoleão. Deve construí-lo diariamente e, renová-lo a fim de atender o pluralismo e atender as novas demandas por vir. Realizando assim a verdadeira promoção da justiça por meio da efetivação dos comandos constitucionais.
REFERÊNCIAS
APARÍCIO, Adriana Biller. Novos atores e movimentos étnico-culturais: antropologia jurídica na rota das identidades In: Elementos da Antropologia Jurídica. (Org.) Thais Luzia Colaço. Florianópolis: conceito Editorial, 2008.
BOTELHO, Joan. Conhecendo e debatendo a história do Maranhão. São Luís: Fort Com. Gráfica e Editora, 2008.
CORRÊA, Kátia Núbia Ferreira. Muita terra para pouco índio? O processo de demarcação da Terra Indígena Krikati. São Luís: Edições UFMA/PROIN, 2000.
INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/constituicoes/direito-a-terra> Acesso em: Maio 2011.
LAUREANO, Delze dos Santos. O MST e a Constituição: Um sujeito histórico na luta pela reforma agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
MORISSAWA, Mitsue. A História da luta pela terra e o MST. São Paulo. Editora: Expressão Popular, 2001.
SUESS, Paulo. Em defesa dos povos indígenas: documentos e legislação. Edições Loyola. São Paulo, 1980.
[1] Aluno do 6º período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB). (madp20@gmail.com);
[2] Aluna do 6º período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB). (meirislei@hotmail.com);
[3] MORISSAWA, Mitsue. A História da luta pela terra e o MST. São Paulo. Editora: Expressão Popular, 2001. p. 69.
[4] Ibid. Ibidem.
[5] Ibid. p. 70.
[6] LAUREANO, Delze dos Santos. O MST e a Constituição: Um sujeito histórico na luta pela reforma agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2007. p. 47.
[7] BOTELHO, Joan. Conhecendo e debatendo a história do Maranhão. São Luís: Fort Com. Gráfica e Editora, 2008. p. 174.
[8] Ibid. p. 17.
[9] LAUREANO, Delze dos Santos. O MST e a Constituição: Um sujeito histórico na luta pela reforma agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2007. p. 79.
[10] Ibid. p. 94.
[11] Ibid. Ibidem.
[12] Ibid. p. 100.
[13] Ibid. p. 105.
[14] Ibid. p. 146.
[15] Ibid. p. 153.
[16] Ibid. p. 204.
[17] LAUREANO, Delze dos Santos. O MST e a Constituição: Um sujeito histórico na luta pela reforma agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2007. p. 32.
[18] Ibid. p. 58.
[19] GOMES apud CORRÊA, Kátia Núbia Ferreira. Muita terra para pouco índio? O processo de demarcação da Terra Indígena Krikati. São Luís: Edições UFMA/PROIN, 2000. p. 68.
[20] Ibid. p. 19.
[21] Ibid. Ibidem.
[22] Ibid. Ibidem.
[23] BOTELHO, Joan. Conhecendo e debatendo a história do Maranhão. São Luís: Fort Com. Gráfica e Editora, 2008. p. 247.
[24] Ibid. p. 248.
[25] Ibid. p. 247.
[26] CORRÊA, Kátia Núbia Ferreira. Muita terra para pouco índio? O processo de demarcação da Terra Indígena Krikati. São Luís: Edições UFMA/PROIN, 2000. p. 20.
[27] CORRÊA, Kátia Núbia Ferreira. Muita terra para pouco índio? O processo de demarcação da Terra Indígena Krikati. São Luís: Edições UFMA/PROIN, 2000. p. 83.
[28] APARÍCIO, Adriana Biller. Novos atores e movimentos étnico-culturais: antropologia jurídica na rota das identidades In: Elementos da Antropologia Jurídica. (Org.) Thais Luzia Colaço. Florianópolis: conceito Editorial, 2008. p. 79.
[29] Ibid. p. 87.
[30] SUESS, Paulo. Em defesa dos povos indígenas: documentos e legislação. Edições Loyola. São Paulo, 1980. p. 20.
[31] INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/constituicoes/direito-a-terra> Acesso em: Maio 2011.
[32] Ibid.