Os Fervores de Uma Descoberta Negativa

Por Julio Cesar Souza Santos | 26/11/2016 | Sociedade

Por Que os Marinheiros da Idade Média Acreditavam na Existência de um Continente Austral? Quem Percebeu Que a Austrália Não Fazia Parte do Continente Austral? Que Povos Habitavam o Círculo Ártico Naquela Época?

O mesmo conservadorismo que fez os marinheiros trocarem as cartas desenhadas à mão pela impressas ou admitir a possibilidade da existência de novos continentes, haveria de fazê-los relutantes em abandonar suas ilusões tornadas veneráveis pelo tempo. 

A mais atraente e duradoura dessas ilusões foi a crença na existência de um grande continente austral. Aumentava-lhe a atração o fato de ainda não ter sido desmentido, e correspondia ao amor universal pela simetria. Os antigos Gregos – sabedores de que a Terra era uma esfera e que havia uma grande massa de terra a norte do equador – acreditavam que, para contrabalançar, tinha de haver uma massa de terra similar ao sul. 

Depois, cerca do ano 43 da nossa era, Pompônio Mela fez esse continente austral tão grande que o Ceilão era a sua ponta setentrional. Mapas que afirmavam seguir Ptolomeu continuavam a mostrar um vasto continente antártico, inscrito como a “Terra desconhecida de Ptolomeu”. Em fins do século XV, esse mítico continente preso à África, fazia do Oceano Índico um grande lago, o qual jamais poderia ser alcançado da Europa por mar. 

Quando Bartolomeu Dias contornou o Cabo da Boa Esperança e provou a existência de uma passagem marítima para o Oceano Índico, o continente austral teve que encolher nessa parte do globo. E, quando Fernão de Magalhães conseguiu abrir caminho através do estreito que leva o seu nome e entrar no Pacífico, os autores de mapas continuaram convencidos de que a Terra do Fogo – a sul – era a costa norte do mítico continente. 

Os mapas europeus do século XVII continuaram mostrando esse continente um tanto ou quanto vagamente definido, mas estendendo-se para norte na direção do equador. Os exploradores europeus do Pacífico jamais deixaram de se sentir atraídos pela descrição de Marco Polo de um Eldorado meridional e, à medida que as Américas iam sendo delineadas e os contornos da Ásia e da África se tornavam mais nítidos, os autores de mapas ocidentais exercitavam a sua imaginação preenchendo os espaços antárticos vazios do globo. 

Descobertas europeias de algumas terras “lá de baixo”, serviam para empurrar o continente mais para o sul. Em 1642, Abel Tasman – navegador holandês – foi encarregado de explorar “A Grande Terra do Sul” (Austrália) em cujas costas já fora estabelecido contato. Competia-lhe descobrir a “parte que continua desconhecida do globo terrestre”. Tasman circum-navegou a Austrália, provando que, também ela, não fazia parte do mítico continente austral. 

No século que seguinte um geógrafo escocês – à serviço da Cia. Das Índias Orientais Inglesas – fez dessa hipotética Grande Terra do Sul a sua obsessão e apresentou a argumentação mais detalhada da época. Alexandre Dalrymple criou a profissão de cartógrafo dos mares e veio a ser o primeiro hidrógrafo da Marinha, em 1795. Desde a juventude seus heróis eram Colombo e Fernão de Magalhães, com os quais queria rivalizar descobrindo o seu próprio continente. 

A Royal Society de Londres planejou uma expedição ao Taiti, pois o governo britânico via nisso um pretexto para um novo esforço de navegação para a orla inexplorada do Pacífico. Se a “Grande Terra do Sul” não existisse, a viagem poderia acabar com o mito de uma vez por todas e, Dalrymple, que se considerava a maior autoridade no tocante ao continente não cartografado, esperava comandar essa expedição. 

Infelizmente para Dalrymple, a Marinha Britânica realizou reformas radicais na nomeação de comandantes, estabelecendo novos padrões profissionais para eles e a nomeação de aristocratas bem relacionados já não era permitida. Diante disso, Dalrymple era pouco indicado para uma missão tão exigente, pois fora demitido da Cia. das Índias Orientais Inglesas por falta de tato nas suas relações nas ilhas do Pacífico e, ademais, ele sofria de um caso grave de gota. No entanto, o Almirante Lorde Hawke estava disposto a permitir-lhe que acompanhasse a expedição como “observador” civil, mas Dalrymple afastou-se magoado. 

A escolha de Hawke foi por um oficial pouco conhecido (James Cook) que possuía instrução formal, leitura rudimentar e escrita obtida em escolas elementares. Aos 18 anos, ele foi aceito como aprendiz por um armador que transportava carvão em barcas carvoeiras e, durante 9 anos, ele percorreu mares bravios. Ao lhe oferecerem o 1º comendo, Cook recusou e ofereceu-se como 1º marinheiro para a Marinha Real Inglesa em 1755. 

Alto e vigoroso, atraiu as atenções graças à sua presença imponente, à sua afabilidade e à sua perícia em águas não cartografadas e, dessa forma, Cook foi subindo na hierarquia dos suboficiais. Por isso, não surpreende que o Almirante Hawke nomeasse Cook para comandar a expedição ao Taiti, pois já dera boas provas em combate, em mares bravios. Além disso, era um avaliador competente de costas traiçoeiras e um curioso observador dos fenômenos astronômicos. 

 

Em maio de 1768, James Cook foi promovido ao posto de tenente, passando assim a ser um oficial de carreira. O navio carvoeiro foi batizado de Endeavor, recebendo um revestimento de madeira e abastecido para 18 meses. Partiu de Plymouth em agosto de 1768 com uma tripulação de 94 pessoas. Navegou para sudoeste com bom tempo rumo à Ilha da Madeira. Depois disso, chegou ao Rio de Janeiro, contornou o Cabo Horn e chegou ao Taiti em abril de 1769. 

Completadas as observações astronômicas, empreendeu sua missão secreta – e mais importante – a demanda do grande continente austral e, possivelmente, a prova de que ele não existia. Ter êxito numa descoberta negativa era muito mais difícil do ter sucesso em encontrar um objetivo conhecido. O capitão James Cook satisfazia as condições para ser o maior descobridor negativo do Mundo, pois ele possuía capacidade de organização, vasto conhecimento de cartas marítimas e coragem de tentar. 

As ordens que ele recebeu facultavam-lhe a escolha entre regressar pelo leste ou oeste ao redor do Cabo da Boa Esperança e, quando o Verão austral terminava, navegar para leste nas latitudes antárticas era procurar problemas. Por isso, Cook decidiu seguir para oeste, explorar a costa leste da Nova Holanda (Austrália) e rumar depois para as Índias orientais em direção a Inglaterra (a volta do Cabo da Boa Esperança). 

Sua descoberta ao largo da costa foi pouco promissora, pois a Grande Barreira de Recifes da Austrália é a maior estrutura construída por criaturas vivas, a qual possui uma extensão de cerca de 2000 km. As cartas antigas classificavam aquela costa como perigosa e advertiam da existência de baixios, mas apesar disso Cook conseguiu abrir caminho. Como efetuava prospecção costeira tinha que se manter próximo a costa e, sem saber, acabou navegando em plena Barreira de Recifes. 

De repente o Endeavor bateu no coral e ficou empoleirado num recife, entrando água nos porões que atingiram 1,20 m de altura. Eles levantaram âncoras para tentar safar-se o navio e, depois disso, atiraram pela borda umas 50 toneladas de lastro, incluindo vários canhões. Graças a uma combinação de sorte, coragem e perícia o carvoeiro safou-se do recife, mas tornava-se necessário fazer qualquer coisa nos rombos da quilha. 

Um tripulante lembrou-se quando naufragou e viu seu navio salvar-se por um inusitado “vedamento”. Cook resolveu experimentar a manobra, cosendo à vela bocados de madeira e estopa, cobertos com pontas de corda e esterco de animais. O resultado bastou para manter o Endeavor flutuando até a foz do rio mais próximo, onde abicou um mês para os devidos reparos. Entretanto, Cook acabou aprendendo a sobreviver nos trópicos, comendo cangurus, aves e tartarugas. 

A perigosa passagem que ele realizou confirmou que a Austrália se separava da Nova Guiné na parte norte e, depois disso, Cook prosseguiu para a Batávia, em Java, nas Índias orientais, contornou o Cabo da Boa Esperança e voltou à Inglaterra em junho de 1771. Seu talento realista para avaliar suas realizações era raro entre os grandes navegadores. Ele relatou ao Almirantado que “embora os descobrimentos feitos nessa viagem não sejam grandes, tenho a pretensão de que poderão merecer a atenção de suas senhorias e, embora tenha falhado no descobrimento do tão falado continente austral (que talvez nem exista) tenho a certeza de que não me podem imputar parte alguma desse malogro”. 

O recém-promovido capitão de fragata James Cook obteve dois novos navios carvoeiros recentemente construídos e, desta vez, seu plano era solucionar o problema da Grande Terra do Sul. Para atingir seu objetivo, a viagem tinha de ser uma circum-navegação completa da Terra pela latitude mais extremo-austral possível. Na viagem anterior ele chegara ao Pacífico pelo Cabo Horn e, nesta viagem, propunha-se descer o Atlântico, passar o Cabo da Boa Esperança e prosseguir a leste a volta das regiões do Polo Sul terrestre. Pois, se houvesse realmente um continente austral que se prolongasse para zonas inabitáveis, não poderia escapar-lhe. 

Zarpou de Plymouth em julho de 1772 na que seria uma das maiores viagens de descoberta em navios à vela da história. Nunca antes houvera uma viagem tão longa com um objetivo investigador determinado e fixo. Não se tratava de procurar um Eldorado, nem encontrar ouro ou prata e, muito menos, capturar escravos. Desta vez Cook ia procurar principalmente resposta a uma pergunta. 

O falado continente austral se encontrava realmente ali? A procura dessa resposta levou-o a algumas áreas mais inóspitas do globo e revelou uma paisagem marítima como nunca fora vista outra, pois a Antártica era perigosamente diferente do Ártico. Cook desvendaria um novo cenário de gelo montanhoso que transcendia a capacidade de crença da temperada Europa. 

 

 

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