OS DISCURSOS NA OBRA MEMÓRIA DA CASA DOS MORTOS DE DOSTOIÉVSKI

Por tiago fernandes alves | 29/01/2010 | Filosofia

OS DISCURSOS NA OBRA MEMÓRIA DA CASA DOS MORTOS DE DOSTOIÉVSKI

SOB O OLHAR DA TEORIA DE JAMES SCOTT

TIAGO FERNANDES ALVES*

 

RESUMO

As estruturas de dominação e opressão podem sofrer danos significativos muito além das impostas por formas de resistência declarada e da ação pela luta política engajada. Através das teorias de James Scott pudemos sacar à luz formas ocultas, porém eficazes de resistência descritas na obra Memória da Casa dos Mortos de Dostoiévski. Boatos, fofocas e discursos anônimos permitiram que os encarcerados da obra de cunho realístico se opusessem de maneira eficaz e contundente às formas de dominação e opressão estabelecidas dentro do presídio. Muito mais que meros discursos sem fundamento e eficácia, as teorias scotianas, servindo como base analítica objetivando a compreensão da obra de Dostoiévski, nos servem como elementos essenciais para esmiuçá-la demonstrando de que maneira essas formas de resistência podem se impor diversas e eficientes.

PALAVRAS CHAVE: resistência, dominação, Dostoiévski, James Scott.

 

INTRODUÇÃO

A teoria sobre as formas de resistência de James Scott nos ajudará a compreender o romance Memória da Casa dos Mortos no que se refere às relações de poder e dominação que se estabelecem entre os encarcerados em um presídio que se encontrava nas remotas regiões da Sibéria, Rússia. A história, verídica, trata de um período que vai de abril de 1849 até 1854, momento em que o próprio autor, Dostoiévski, que na obra recebe o nome de Alieksandr Pitróvitch, se encontrava preso por questões políticas por seu engajamento na luta da juventude democrática russa pelo combate ao regime autoritário do Tsar Nicolau I. O autor retrata as condições as quais estavam submetidos os presos naquele presídio: as relações sociais entre os presos; as relações dos presos com certos animais que ali se encontravam; relações de poder estabelecidas entre os presidiários e os diretores do presídio. Mas o autor vai muito além das meras impressões das relações entre os seres humanos quando descreve com magistral simplicidade as implicações que as mudanças de clima infundiam nos presos,

·         Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande.

trazendo para as cenas sociais muito mais que relações entre homens, como também relações entre homem e natureza, e o modo como ela era fundamental no comportamento dos presos.

Temos por finalidade estabelecer uma correlação entre as formas de resistência, muitas vezes ocultas e não declaradas, descritas na teoria de James Scott que aparecem dentro da obra de Dostoiévski em uma tentativa de demonstrar que certas formas de resistência políticas e sociais não se fazem necessariamente declaradas para serem efetivas. Na obra, Dostoiévski descreve com maestria como certos rumores, boatos e discursos anônimos afetam diretamente as estruturas hierárquicas de poder em suas mais diversas maneiras, onde os conceitos e teorias scotianos nos ajudarão a compreender de que maneira esses discursos e práticas ocultas de resistência abalaram as estruturas de poder e dominação.

 

JAMES SCOTT NA OBRA DE DOSTOIÉVSKI

As formas de resistência, declaradas ou não, estão presentes em toda obra de Dostoiévski. Discursos anônimos, o anonimato, o rumor, o motim, são alguns dos conceitos trabalhados por Scott que aparecem com frequente regularidade na obra. A análise será embasada em três capítulos do livro de James Scott Los Dominados y El Arte de la Resistencia: o capítulo terceiro intitulado El Discurso Público como una Actuación Respetable, o capítulo sexto La voz Dominada: Las Artes del Disfraz Político, e o capítulo sétimo La Infrapolítica de los Grupos Subordinados.

Scott, em sua obra, se refere às relações de dominação utilizando termos da dramaturgia. Estas analogias e a perspectiva mesosociológica são, em certo sentido, para se diferenciar da micro sociologia própria da etnometodologia que permite aproximar seu trabalho ao de Ervin Goffman, da Escola de Chicago, e este como sendo de fundamental importância na constituição de seu trabalho aqui utilizado como referência para análise.

Nesta obra Scott distingue os discursos públicos dos discursos ocultos. Segundo o autor os primeiros se diferenciam por serem específicos de um espaço social determinado e de um conjunto dado de atores. São discursos que contém atos de linguagem e uma vasta gama de práticas sociais. Neste sentido, as práticas de dominação criam discursos ocultos, e quanto mais árduas são estas práticas maior será a riqueza dos discursos ocultos em iguais proporções. É criada uma subcultura, um núcleo de resistência que reage contra os grupos dominantes. Scott afirma que ambos os discursos geram espaços de poder e interesse cada um a seu modo, onde estas relações de dominadores e dominados constituem encontro e disputa entre os discursos público de uns e de outros. Segundo o autor estas dissidências ideológicas se expressam através de práticas dirigidas a renegociar discretamente as relações de poder. Constitui-se uma ferrenha disputa entre os fins ideológicos das camadas dominantes onde desejam imprimir nas camadas dominadas o nobre sentido justificador de sua dominação, onde as desigualdades sociais são inevitáveis e as relações de poder se constituem de modo a serem naturalizadas.

Noções de dignidade e autonomia intervêm significativamente para se compreender as complexas relações sociais dentro de um marco social estratificado. A rotinização, termo utilizado por Weber, das relações de dominação, levam à uma justificação ainda mais contundente das relações de poder, onde, com o tempo, segundo Scott, se produz uma legitimidade ainda mais eficaz, alimentando uma construção ainda mais elaborada do discurso público.

Segundo Scott a resistência requer uma contraideologia, uma antihegemonia inventadas para criar um sistema de defesa que assegure a sobrevivência das identidades e dignidade dos oprimidos. Essa força contrahegemônica cria espaços de resistência nos rincões abastados (mercados, cozinhas, becos, quintais) onde a liberdade de expressão e a autonomia dos grupos dominados podem fluir, fazendo com que os sujeitos se reencontrem consigo mesmos, em uma tentativa frenética para não deixar morrer suas identidades enquanto indivíduos e enquanto sujeitos pertencentes a um grupo. Assim, segundo Scott, são criados grupos e símbolos, rituais e até mesmo dialetos que devem, em certo sentido, dar sentido ao grupo enquanto algo que se diferencia dos outros. Movimentos messiânicos, possessões espíritas, danças e lutas como capoeira, são invenções de modos de resistência que invertem os modos de dominação dos grupos dominantes, extraindo de nuances culturais e ideológicas formas de diferenciação de outros grupos. Aqui caberia a noção de infrapolítica scotiana, onde se designam conjunto de formas discretas de resistência que recorrem às formas indiretas de expressão. Rumores e boatos entram aqui como modos simbólicos de resistência ao que Scott chama de “frustación de la acción recíproca”, ou seja, a aceitação obrigatória de um relação de desigualdade total. Contos populares, anonimato, cantigas, entram aqui como armas simbólicas contra a dominação sofrida. São maneiras quase impossíveis de serem abortadas, pois não possuem origem nem dono, são pequenas resistências dentro dos interstícios do sistema de dominação, quase inapalpáveis, escorregadias e incontroláveis.

Através destes capítulos esperamos fazer vir à tona algumas das relações e dos discursos descritos por Dostoiévski no tocante a uma compreensão das relações de poder estabelecidas no presídio e de como esses discursos, muitas vezes ocultados por uma tênue e imbricada capa de sujeição e de lutas permanentes entre os atores que disputam tanto o poder entre os presos quanto entre estes e os ditos chefes do presídio, e de como muitas vezes esses ditos chefes, por suas funções dentro do presídio, passam, através de uma luta discursiva, a exercer um papel de agentes passíveis em situações nas quais deveriam manter um posicionamento mais ativo. Em toda obra Dostoiévski descreve situações das quais podemos extrair elementos e discursos que podem, de certa maneira, desconstruir padrões de poder hierarquicamente estabelecidos através de um fazer político de resistência frente as forças opressivas, que se faz permear na forma de discursos anônimos e de rumores que terminam por desestabilizar uma forma de poder antes inatingível e inabalável.

 

TROCA DE PODERES

Em uma passagem do livro ocorre uma troca de comando da diretoria dentro do presídio. Um antigo diretor, extremamente violento- pois este se utilizava de castigos corpóreos brutais, onde muitas das condenações levavam a práticas de espancamento com as chamadas vergastadas, ou seja, pedaços de madeira sujeitados pelos guardas que ficavam em formação de corredor polonês e que eram golpeadas nas costas dos presos enquanto passavam andando, pois se corressem eram obrigados a retornar ao início do corredor polonês- foi substituído por outro que, por causa dos rumores de sua passividade e de quase incapacidade de impor castigos severos, não teve seu nome muito temido entre certos presos que são descritos muitas vezes como bestas incontroláveis, segundo o próprio Dostoiévski. Enquanto o antigo diretor estabeleceu uma relação de respeito aos presos através do terror e do medo que empunhava, e também pelos rumores de que tinha sido um antigo veterano de guerra muito cruel, o novo diretor era tido como “frouxo” e incapaz de castigar os presos como devia. Com isso seu papel de agente repressor e de controlador daquelas bestas humanas foi quase que completamente desfeito por simples rumores que logo foram revistos, pois o novo diretor apesar da fama de incapaz demonstrou ser tão severo quanto o antigo, porém sua fama nunca chegou a ser tão assustadora quanto a do anterior.

O rumor neste caso assumiu um papel fundamental para o estabelecimento de novas práticas de relações de poder dentro do presídio. Certas práticas como beber e a própria fabricação da bebida foram restabelecidas com a troca de diretores, pois o anterior por sua fama era demasiadamente temido para ser desafiado, e o novo, ao chegar e encontrar todos os presos bebendo e ocupados na fabricação das bebidas, não se importou muito com o que viu, pois vislumbrou tal cena como algo do cotidiano e que perpassava ao cumprimento da lei dentro do próprio presídio.

Dostoiévski descreveu de forma interessante como meros rumores e fofocas desestabilizaram as antigas relações de poder previamente estabelecidas. A função de agente repressor foi restabelecida por via de boatos que nunca chegaram a ser confirmados, uma vez que eram apenas boatos, mas que se petrificaram na mentalidade coletiva dos detentos, dando-lhes uma maior liberdade e fôlego diante das forças opressoras. Os boatos sobre a “frouxidão” do novo diretor deram novo alento aos presos que se sentiram mais confortáveis e puderam retomar um cotidiano com mais regalias em relação a certas práticas que antes eram terminantemente proibidas frente ao antigo chefe do presídio.

 

A FUGA

No capítulo XX intitulado A Fuga, ocorre uma importante situação na qual alguns presos conseguem fugir de maneira quase milagrosa. A partir deste acontecimento se iniciam diversos rumores de que a liberdade, termo praticamente esquecido ou desbotado na memória de muitos presos que deveriam pagar por penas extremamente longas, ou que estariam por vias de sofrer castigos desumanos, era possível. Aquele presídio insalubre e quase intransponível, onde habitavam os pesadelos e horrores que faziam parte do cotidiano dos presos, se fez, através dos rumores sobre de como fora efetuado aquela fuga quase enigmática, derrubar, mesmo que por instantes, mesmo que por alguns dias toda a opressão que o encerramento lhes causava.

Os rumores da possibilidade de ser livre e de onde estariam escondidos os presos fugidos davam aos presos uma possibilidade de viajar para além das grades e dos muros que delimitavam todos os seus sonhos. As possibilidades criadas pelas conversações entre os presos nos banhos de sol de onde poderiam estar os que haviam fugido e das maravilhas que poderiam estar passando longe da opressão do presídio os permitiam viajar em um mundo de sonhos de liberdade, de possibilidade de serem livres novamente. De certa forma a estrutura hierárquica de poder havia sido abalada por estes rumores e por estes sonhos, pois os presos já não mais eram corpos sem espíritos desfalecidos por anos de castigos e opressão corporal e mental. Podiam novamente sonhar com a liberdade, e até tentavam recobrar em memórias absortas pelo tempo os cheiros dos campos e as cores da relva além dos portões daquele presídio através dos rumores da possibilidade de que os fugidos poderiam estar sentindo-os. O temor assim foi de certa maneira amenizado.

A possibilidade de liberdade criada por um imaginário coletivo deu aos presos certo despeito em relação ao diretor e aos seus algozes. A estrutura repressiva fora assim abalada, pois o temor da impossibilidade de liberdade havia sido, mesmo que por alguns dias, afastada, e os cheiros e sabores do mundo externo foram novamente deleitados em memórias antes apagadas. O diretor, por isto, temendo uma nova tentativa de fuga, montou um aparato de busca para a captura dos presos que haviam fugido, sendo estes logo encontrados, sujos e famintos, pois se haviam escondido em uma caverna próxima temendo serem capturados pelos próprios moradores da região seguidores do Tsar Nicolau I, uma vez que no presídio se encontravam boa parte dos presos políticos acusados de insurreição contra seu governo despótico. Neste sentido, segundo Scott, fez-se necessário todo um discurso, após a captura dos fugitivos, ideológico de que novas fugas seriam intoleráveis. Para o autor os discursos linguísticos servem como aparatos ideológicos que inculcam o temor aos detentores dos aparelhos repressivos. É por via destes discursos, destes aparatos linguísticos, que as elites, os que se encontram acima na estrutura hierárquica do poder, impõe de maneira contundente sua dominação por sobre os demais.

O mais interessante a frisar é o modo pelo qual se deram certos focos de resistência. Neste caso em específico a resistência se deu no subjetivo de cada preso emanada de uma construção coletiva. A redescoberta do sentido e da possibilidade de liberdade deu aos presos a capacidade de rememorar alguns de seus sonhos perdidos. Os corpos voltaram a possuir espíritos sonhadores que alimentaram um espírito de insurreição contra seus dominadores que, em sua função primordial, deveriam acabar com toda a possibilidade de um novo levante contra seus governantes.

 

O MOTIN

Scott afirma que os dominados para resistir devem desenvolver nexos implícitos e explícitos de solidariedade, nos quais se dirigem e se fortificam até criarem uma unidade e uma coesão forte o suficiente à enfrentar os grupos dominadores. Porém, aponta Scott, esta solidariedade se configura apenas até certa medida do conflito, onde a solidariedade deixa de ser um sentimento comum e aspectos individuais começam a vir à tona, desestabilizando a união massiva entre os que antes eram solidários uns com os outros.

Por causa das más condições de alimentação alguns presos, os mais temíveis assim como descreve Dostoiéviski, se rebelaram através de um agrupamento para a reivindicação para melhorias das condições da mesma que, segundo eles, era degradável. Alguns presos possuíam regalias em relação aos outros por possuírem mais recursos financeiros, e este é um ponto que devemos explorar antes de explicar o fato do motim.

Os recursos financeiros eram a principal fonte de poder entre os presos. Havia outros modos de se conseguir poder e respeito entre os presos, como também entre as autoridades que controlavam o presídio, uma vez que a entrada de alimentos, drogas, e certas regalias materiais só podiam estar à disposição dos presos por via da conivência das autoridades, em um emaranhado de corrupção dentro dos muros e estruturas hierárquicas do presídio. O dinheiro (copeque e grouch) era uma fonte inestimável de regalias dentro do presídio. Podia-se comprar melhor alimentação, bebidas, inclusive alcoólicas, das que se fabricavam dentro do presídio. Com dinheiro podiam-se comprar banhos com água quente e limpa em abundância, massagens para relaxamento, livros, ou seja, quem detivesse o poder financeiro só não podia renegociar sua pena, mas o demais era negociável. O dinheiro entra nas relações de poder entre os presos e entre as autoridades como a maior e mais eficaz ferramenta de barganha. Era um recurso declarado de resistência dentro das relações de poder e hierárquicas, pois os detentos que possuíam riquezas eram tratados com mais respeito que os demais.

Outra fonte de barganha estava em mãos dos fabricantes de bebidas. Eram grandes detentores de poder também, pois o álcool era grande fonte de prazer entre os presos em um lugar onde as condições de vida eram horríveis e o prazer ou lazer eram quase nulos. O comércio de bebidas era intenso em épocas de festa como o Natal por exemplo. E se um preso desejasse uma comemoração de seu aniversário, ou simplesmente escapar um pouco para fora do presídio mesmo que de maneira ébria, deveria pagar por seus desejos alcoólicos. Muitos chegavam a dever grandes somas de dinheiro para estes fabricantes e negociantes que possuíam seus cobradores também, estabelecendo uma imbricada relação mafiosa que podia chegar à violência brutal.

De volta à história do motim. Os presos se puseram em fila demonstrando e impondo respeito pela quantidade e organização. É importante notar que para Scott os desfiles e possessões são os mais importantes tipos de reuniões autorizadas dos subordinados. E foi a partir destas reuniões e aglomerações fundamentadas em discursos políticos de contestação às condições impostas a muitos dos presos que ali se encontravam que eclodiu a rebelião. As reuniões, segundo Scott, podem deflagrar discursos politizados que põem em questionamento as imposições sofridas pela sujeição à estrutura de dominação. Estas reuniões podem em certa medida ultrapassar a mera característica de uma boa conversa entre amigos para caracterizar-se como discussões politicamente engajadas. E foi o que ocorreu. De um breve grupo surgiu um motim que pôs em xeque todo o controle do presídio, pois os presos conheciam, em certa medida, de seu poder perante o major que controlava o presídio. Após negociações os presos voltaram ao trabalho em uma marcha que em certa medida era temida pelo major que em um momento estremeceu perante o que poderia ser um caos, que todos se rebelassem ao mesmo tempo. Os instigadores foram presos, porém logo foram soltos, pois em certa medida o major temia novos motins e que as reclamações chegassem ao mais alto grau do comando do presídio. No dia seguinte a comida melhorou.

 

ISSAI FOMITCH

Uma personagem, e aqui o chamo de personagem, pois não se tem comprovação na obra da veracidade de seu nome, mas aparece sem nenhuma sombra de dúvidas como pessoa real de origem judaica, chamada Issai Fomitch, todos os sábados, às cinco da tarde, comemorava dançando, cantando e fazendo suas preces em uma celebração de cunho religioso. Todos os presos vinham a vê-lo em seu estupor de danças e cantos em um ritual desconhecido para muitos deles, pois em grande parte eram russos e desconheciam as manifestações litúrgicas judaicas. De certo modo, como aponta Scott, essas “teatralizações” desferiam forte golpe ao desrespeito que os outros presos possuíam para com Issai Fomitch, pois ele era judeu e sofria com os preconceitos dos demais. Os cultos e as manifestações das ditas possessões de Fomitch não chegavam a abalar as estruturas de poder gerais, mas de certa forma impunham respeito frente aos presos diante do desconhecido. Essas manifestações não eram em nenhuma medida como se encontra descrito no livro, formas abertas e declaradas de manifestação contra certas formas de poder, porém, embasado nas teorias de Scott, serviam os cultos praticados por Issai como modos de resistência eficazes contra certos modos de dominação entre os presos. Serviam como poderosas formas de maldizer seus adversários, mas de forma ainda mais sutil que a descrita por Scott, para quem qualquer protesto abertamente declarado poderia ser condenado de antemão ao fracasso.

 Muitos acreditavam que ele era possuído por espíritos e que detinha certos tipos de poderes suprahumanos, pois cantava e dançava até um êxtase que era acompanhado pelos demais presos. Tal respeito à estas manifestações atingiram até mesmo os sujeitos dominantes, como por exemplo o major que era responsável pelos presos. Scott afirma que tais manifestações serviam, não como um modo de enfrentamento direto aos males sofridos pelas camadas dominadas, e sim como um modo de reparação prática, que dão voz à uma crítica à dominação imposta, onde os ritos de possessão de alguma maneira produzem e reforçam os laços sociais entre os sujeitos da comunidade. Mas neste caso a representação era individual e nem por isso deixou de reforçar, ou melhor, estabelecer laços entre os encarcerados e Issai. Sua manifestação ao êxtase era respeitada pelo desconhecimento pelos outros presos.

Essa dita possessão trazia certo sentido de magia às práticas de Issai. Neste sentido as palavras evocavam algo a mais que o boato ou fofoca passando a um ato de agressão secreta que afetaria ao inimigo. Essa consubstancialização da magia às práticas ritualísticas de Issai lhe deu o poder de afastar seus inimigos graças a seus atos performativos enquanto instrumento impositivo contra a dominação, mesmo que este fato não estivesse em sã consciência na cabeça de Issai. Suas práticas ritualísticas em nada queriam dizer resistência às opressões por ele sofridas de forma consciente, mas tornaram-se modos de resistência inconsciente que o ajudaram a manter-se vivo e consciente dentro do presídio.

 

CONCLUSÃO

Se pôde perceber as várias facetas que a dominação e a resistência podem tomar além de ações e discursos declarados. Seres politicamente ocultos podem danificar as estruturas de poder de modo significativo, dando-lhe nova feição, remodelando-a. James Scott nos mostra que as relações de poder possuem imbricadas texturas no contexto das relações entre dominados e dominadores, onde a luta pela sobrevivência se efetua muito mais em um campo identitário que qualquer outra coisa. As desigualdades sociais e de representação política nos sistemas democráticos podem se ocultar em discursos ideológicos muito bem fundamentados pelas camadas que dirigem e controlam o poder. As desigualdades e as estruturas de dominação são disfarçadas com uma roupagem de naturalização, onde o domínio de uns sobre os outros deve ser absorvido como processo natural das relações entre os indivíduos inseridos em um meio social. A rotinização das relações de dominação mascara uma realidade muito mais profunda de disputas entre camadas sociais e indivíduos.

Dostoiévski, que em seu livro recebe o nome de Alieksandr Pietróvitch, descreve de maneira esplêndida e realística as várias dimensões e faces da estrutura de dominação presentes, não apenas dentro dos limites internos do presídio, mas também o modo como as relações hierárquicas, políticas, econômicas e de dominação entre as classes sociais presentes na sociedade russa se refletem nas relações entre os encarcerados e seus “superiores”. Dentro destes limites de concreto e barras de ferro a força da dominação é extremamente contundente e eficaz. Os indivíduos sabem, muitas vezes mais claramente que no meio social em liberdade, o seu lugar e seus limites enquanto sujeitos. Mas mesmo assim esses indivíduos que são muitas vezes espancados e passam por duras penas onde suas individualidades e identidades são destroçadas, conseguem encontrar meios de lutar contra a dominação e a morte de seus espíritos. Aquilo que muitas vezes pode passar despercebido como um mero diálogo entre cozinheiros nos recantos das fornalhas e dos depósitos pode significar uma luta contundente contra as forças dominantes. James Scott nos demonstra que o embate político possui várias vertentes e meios além dos publicamente escancarados. As nuances de certas práticas podem muitas vezes representar uma arma efetiva contra estruturas que podem parecer intransponíveis, dando aos dominados e classes abastadas certo grau de sobrevivência em um meio onde até mesmo seu espírito corre o risco de ser acorrentado.

 

REFERÊNCIAS

DOSTOIÉVSKI, F. Memórias da Casa dos Mortos, Porto Alegre, RS : L&PM, 2008.

SCOTT, J. Los Dominados y El Arte de la Resistencia. Ediciones ERA, S.A. de C.V. 2000.