Os diários do almirante
Por Renato Ladeia | 26/02/2012 | HistóriaA história vista pelos diários de bordo.
Relendo os Diários de Bordo do Capitão e depois Almirante Graham Eden Hamond* escritos nos longínquos anos de 1825 e 1838, revi umas passagens interessantes em que o oficial inglês escreve sobre o Brasil e seu povo. Na primeira parte do diário (1825), Hamond ainda era capitão e foi responsável por trazer a comitiva encarregada do reconhecimento da independência do Brasil. A maior parte do diário se refere aos encontros protocolares e alguns aspectos técnicos de navegação, mas como era do seu estilo fazer comentários sarcásticos sobre pessoas e costumes, não resisti e anotei alguns deles, muitos não são politicamente corretos para um oficial estrangeiro em viagem de representação, mas que representavam a visão eurocêntrica e elitista de uma potência imperial européia.
Era agosto de 1825 e ele avista uma carruagem puxada por quatro cavalos que era dirigida por nada menos que o nosso jovem e fogoso imperador, informalmente vestido, que dá a volta e retorna para cumprimentar os ingleses, mesmo sem falar uma palavra na língua de Shakespeare. Estávamos construindo a nossa informalidade, nosso jeito de quebrar regras e padrões formais de comportamento. Dias depois Hamond comenta em seu diário que vê a imperatriz Leopoldina montada em um cavalo como um homem (na época as mulheres da elite montavam de lado nas selas dos cavalos) e ela também estava acompanhada por um negro branco e um padre preto. O que ele quis dizer com negro branco? Provavelmente um escravo mestiço, com a pele branca. O padre preto também era algo surpreendente para a época, pois era raro um negro ter acesso a um seminário.
Naquele tempo os franceses estavam em alta no Brasil depois de um acordo em que 600 jovens brasileiros foram convidados a estudar na França com as despesas pagas. Enquanto no Rio de Janeiro habitavam mais de 3000 franceses, apenas 600 ingleses eram moradores na cidade, apesar da grande influência econômica dos britânicos no país. A Rua do Ouvidor, que existe até hoje, era praticamente uma rua de franceses, com muitos modistas. Era o prenúncio da invasão dos “Pierre Cardin, Yves Saint Laurent, Louis Vuitton” etc. Essa preferência pelos franceses surpreendeu o inglês, pois em suas visitas a Portugal, observara que a influência inglesa era notória entre os lusitanos.
E o palácio do imperador? O nosso almirante o descreve como um edifício feio, amarelo e na época estavam a fazer nele alguns puxadinhos, pois era pequeno demais para abrigar a corte. E a cidade maravilhosa? Hamond narra um dia de chuva, em pleno 1825 e diz, maldosamente, que é a cidade mais imunda que já viu em sua vida e até os escravos estavam cobertos de lama. Em dias de chuva parece que o Rio gosta ainda de reviver os velhos tempos. Mais adiante ele comenta que não pode achar a cidade saudável por causa dos abomináveis pântanos que tem em redor. No mesmo dia, o oficial britânico manifesta dúvidas se Portugal vai mesmo reconhecer a independência do país de forma tranqüila ou vai manter uma soberania nominal sobre a antiga colônia. Estava errado, apesar de que o Brasil foi obrigado a pagar uma pesada indenização ao império português, que apesar dos trezentos anos de exploração das riquezas da terra ainda exigiu os “lucros cessantes”.
No dia 15 de dezembro de 1834 havia chegado ao porto um brigue com 500 escravos a bordo que fora detido por um capitão inglês. Havia nele 521 escravos, mas 21 morreram pelas péssimas condições a bordo. Hamond prevê a morte de 1 a 2 escravos por dia. Dias depois ele comenta que 200 dos melhores escravos foram roubados durante a noite. Com este episódio ele manifesta descrença de que o governo queria realmente abolir o tráfico, pois o tratado era bastante antipático para os brasileiros. O pior é que um juiz brasileiro acusava os ingleses pelo roubo dos escravos. Hamond qualifica os ministros brasileiros como salafrários. Posteriormente ele relata que o Ministro das Relações Exteriores, um tal de Aureliano foi acusado como responsável pelo roubo dos escravos.
Ele relata em 10 de fevereiro que houve, na Bahia, um levante de escravos que resultou na morte de 60 deles durante a violenta repressão do governo local. Vê-se pelo relato que a situação não era muito pacífica no império com relação à ordem escravocrata.
Outro fato interessante relatado pelo oficial inglês é o seu encontro com o imperador, em que ele descreve que “É um menino de 10 anos com uma aparência agradável. Estava vestido de uniforme azul e ouro, calças brancas e amarrado a uma espada enorme”. Neste episódio, relativo à comemoração do aniversário da constituição, estavam presentes vários oficiais e ao descrever um deles, o britânico assim se expressa: “Um mulato oficial do exército, tinha o aspecto de um imenso babuíno e, realmente, só lhe faltava o rabo”. Observa-se pela descrição que dependendo da posição social e econômica, não havia dificuldade de acesso dos mestiços aos altos escalões militares e nem mesmo na corte. O que é bastante desagradável é a forma racista com que o inglês se referia as pessoas de origem africana.
Outro fato curioso são os comentários que faz sobre as mulheres, principalmente com relação aos dentes. Numa ocasião descreve uma mulher brasileira pertencente à elite que não tinha um único dente na boca. Num baile Hamond comenta sobre a dança na moda no Rio de Janeiro, a quadrilha e elogia os músicos, na maioria mulatos.
No dia 24 de junho, dia de São João, relata que houve uma grande festa, mostrando que a comemoração, que hoje tem importância maior no nordeste do que nas outras regiões do país, era uma festa bastante concorrida na capital do império.
Em 31 de julho o seu navio está atracado em Recife, onde ele observa que os escravos negros de lá são bastante diferentes dos existentes no Rio de Janeiro, notando que são provavelmente originários de apenas uma região da África. Como de costume, ele faz observações racistas ao dizer que alguns teriam belas faces se não fossem negros.
Sua pena crítica não perdoava o governo brasileiro da época ao mencionar que os recursos seriam prodigiosos se as receitas fossem aplicadas corretamente. “Mas o peculato, nos vários departamentos, vai além de qualquer observação possível” (pg.89). Infelizmente isso mostra que nossa vocação para o patrimonialismo tem raízes antigas. Numa outra passagem, comenta sobre a captura de mais um navio negreiro, que apesar da proibição, o tráfico continua no país. Com desalento ele revela que de pouco adiantara a captura, pois em pouco tempo os escravos estariam trabalhando nas fazendas apesar de estarem sob a custódia do governo.
A propalada fama de que as mulheres brasileiras são muito bonitas não encontrava em Hamond uma opinião muito favorável, pois escreve em seu diário que havia poucas mulheres realmente bonitas no Brasil. Cita ainda a opinião de um francês, que havia estado em vários lugares no mundo, que dizia que nunca havia visto, numa reunião, tão grande número de mulheres feias como no Rio de Janeiro.
Os diários do Almirante, apesar dos seus comentários preconceituosos e reveladores de um distanciamento muito grande da realidade brasileira por parte de um oficial elitista e preconceituoso, são interessantes para se captar nuances do cotidiano do Brasil há quase duzentos anos. Um país recentemente independente que manteve intactas as estruturas coloniais após se libertar do jugo da metrópole portuguesa
- HAMOND, G. E. “Os diários do Almirante Grahan Eden Hamond 1825 -1838”. Tradução de Geyer, Paulo Fontainha, Rio de Janeiro: Editora JB, 1984.